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CAPÍTULO III- ANÁLISE DA (IR)RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

6. A proposta defendida O erro de tipo

O erro de compreensão culturalmente condicionado pode nos trazer à luz diversas soluções para questão da não responsabilização do indivíduo submetido à diversa concepção cultural, do qual não se pode exigir uma interiorização da proibição, por ela ser estranha à sua realidade. A utilização de tal conceito prescinde a comprovação da censurabilidade do erro e permite maior grau de tolerância na resolução de conflitos entre sistemas étnico-culturais diferentes.

Por outro lado, é possível encontrar soluções para não responsabilização penal desses agentes antes de ser apurado o grau de reprovabilidade da conduta. Como na hipótese apresentada por Silva Dias, é possível na primeira etapa de análise da formação do tipo penal demonstrar que as ações de interditos de vida não configuram homicídio infantil com a análise dos componentes objetivos formadores deste com os possíveis erros que o agente pode incorrer.

Quando o sujeito se depara com um gêmeo e acredita se tratar de uma criança espírito, mais do que afirmar a crença de uma humanidade incompleta e da falta de pessoalidade da vítima, é possível perceber que a ausência do entendimento de que se trata de uma pessoa na hipótese de ocorrência de um homicídio, elimina o dolo devido ao falso conhecimento.

Do mesmo modo, a mulher que pratica homicídio contra seu filho portador de alguma deformidade física, acreditando ser ele fruto de uma fecundação com espírito e estando consequentemente com potencial de mutabilidade iminente, não está em sua concepção matando uma pessoa, mas tentando impedir que a manutenção daquela vida não se torne um risco para sua família e para sua vida.

Não se está retratando aqui hipóteses utilitaristas, em que tais práticas são interpretadas como controle de natalidade dentro da comunidade por se atingir o limite máximo que esta consegue comportar de crianças ou de membros. Nem mesmo será cabível interpretar como ato de eugenia, pois em muitos casos os quais os pais veem potencial de humanidade na criança, ela é acolhida ao grupo.

Hollanda descreve um relato de Sydney Possuelo, em que sertanista dedicado aos índios isolados diz:

Certa vez quando era diretor do Parque Indígena do Xingu, vi uma índia grávida se aproximar do posto da FUNAI. Ela estava em trabalho de parto e precisava de ajuda. Mas o filho não tinha pai e, portanto, seria enterrado vivo, como rezava a tradição. (HOLLANDA. 2009, p. 42)

A autora conta que Possuelo pediu para cuidar da criança desde que a mãe amamentasse o bebê. Em troca ele lhe daria redes e uma espingarda. A mãe amamentou a criança por alguns meses e depois foi embora. Alguns dias depois retornou e pediu a criança de volta, levando-a para sua comunidade.

Relatos etnográficos sugerem que quando o interdito de vida não se efetua a criança começa a ser ressignificada e inicia-se a sua inserção no plano doméstico. Uma socialização que encontra como determinante principal a amamentação e, portanto, o início de sua consusbstancialização. Ela começou a tornar-se humana e, por isso, suas mães reivindicam seus

parentes. As portas do social se abrem e a partir daí torna-se difícil uma extrusão. (HOLLANDA. 2009, p.41).

Juarez Cirino dos Santos afirma que “o conhecimento das circunstâncias de fato formadoras do tipo objetivo implica representação da possibilidade de realização concreta do tipo legal; o erro sobre as circunstâncias de fato do tipo objetivo”, exclui a representação dessa possibilidade e, por isso, configura o erro de tipo.

Na maioria dos casos de interditos praticados por comunidades isoladas ou semi-isoladas, a conduta final da mãe não visa retirar a vida de um bebê recém- nascido, mas impedir que um ser híbrido sem potencial de pessoalidade e sequer de humanidade se torne uma vida, pois esse ser não se encaixa em nenhuma forma de humanidade, nem mesmo no conceito amplo trazido pela perspectividade relativa.

Nos casos de comunidades que possuem maior contato com a nossa cultura o conceito de erro de compreensão culturalmente condicionado é mais adequado para justificar tais condutas. Apesar de compreender que se trata de uma vida humana com as mesmas dimensões que são dadas por nossa cultura, é de se concordar com Zaffaroni não ser possível em muitos casos, ou ao menos compreensível, a exigência de interiorização de nossa cultura. Um elemento que reitera tal conceito é a manutenção dessa prática ancestral em algumas comunidades, apesar do maior contato com valores externos.

De acordo com Santos, o erro de tipo ocorre devido a um defeito na formação intelectual do dolo, que recai sobre elementos objetivos do tipo legal podendo ser presentes ou futuros. Existe a possibilidade de o erro de tipo recair sobre a ação, sobre o resultado, sobre certas características do autor e as vezes, sobre alguns fenômenos subjetivos da vítima.

Na prática de homicídio de neonatos indígenas, não é coerente afirmar que o erro de tipo recaia sobre a ação, pelo simples fato de que da perspectiva do agente a vida ainda não é plena, por não ter ainda ocorrido o nascimento cultural da vítima. Essa argumentação não se sustenta porque os meios necessários para impedir o acesso à vida são pleonasticamente os mesmos utilizados para retirá-la, dentro da própria cosmovisão ameríndia.

Pode ser ousado arriscar a possibilidade de engano sobre o resultado, pois, como já demonstrado, para esses agentes há uma grande diferença entre retirar uma

vida (resultando em morte) e impedir que um indivíduo adentre as relações sociais do grupo ao qual pertença, até alcançar a humanidade plena.

Esse estudo sobre o erro de tipo reside sim nas características do autor que, inscrito em uma cosmovisão distinta, não representa a realidade tal qual descrita no tipo legal, não compreendendo a realização do núcleo “matar” (não existindo para ele vida), nem representando o complemento “alguém” que se insere no âmbito do outrem, (pois os entes sequer estariam inseridos no conceito de “outro”).

Se há um defeito na formação do dolo e, por extensão, do tipo subjetivo, pode- se dizer que “desaparece a finalidade típica, ou seja, a vontade de realizar o tipo objetivo”. Como retratado anteriormente, se o dolo é o querer realizar o tipo objetivo, “quando não se sabe o que se está realizando um tipo objetivo, este querer não pode existir e, portanto, não há dolo: este é o erro de tipo52”.

A primeira parte do art. 20 do Código Penal, diz que o erro sobre o elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo se previsto em lei.

Não havendo dolo, estar-se diante de uma conduta atípica. Esses casos relatados nos interditos de vida são casos em que há tipicidade objetiva, mas não existe a subjetiva, porque não existe o dolo. Uma formação incompleta ou ausente exclui o dolo, mas é preciso distinguir, pois se o erro é inevitável exclui o dolo e a culpa, se for evitável exclui apenas o dolo, porém admite a punição por culpa.

No caso dos interditos a neonatos, se a prática resultar de um agente totalmente inserido em outra cosmovisão, não será possível exigir-lhe um conhecimento diferente daquele que o impulsiona a chegar a tal conduta. O que não significa a defesa de uma cultura hermeticamente fechada, mas é provável que o erro aqui é do tipo essencial inevitável não sendo possível a responsabilização penal nem por dolo e nem imprudência.

Dos parâmetros que possibilitam a análise da situação por erro de tipo ou erro de proibição é importante distinguir que enquanto o erro de tipo afeta o dolo, o erro de proibição (ao qual o erro de compreensão é uma especificação para agentes de culturas distintas) afetará a compreensão da antijuridicidade. No erro de tipo,

52 Zaffaroni, Eugenio Raúl e José Henrique Pierangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral.8ªed.

enquanto o agente “não sabe o que faz”, no de proibição de proibição o sujeito sabe o que faz, mas “crê que não é contrário à ordem jurídica”. Enquanto o erro de tipo elimina a tipicidade dolosa, o de proibição exclui a culpabilidade53.

É importante observar no caso concreto se é hipótese de aplicação do conceito de erro de compreensão culturalmente condicionado ou erro de tipo. Enquanto o primeiro conceito parte da referência do silvícola em relação a nossa cultura e como ele se comporta diante dela, o erro de tipo observa como o indígena age diante de sua própria cultura para depois chegar a nossa.

De acordo com Paul Amry, “a teoria do delito demanda uma análise primeiro da interpretação do tipo, pois se não existe conduta típica, não é necessário averiguar sua justificação”. Ou seja, “se o índio incorre em erro de tipo culturalmente condicionado é irrelevante sondar se ele ao matar uma ‘pessoa não humana’ incorre em exercício regular do direito, se encontra em estado de necessidade putativo ou mesmo se se encontra em erro de proibição inevitável ou culturalmente condicionado”54.

Apesar de concordar com a afirmativa, é de se observar que a análise a partir da escolha de uma excludente de tipicidade ou de culpabilidade será dado pelo caso concreto. É necessário tanto para os argumentos trazidos pela defesa, como para a fundamentação da decisão judicial que esses estejam respaldados a partir do estudo dos relatórios antropológicos, sendo o argumento do erro de tipo motivado pela cultura (culturalmente condicionado) cabível na maioria das hipóteses, mas não em todas.

53 Ibidem, p. 443.

54PORTELLA, Alessandra Matos. Soluções propostas pelo Direito Penal para o problema do homicídio infantil

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