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4 PROMOVENDO O PENSAMENTO CRÍTICO EM FILOSOFIA

PENSAMENTO CRÍTICO E FILOSOFIA Henrique Jales Ribeiro

4 PROMOVENDO O PENSAMENTO CRÍTICO EM FILOSOFIA

Assim concebido através da retórica e da argumentação, o pensamento crítico não é apenas uma conceção sucedânea do velho papel da filosofia, desde Descartes e de Kant. O trabalho interdisciplinar e sistemático, a que aludimos, está por fazer na sua maior parte, embora seja extraordinariamente prometedor de todos os pontos de vista (Ribeiro, 2013). Em todo o caso, a generalidade dos filósofos profissionais não aceitaria a minha tese, que, de resto, não tem nada de novo, uma vez que começou por ser apresentada por Perelman e Olbrechts- Tyteca (1952). E a razão fundamental é que a filosofia, ao abrigo do paradigma fundacionalista da modernidade (da árvore de Descartes), sempre se pensou a si mesma como um discurso último sobre o mundo e as respetivas propriedades; só excecionalmente admitiu que ela própria, como discurso, poderia ser

questionada e investigada do ponto de vista privilegiado da retórica e da argumentação; e que esse questionamento poderia afetar irremediavelmente a melhor ou pior qualidade das teses desenvolvidas. É suposto que a forma de apresentar uma tese qualquer, em filosofia, é geralmente irrelevante, em comparação com aquilo que será a própria tese, considerada em si mesma ou “objetivamente”. Em consequência, a filosofia desenvolveu ao longo da sua história até ao presente todo um conjunto de estratégias auto-imunizadoras contra a retórica e a argumentação e, finalmente, o próprio pensamento crítico. Uma das mais importantes é a do recurso à intuição e a outras fontes irracionais de discurso, que constituem, na perspetiva da retórica e argumentação, verdadeiros apelos (inapropriados) para a autoridade (ad verecundiam). Em filosofia explica-se, não se argumenta ou se discutem razões necessariamente, isto é, não se tratará, por natureza e em princípio, de um discurso mais ou menos problemático que pode e deve suscitar contra-argumentações (sobre a distinção entre explicação e argumentação, cf. Copi & Cohen, 1953/1994); do que se tratará, outrossim, é de um discurso sobre algo que existirá de alguma maneira independentemente do modo e/ou da forma da respetiva exposição e argumentação. O uso da metáfora e da analogia em filosofia (que analisámos em Ribeiro, 2014) constitui um exemplo pertinente do que acabámos de afirmar; a generalidade dos autores que apelam para esses meios (aí incluindo o Wittgenstein do Tractatus, o Heidegger da Carta sobre o Humanismo, ou o Quine da Relatividade Ontológica e outros Ensaios), quando confrontados com os mesmos dirão: “Trata-se apenas de uma forma de procurar dizer o que não consigo fazer discursivamente de outra maneira; se compreenderem o assunto, essa forma é relativamente indiferente”. É claro que este tipo de argumentação é completamente inaceitável do ponto de vista da retórica e da argumentação e, sobretudo, do pensamento crítico. No entanto, foi aquele que foi geralmente apresentado por autores das mais diversas correntes até praticamente aos nossos dias.

À luz de tudo o que foi dito, existem dois tipos de questionamentos a respeito da aplicação do pensamento crítico à filosofia que importa fazer, analisar e distinguir atentamente: o primeiro, de caráter desconstrutivo, diz respeito à filosofia de modo geral, tal como esta foi concebida e estudada desde a Grécia antiga; o segundo, tem a ver fundamentalmente com o que defendi, nas secções anteriores, serem hoje em dia as tarefas da retórica e da argumentação, como pensamento crítico, perante os desafios da pós-modernidade.

Começando pelo primeiro. Quando a intenção de um dado filósofo não é argumentar e/ou submeter-se ao tribunal da argumentação, mas simplesmente explicar ou explanar uma dada tese, pode ser possível reconstruir o seu discurso como argumentação, mas, neste caso, uma tal reconstrução será inevitavelmente subjetiva; assemelhar-se-á à interpretação de uma obra de arte

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Pensamento Crítico na Educação: Desafios Atuais

por vários espectadores. De uma certa maneira, poderia dizer-se que não faz sentido, porque, no limite, não será possível chegar a um acordo intersubjetivamente partilhável sobre aquilo que o filósofo em questão quer dizer. Contudo, no âmbito educacional, o exercício do pensamento crítico é imperativo: o que é que um dado autor quer dizer quando usa este ou aquele tipo de conceitos semanticamente ambíguos? O seu discurso é retoricamente inofensivo? Que conceitos alternativos poderiam ter sido apresentados e argumentados? Como é que as teses em questão podem ser contra- argumentadas? Mas a maior dificuldade que a aplicação do pensamento crítico à filosofia implica consiste em que os conceitos envolvidos nesta são geralmente muito diferentes dos que são utilizados na vida quotidiana, tal como, de resto, acontece com as questões filosóficas de maneira geral. Nós diríamos que esses conceitos são metaconceitos e que as questões a que nos referimos são metaquestões. Termos como “sujeito”, “objeto”, “consciência”, “matéria”, “natureza” e outros, ou questões como “O que é que eu posso conhecer?” possuem por vezes uma significação muito diferente daquela com que são utilizadas no dia a dia, a exemplo do que acontece com os conceitos e questões implicadas nas ciências físico-naturais de modo geral. Pressupõem aprendizagens prévias, académica e/ou institucionalmente estabelecidas, que, nalguns casos demoram vários anos a perfazer. Mas neste caso também a aplicação do pensamento crítico à filosofia passa por começar por os esclarecer e clarificar semanticamente e por, quando for o caso disso, contra-argumentar. Quanto ao segundo tipo de questionamentos a que aludimos mais acima: como sugerimos, do que nos ocupamos é da questão de saber em que medida é que a retórica e a argumentação constituem efetivamente, hoje em dia, paradigmas de racionalidade; e, mais precisamente, de saber como é que essas matérias podem ocupar o papel que foi tradicionalmente o da filosofia, apresentando-se, depois da pós-modernidade, como empreendimentos mais ou menos sistemáticos que têm a ver com as fundações últimas do conhecimento e da ação humana de maneira geral.

A este respeito e para terminar, importa fazer uma breve comparação entre as duas principais tendências filosóficas da segunda metade do século XX aos nossos dias: a filosofia analítica e a teoria da retórica e da argumentação propriamente ditas, que, como tenho vindo a defender, deve estar na base do que, por vezes ambiguamente, designamos por “pensamento crítico”.

Mais ou menos na mesma altura do advento das teorias da argumentação de Perelman e de Toulmin, a filosofia analítica (com Wittgenstein, Quine, Putnam e outros), isto é, aquela mesma conceção que começou por anunciar e explicar o fim da filosofia como empreendimento sistemático, constituiu um primeiro desafio e contestação do paradigma fundacionalista tradicional proveniente de Descartes e de Kant. Deste ponto de vista, constituiu também uma poderosa

influência para o desenvolvimento do pensamento crítico. Mas, como mostrei noutro lado (Ribeiro, 2012a, 2012c), do que se trata para os filósofos analíticos é de teoria da significação, não de retórica e argumentação. A sua intenção fundamental consistiu em mostrar que relação tem um termo ou um enunciado qualquer com o mundo, como se uma tal relação não passasse necessariamente pela argumentação, isto é, pelos contextos intersubjetivos e institucionais em que esse termo ou enunciado aparece como uma resposta a uma questão em disputa e mais ou menos problemática. Que intenções tem um dado interlocutor, através deste ou daquele enunciado, quando procura persuadir ou convencer um outro de uma tese qualquer? Porque é que se serve destes ou daqueles meios discursivos e retóricos e não de outros quaisquer? Em que medida é que está ou não a argumentar, isto é, a contrapor razões a outras razões? São questões a que filosofia analítica, isto é, essa mesma filosofia que concluiu que a significação finalmente não existe como entidade mais ou menos ideal (Quine, 1962), é constitucionalmente incapaz de responder.

Por contraste, a teoria da argumentação contemporânea, na forma que lhe deram Perelman, Toulmin e as escolas mais recentes (como a lógica informal e a pragma-dialética), pode vir a constituir a mais preciosa ferramenta para o desenvolvimento do pensamento crítico; em particular, como defendi mais acima, a única forma de superar decididamente o relativismo a que esse pensamento parece conduzir. Como a filosofia analítica, aceita a ideia de que a filosofia ocidental ela mesma, no seu conjunto, como discurso último e fundador, tem de ser completamente reformulada; mas, ao contrário dela, vê no estudo da retórica e da argumentação, em termos interdisciplinares, a única saída perante os desafios da pós-modernidade. É, como disse mais acima, um discurso sobre os discursos; mas um discurso que, em contraste com as teorías tradicionais do pensamento crítico, procura caracterizar e analisar as propriedades (conceitos, métodos, estratégias, etc.) que são comuns a todos os discursos que dizem respeito ao conhecimento e à ação humana; e que, por outro lado, com base nessa caracterização e análise, procura inferir o que daí é possível inferir sobre o mundo. Os conceitos de “racional” e de “razoável”, avançados por Perelman e por Toulmin mais ou menos na mesma altura e independentemente um do outro, são interdisciplinares precisamente no sentido que acaba de ser referido (cf. Ribeiro, 2009, 2013). Mas talvez o maior contributo desses autores tenha consistido na apresentação e desenvolvimento, cada um a seu modo, de um modelo da retórica e da argumentação que será comum a todos os discursos. É por esta via que aquilo a que chamamos “pensamento crítico” pode tornar-se um empreendimento sistemático, isto é, progressivo e acumulativo quanto aos seus resultados fundamentais.

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Pensamento Crítico na Educação: Desafios Atuais

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¿PERDURAN EN EL TIEMPO LAS HABILIDADES DE