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A Desconstrução do “Infanticídio Indígena” um estudo sobre as teorias de (ir)responsabilização penal aplicadas aos interditos de vida

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

CARLA RAMOS DOS SANTOS

A DESCONSTRUÇÃO DO “INFANTICÍDIO INDÍGENA”

UM ESTUDO SOBRE AS TEORIAS DE (IR)RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

APLICADAS AOS INTERDITOS DE VIDA

Salvador

2018

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CARLA RAMOS DOS SANTOS

A DESCONSTRUÇÃO DO “INFANTICÍDIO INDÍGENA”:UM

ESTUDO SOBRE AS TEORIAS DE (IR)RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

APLICADAS AOS INTERDITOS DE VIDA

Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Doutor Fábio Roque Silva De Araújo Salvador 2018

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CARLA RAMOS DOS SANTOS

A DESCONSTRUÇÃO DO “INFANTICÍDIO INDÍGENA”

UM ESTUDO SOBRE AS TEORIAS DE (IR)RESPONSABILIZAÇÃO

PENAL APLICADAS AOS INTERDITOS DE VIDA

A presente monografia foi aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em direito no curso de Direito da Universidade Federal da

Bahia.

Salvador, 06 de março de 2018.

Banca Examinadora

Dr. Fábio Roque Silva de Araújo –

Orientador:... Doutor em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia.

Prof. Dr. Sebastian Borges de Albuquerque Mello... Doutor em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia.

Prof.ª Dr.ª Taís Bandeira O. Passos... Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida, sabedoria e força.

À minha mãe, pelas palavras de incentivo, orações e por acreditar em meu potencial. À minha família, por estar sempre torcendo para eu realizar meus sonhos.

A Beatriz, por ser meu “pontinho de luz e de alegria” em dias difíceis.

Aos meus colegas de trabalho Shirley, Itamar e Ubiraci por cederem seus horários mais favoráveis, diminuindo o meu cansaço e permitindo que eu escrevesse essa monografia.

A todos colegas e amigos que me apoiaram durante o período que passei nessa faculdade.

Ao meu orientador Dr. Fábio Roque pelos conselhos, bom humor e paciência.

A todos que me ajudaram explícita ou implicitamente, por acreditar que eu possa dar “saltos mais altos”.

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RESUMO

O objeto de estudo desta monografia é a prática de homicídio infantil indígena entre os povos tradicionais da Região Amazônica sob o enfoque do Direito Penal. Também conhecido como infanticídio indígena, o homicídio infantil ameríndio poderá ser tratado aqui como interditos de vida, partindo de uma perspectiva antropológica que guiará o entendimento da cosmovisão desses povos nos permitindo compreender o conceito de pessoalidade aborígene. Esta não coincide com o conceito de humanidade biológica compartilhada entre os ocidentais. Por conta disso, essa pesquisa concluiu pela não configuração do tipo homicídio nos termos do Código Penal brasileiro, ocorrendo o erro de tipo motivado pela cultura, que exclui a tipicidade da conduta e impede a responsabilização penal do agente. Serão analisadas as teorias de não responsabilização penal, o aspecto subjetivo do tipo homicídio e sua incompatibilidade com os interditos de vida, as legislações vigentes a respeito do tema, como também o Projeto de Lei 1057/2007 que visa criminalizar a prática de interditos de vida.

Palavras Chaves: Infanticídio indígena. Homicídio infantil. Comunidades indígenas.

Erro de tipo. Não responsabilização penal.

ABSTRACT

The object of study of this monograph is the practice of indigenous infantile homicide among the traditional people of the Amazonian Area under the focus of the Penal Right. Also known as indigenous infanticide, the homicide infantile Amerindian could be treated here as life injunctions, starting from an anthropological perspective that it will guide the understanding of the cosmovision of these people allowing us to understand the concept of aboriginal personality. This doesn't coincide with biological humanity's concept shared among the Westerner. Due to that, this research ended for the non configuration of the type homicide in the terms of the Brazilian Penal code, occurring the type of error motivated by the culture, that excludes the typical of the conduct and it prevents the agent's criminal liability. Will be analyzed theories of no criminal liability, the subjective aspect of the crime of homicide. The effective legislations will be analyzed regarding the theme, as well as the project of law 1057/2007 that seeks criminalizes the practice of life injunctions.

Key words: Indigenous infanticide. Infantile homicide. Indigenous communities. Type

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CDHM - Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados CIMI – Conselho Indigenista Missionário

FUNAI – fundação Nacional do Índio FUNASA – Fundação Nacional de Saúde JOCUM - Jovens com uma Missão

OIT – Organização Internacional do Trabalho ONU – Organização das Nações Unidas PEC – Projeto de Emenda à Constituição PL- Projeto de Lei

PT- Partido dos Trabalhadores PV- Partido Verde

STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...8

CAPÍTULO I- A INCONSTÂNCIA DA PESSOALIDADE INDÍGENA...11

1. O perspectivismo...11

2. A formação da pessoalidade e do parentesco...15

3. A pessoalidade gradual...16

4. Motivações para a prática de interditos de vida...18

5. Sobre a morte...19

CAPÍTULO II- DA AUSÊNCIA DE VIDA À AUSÊNCIA DE DOLO...22

1. Distinção entre infanticídio e os interditos de vida...22

2. Os interditos sob à luz do homicídio...23

3. Breves considerações sobre o tipo subjetivo...26

CAPÍTULO III- ANÁLISE DA (IR)RESPONSABILIZAÇÃO PENAL...32

1. A inimputabilidade ou a imputabilidade diminuída...32

2. Exclusão da antijuridicidade pelo estado de necessidade putativo...38

3. Exclusão da antijuridicidade por exercício regular do direito...39

4. O erro de compreensão culturalmente condicionado...40

5. Sugestões do direito comparado – O erro sobre o objeto...43

6. A proposta defendida - O erro de tipo...46

CAPÍTULO IV- A ANÁLISE LEGISLATIVA...51

1. A Convenção 169 da OIT...51

2. O Projeto de Lei 1057/2007...53

3. A proposta de alteração do art.231 da Constituição (PEC 303/08)...60

4. As audiências públicas...62

4.1. Manifestações indígenas...63

4.2. O posicionamento de Rita Segato...64

CONCLUSÃO...68

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INTRODUÇÃO

Atualmente, o Brasil possui cerca de 220 sociedades ameríndias e o número aproximado de 800.000 indígenas, o que equivale a 0,5% da população brasileira. Apesar de ocorrerem em número reduzido, ainda existem comunidades tradicionais, isoladas e semi-isoladas, que mantêm práticas ancestrais denominadas pela antropologia de interditos de vida, mais conhecidos no senso comum como “infanticídio indígena”.

As práticas de interditos de vida e de negação de pessoalidade a recém-nascidos não podem ser descritas como homogêneas. Isso não somente por se manifestarem através de atos distintos, mas, principalmente, devido à variedade de comunidades indígenas com base linguística, cosmovisões e culturas distintas. Sua ocorrência é considerada rara nos dias atuais, e quando ainda subsistente, é realizada por variadas motivações.

No presente estudo, será feita uma análise de atos elencados pela PL 1057/2007 como “infanticídio indígena” partindo de uma perspectiva ameríndia tentando encontrar dentro dessas diversas culturas as explicações que indivíduos pertencentes a esses povos apresentam para manutenção dessa tradição.

A utilização da expressão “interditos de vida” nos permite conceituar tais práticas sem lançar precocemente elementos conceituais trazidos pelo tipo penal “infanticídio” ou “homicídio” agregado ao distintivo “indígena”. Este exercício possibilitará o entendimento da negação da pessoalidade ameríndia para chegarmos a configuração dos tipos infanticídio ou homicídio e a suas possíveis projeções sobre essas condutas de maneira mais abrangente que o modelo jurídico penal pátrio.

Para o presente estudo, não serão consideradas as classificações tradicionais que denominam tais povos como “sociedades de estrutura social complexa” ou “sociedades de estrutura social fluida”. No primeiro momento, a ênfase principal será observar distintos aspectos que determinam o conceito de pessoa e pertencimento ao grupo, a partir de relatos e estudos realizados sobre alguns povos ameríndios.

Será trabalhado o conceito de vida, quais as noções de pessoalidade e de humanidade disseminados por esses grupos para alcançarmos o significado de morte,

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não pertencimento e negação da pessoalidade. A partir daí, serão feitos possíveis afastamentos e aproximações do que é tipificado como infanticídio.

Parte desses aspectos serão apresentados no capítulo 1, trazendo esclarecimentos sobre a cosmovisão indígena, mostrando a relação de vida desses indivíduos com o restante de sua realidade. Essa exposição é importante para entendermos qual a posição ocupada por aqueles indivíduos que sofrem os interditos de vida e como essa concepção de pessoa destoa da prevalecente nas sociedades ocidentais.

No capítulo 2, será feita a abordagem do crime infanticídio trazido pelo Código Penal brasileiro, o comparando com o que se chama hoje de “infanticídio indígena”, tentando desconstruir os equívocos disseminados entre a maior parte da população, principalmente pela grande mídia. Será provado que o tipo penal tratado nada mais é que o tipo homicídio. Num segundo momento, será analisado elemento subjetivo deste.

Uma das questões que mais despertam debate na abordagem penal do tema é saber se as práticas de homicídio infantil indígena ensejam a responsabilização dos seus agentes. Tal questão suscitou a redação do Projeto de Lei 1057 em 2007, na tentativa de, não somente de coibir formas de violência e morte contra crianças indígenas, mas também criminalizar a conduta de quem cometia, presenciava, ou tinha conhecimento do risco do homicídio e não agia para impedir sua concretização. Tais discussões proporcionaram a efervescência de um debate há muito tempo esquecido pela doutrina. Se tornou necessário rever as teorias e conceitos de responsabilização tradicionalmente utilizados na análise das infrações e dos crimes praticados por indígenas. A inimputabilidade penal trazida pela interpretação doutrinária, a partir da exegese do Código Penal, além de preconceituosa, mostra-se incoerente com a realidade dessas comunidades e desses indivíduos que só podem ser considerados inimputáveis pelas mesmas razões que o restante da sociedade nacional.

No capítulo 3, serão abordadas as principais teorias de irresponsabilização penal do indígena em casos de homicídio infantil. Nesta monografia, a proposta a ser destacada é a de erro de tipo motivado pela cultura, devido à não correspondência entre o conceito de pessoa trazido pelo Código Penal e aquele existente na cosmovisão das comunidades ameríndias.

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Para finalizar esta pesquisa, o capítulo 4 trará uma análise da legislação vigente sobre o direito à manutenção das tradições e do modo de vida indígena, em contraste com o debate do PL 1057/2007. Este tenta limitar essas práticas aos preceitos das legislações internacionais, em seus aspectos que visam preservar a vida como um direito universal superior ao direito à cultura. Serão também apresentados relatos com o posicionamento de alguns indígenas a respeito da intervenção estatal e da criminalização que o PL 1057 proporciona.

Após essa exposição, espera-se que “pré-conceitos” a respeito do homicídio infantil indígena sejam dirimidos, esclarecendo, primeiro, não ser um infanticídio. Depois, não ser uma hipótese de crueldade, pois não há dolo, porque, no entendimento desses indivíduos, não se trata de uma pessoa. Objetiva-se demonstrar que, se não está matando uma pessoa, também não pode ser um homicídio. O erro de tipo exclui a tipicidade. Com isso, não se pode lançar as garras de uma política criminal sobre um ato que não é uma violação normativa aqui, no nosso ordenamento jurídico, e nem na normatividade indígena.

Para fazermos essa pesquisa, a metodologia utilizada foi inicialmente a leitura de vasta bibliografia antropológica. Esta permitiu enxergar a realidade indígena senão como eles a interpretam, ao menos da forma que a etnologia acredita que ela está sendo dada. O segundo passo foi a revisão bibliográfica no campo jurídico que, juntamente com a leitura da legislação corrente, proporcionou a observação de contradições e a possibilidade de apresentação de soluções que, embora incipientes, podem reforçar a indicação dos melhores caminhos para apaziguar o debate.

Sigamos, então, com a exposição do tema e com a desconstrução do “infanticídio indígena”.

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CAPÍTULO I. A INCONSTÂNCIA DA PESSOALIDADE INDÍGENA

A cosmologia ameríndia nos desafia não somente por apresentar diferenças notáveis de percepção da realidade, mas porque nos induz a mudar de perspectiva quando começamos a lançar novos olhares a partir de novos sujeitos que, até então, têm posição de aparente passividade em nossa realidade.

Para o nosso entendimento dos interditos de vida, será necessário compreender a “relatividade perspectiva” indígena (Gray 1996) que é a “concepção comum a muitos povos do continente sul-americano, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos”. (Castro. 2006, p.347).

Apesar dessa concepção evocar a concepção ocidental de relativismo e universalismo, o perspectivismo ameríndio se coloca de maneira ortogonal a essa concepção. A oposição tradicional entre Natureza e Cultura não pode ser utilizada como instrumento de compreensão das dimensões e dos elementos ontológicos internos das cosmologias não-ocidentais sem sofrer uma crítica antropológica.

Viveiros de Castro ao propor o abandono de conceitos e predicados associados aos rótulos de Natureza e Cultura (como universal e particular, objetivo e subjetivo, corpo e espírito, animalidade e humanidade), cria o conceito de multinaturalismo que evidencia a contraposição entre o pensamento ameríndio e as cosmologias “multiculturalistas” modernas basiladas na concepção de unicidade de natureza e multiplicidade de culturas. O multinaturalismo, ao contrário, demonstra que a percepção ameríndia supõe “uma unicidade de espírito e uma diversidade de corpos. A cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal; a natureza ou objeto, a forma do particular”. (Castro.2006:349).

Ao recombinar predicados associados a Natureza e Cultura, percebe-se que o pensamento indígena não é construído com o mesmo conteúdo e nem possui elementos análogos ao ocidental. A explicação dada a tais elementos não são construções ontológicas, mas posições relacionais, em suma, pontos de vista.

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Ao estudar as cosmologias de alguns grupos ameríndios, Santos-Granero identifica nos contos mitológicos que, nos primórdios, todos os seres eram pessoas humanas que viviam em conjunto e submetidos às mesmas regras sociais. Essas pessoas se transformaram em animais, plantas e objetos que existem hoje. Esses outrora humanos, ainda possuem uma alma humana, sendo considerados também pessoas. Ou seja, todos os seres vivos, no entendimento ameríndio, têm uma ancestralidade humana. Mas a pessoalidade é atributo daqueles que possuem ‘alma” e “vitalidade”1.

As narrativas míticas são povoadas de seres que assumem a posição de sujeito. Ao supor a resposta que um índio daria ao ser perguntado o que é um mito, Lévi-Strauss define que “é uma história do tempo em que homens e os animais ainda não se distinguiam”2. Essa descrição de realidade traçada nos mitos não corresponde necessariamente a sua reprodução na realidade vivida, mas nos dá uma orientação de como seres humanos e não humanos, como animais, espíritos, objetos e eventos naturais são descritos rotineiramente como sujeitos no pensamento indígena.

Na cosmologia sul-americana é comum a descrição de que os animais predadores3 e os espíritos veem os humanos como presa ou espíritos, vendo a si mesmos como humanos, veem-nos como não humanos. Isso ocorre porque é disseminada entre essas várias cosmologias que “a condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade”. Os mitos indígenas estão sempre demonstrando como os animais perderam sua humanidade. Por outro lado, “os humanos são aqueles que se mantiveram iguais a si mesmos” ao longo do tempo. Os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais” como ocorre na mitologia evolucionista ocidental. (Castro. 2016, p.355)

Apesar da ancestralidade comum entre humanos, plantas, animais e alguns fenômenos naturais, que possuem alma, somente os humanos são pessoas completas já que sua aparência corresponde plenamente à sua essência. A forma

1Santos-Granero, Fernando. Hakani e a campanha contra o infanticídio indígena: Percepções

contrastantes de humanidade e pessoa na Amazônia brasileira. Revista Maná 17. 2011. Pág.134.

2 Lévi-Strauss, Claude & Didier Eribon. “De près et de lion. Paris: Odile Jacob. Ed. Bras.: De perto de

longe-entrevista com Claude Lévi-Strauss”. São Paulo: Cosac Naify,2005, p. 193.

3 O perspectivismo não se aplica a extensão de todos animais e outros seres. Ele se aplica a espécies de animais

predadores, como jaguar, sucuri, onças, urubus, bem como sobre as presas dos humanos, por isso a predação e a competição decorrente dela é um ambiente propício ao perspectivismo. Já a perspectividade e a incorporação de elementos “humanos” por não-humanos está relacionado com a situação e não com a característica de determinada espécie, sendo que em alguns relatos indígenas, seres não humanos assumem características mais humanas que as pessoas. Para isso ver Viveiros de Castro.2006 p.353.

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externa de cada espécie é um envoltório, como uma “roupa”, que esconde a humanidade interna comum a todos esses seres. Entretanto, somente os humanos possuem na aparência o reflexo de sua essência humana interna.

Se o ponto de partida é a humanidade comum a todos os seres, a certeza do espírito, há uma constante dúvida sobre a diversidade do corpo. Viveiros de Castro ao analisar as narrativas do contato entre grupos europeus e indígenas, durante o período colonial, percebe que os europeus sempre tentaram provar se as populações indígenas eram dotadas ou não de alma (“os índios são homens ou animais?”). Por outro lado, uma certeza que essas populações sempre tiveram é que os europeus possuíam tal alma. A dúvida sempre residiu em saber qual seria a consubstanciação do envoltório (“os europeus são homens ou espíritos?”). Ou seja, eles queriam saber se aquelas almas tinham corpos e se estes possuíam as mesmas afecções que os seus.

Viveiros de Castro resume a situação, ao dizer que “em suma: o etnocentrismo europeu consiste em negar que outros corpos tenham a mesma alma; o ameríndio, em duvidar que outras almas tenham o mesmo corpo”. (Viveiros de Castro. 2006, p. 381.)

Se todos os seres são dotados de espírito e humanidade e o que os diferencia é a perda de elementos que o definem como pessoas, qualquer sujeito humano “completo” com corpo e espírito de pessoa pode a qualquer momento deixar de ser pessoa. Por isso, como prática comum dentre alguns povos, quando há nascimento, busca-se no indivíduo evidências de sua consubstancialidade enquanto ser humano. É necessário observar as regras de organização sociais e se diferenciar de determinadas práticas animais para manter uma humanidade completa e não se tornar também um animal.

Nas palavras de Viveiros de Castro:

A metamorfose ameríndia, não é um processo tranquilo, e muito menos uma meta. Se o solipsismo é o fantasma que ameaça perenemente nossa cosmologia – traduzindo o medo de não nos reconhecermos em nossos semelhantes, por eles na verdade não o serem, dada a singularidade potencialmente absoluta dos espíritos –, a possibilidade da metamorfose exprime o temor oposto, o de não poder se diferenciar o humano do animal, e, sobretudo, o temor de ver a sua alma que insiste sob corpo animal que se come. (Castro. 2006, p.391).

Existe um conto Xikrin que narra a existência de um menino que era filho da onça e ele havia sido guiado por ela até aquela aldeia. “Chegou lá um dia. Contou o que

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tinha acontecido com ele e disse que lá tinha fogo. Foram todos lá. Pegaram um jatobá grande queimando e carregaram nas costas, todos juntos. E a onça ficou sem fogo até agora. Ela come cru e nós come cozido”. (Vidal 1977: 232)4.

A utilização do fogo e de uma alimentação com ingredientes cozidos é um fator de diferenciação enquanto humanidade. Essa ênfase está presente em mitos de diferentes povos. Os Timbira (Jê) e os Krahó acreditam que a onça é a dona original do fogo. Há diversos mitos que narram histórias da perda do fogo. Entre os Morubo é contada que o homem ao perder o fogo se torna uma onça. (Holanda. 2008, p 23-24). Há uma série de restrições alimentares que em alguns momentos proíbem o consumo de certos animais que possuem uma humanidade muito próxima a nossa. A desobediência a tais regras pode trazer prejuízos para o grupo e doenças para quem desobedece, podendo tal mal atingir gestantes e seus futuros filhos.

A ideia de metamorfose está relacionada a ideia de “roupa” como envoltório de um espírito de humanidade que é comum e está presente em todos os seres e, ao mesmo tempo, ao conceito de perspectivismo que considera todos esses seres sujeitos que possuem uma perspectiva, um ponto de vista, a respeito da realidade e constrói a sua própria realidade.

Descola descreve que no pensamento indígena, “o referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição5”. Essa noção de humanidade afastada do biologismo, nos leva a indagar por que alguns seres, a partir de uma perspectiva indígena, nunca chegarão a se tornar pessoas. Por que existe negação à vida a alguns seres, se todos ao redor são considerados humanos?

A compreensão dos interditos de vida praticados por alguns grupos indígenas perpassa pela noção não somente de humanidade compartilhada por essas comunidades, mas também pelo conceito de pessoalidade. A cosmovisão indígena nos mostra que humanidade e pessoalidade são condições distintas. Que existe um potencial em se tornar humano, mas que nem sempre isso será desenvolvido.

4Apud Holanda, Marianna Assunção.

5 Apud CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia.2002,

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2. A formação da pessoalidade e do parentesco.

Entre os ameríndios não existe a causalidade entre nascimento, parentesco por consanguinidade e participação no grupo social. Diferente do pensamento biomédico ocidental, uma criança recém-nascida não é vista como uma humana porque a procriação não estabelece necessariamente laços de parentesco. A formação desses laços se dá num processo de troca e de relações contínuas. Por isso, ao se referir a tais comunidade, usa-se a expressão de formação da pessoalidade. O recém-nascido não nasce pessoa, igual aos seus progenitores, como algo dado. Mas torna-se pessoa, como alguém construído.

Decorrente do perspectivismo indígena surge o entendimento que “a humanidade não é garantida pelo fato de nascer de mãe humana” (...) Existe a crença de que “mulheres podem ser fecundadas por animais, espíritos e outra pessoas não humanas” garantindo os interesses de suas espécies ganhando vantagem em relação aos competidores na busca da força vital. (Granero.2009. p.135). Dentre os povos Piro há a crença que o feto pode ser jabuti, peixe, ou algum animal que não conheçam. Isso no sentido literal e não metafórico.

Tais noções diferem de um grupo para outro. O ponto de encontro dentre várias percepções é que existem características imprescindíveis para um ser se tornar uma pessoa e fora dessas características a humanidade não se forma. Umas dessas características é a adequação ao meio de vida da comunidade, o “saber ser social”, a obediência às prescrições do grupo. Isso pode tornar o novo ser um humano ou pode determinar a perda da humanidade de algumas pessoas.

O estabelecimento dos limites e fronteiras do que pertence ao grupo é o que estabelece a relação com a alteridade. Quando em narrativas mitológicas e na cosmovisão ameríndia seres não-humanos, animais, plantas e objetos são descritos gente, está sendo afirmado que eles são pessoas. Eles possuem alma e capacidade de perspectivas, pontos de vista. São sujeitos apesar de serem os “outros”. Algo que não ocorre com os seres que sofrem interditos de vida. Estes não são significados dentro dessa cosmovisão.

Daí surge a necessidade de enquadrá-los em uma terceira categoria que não seria “nós” nem os “outros”. Alguns antropólogos propõe a expressão “entes” para designar os indivíduos que estão fora do plano das relações que os colocam como afirmativos do social existente:

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Eles estão fora de tudo que elabora o regime ontológico transformacional, estão fora do simbólico e do prático, não existem como conceito ou imagem, não participam do movimento que faz humanos e não humanos. É justamente isso que lhes confere essa particularidade de entes: diferente de tudo que se relaciona eles nunca vão poder se modificar, viver ou morrer. (HOLANDA, 2008, p.25).

O fato de não pertencerem faz dos entes um dos ativos de reafirmação dos laços de parentesco. A sua não significação ainda causa muito desconforto em tais grupos o que muitas vezes relega a prática de interdito ao silêncio.

A negação de pessoalidade decorre da ideia de que a vida, por não ser uma concessão, deve ser desejada e construída pelos parentes. Ela não se inicia com o nascimento de um indivíduo, mas ela continua quando um novo ser surge. Nas palavras de Holanda:

O status de pessoa é um atributo dado pelo “nós”, pela relação entre pai-mãe-bebê e entre estes e seu povo. Já a condição humana se dá pela relação com os demais seres que compõem a cosmologia e, portanto, demanda a existência dos Outros. A criação dos relacionamentos, dos laços sociais, toda a reprodução social depende desta incorporação dos neonatos. Os entes aparecem aqui pela impossibilidade de participarem dessa elaboração de pessoalidade conferida pelo “nós” bem como da “humanidade” afirmada pela existência dos outros. (Holanda. 2008, p.26).

3. A pessoalidade gradual

De uma maneira geral, o feto nasce com agencialidade porque possui uma alma. Ele é ambíguo, porque age, mas não é. Talvez não passe pelo processo de transformação que o torne um ser humano. Cada comunidade define qual o processo de transformação que torna cada ser uma pessoa.

Entre os Piaroa essa capacidade humana somente é alcançada com a convivência harmoniosa com o grupo e com o cosmo. A conquista dessa harmonia é feita diariamente e ela afasta a possibilidade de deslizes, dos interditos e do que poderia retirar a humanidade. A criança que nasce só iniciará nessa empreitada quando receber um nome se fazendo, então, um ser humano completo, pois já demonstrou habilidades como andar, falar e alimentar-se com autonomia.

Levy- Strauss em seus estudos sobre “A estrutura dos mitos” identifica a relação existente entre a nominação de recém-nascidos com a relação de parentesco, ele afirma que “os termos de parentesco são elementos de significação” (...) da mesma

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forma que os fonemas “só adquirem esta significação sob a condição de se integrarem em sistemas. (1955, p.49)”6.

Os estudos etnográficos demonstram que não há nominação para os entes. Nenhum termo é dado e, normalmente eles estão relegados ao silêncio. Na maioria das vezes, eles não somente se diferenciam dos neonatos com potencial de inserção social, mas também dos “outros” seres que integram o sistema relacional incluindo os não-humanos e, até mesmo, dos mortos. Poucos grupos os tratam como “os outros”, ou pertencente a cosmologia relacional.

Para os Bororo e os Yudjá, a vida só é elaborada com a aquisição da “vergonha-respeito” que significa observar os preceitos do grupo social e em caso de descumprimento, haver um grande constrangimento público por desrespeito à dinâmica social estabelecida por relações com o sagrado. Eles acreditam que devem estar fora da humanidade todos aqueles que não sabem observar as regras.

Para alguns povos os entes se colocam no mundo mostrando que não sabem pertencer. Por desconhecerem as regras quebram com o que deve ser, e por isso são impossibilitados de desfrutarem do social. A infração às regras deve ser coibida, pois agir dessa forma é demonstrar-se inimigo ou animal que deve ser amortizado.

Apesar de cada grupo estabelecer quais critérios são necessários para formar-se uma pessoa, o primeiro passo comum a maioria desformar-ses grupos para entrar no mundo dos seres é o engajamento na vida social. Há uma rede de trocas inicias de substâncias com a criança (sangue, leite, suor) que não representam as relações existentes, mas que produzem estas relações. O corpo não é um organismo completo, mas precisa ser constantemente fabricado por essa teia de relações parentais e afins. Há uma constante busca de assemelhamento corporal do recém-nascido com a parentela e uma busca de diferenciação com os não-humanos. Por outro lado, a observação de prescrições sociais que proíbem incesto7 e, em alguns grupos, não permitem relações que geram filhos ilegítimos ou, contrariamente determinam que a mulher deve manter relações com parceiros diversos para que a formação do feto seja

6 Apud CASTRO, Eduardo Viveiros de Castro, 2006.

7 A proibição ao incesto está presente em diversas culturas indígenas, sendo recorrente tais fatos em

narrativas mitológicas tendo como consequência ao praticante a retirada da pessoalidade e das relações sociais.

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completa, deve ser sempre observada sob o risco de prejuízo à criança em formação tanto no aspecto físico como na sua consequente não inserção ao grupo.

4. Motivações para a prática dos interditos de vida

A inobservância de preceitos e a quebra de tabus por parte de um dos pais podem causar o nascimento de crianças que não possuem potencial para atingir a humanidade. Alguns povos da Amazônia, como os Mehinaku consideram que a altura excessiva de algumas crianças decorre da promiscuidade da mãe, pois o crescimento de algumas crianças é devido ao acúmulo de sêmen de um ou mais parceiros no ventre da mãe.

Existe a crença de que as mulheres podem ser fecundadas por seres não humanos, dentre eles animais e espíritos. Nem sempre as mulheres grávidas e suas famílias percebem isto. Em muitas sociedades ameríndias, o nascimento de gêmeos é um indício de fecundação não humana. O antropólogo Kenneth M. Kensinger, sendo ele um gêmeo, relata sua experiência em campo com os Kaxinawá do leste do Peru: Gêmeos, dizem eles, são produzidos quando um espírito engravida uma mulher. São, portanto, chamados yushin bake, “criança-espírito”, e são destruídas ao nascer. Quando elas finalmente entenderam que eu estava dizendo que eu era gêmeo, eles imediatamente se afastaram e me evitaram por muitos dias, até que um líder decidiu que eu não podia ser uma criança-espírito porque eu era muito burro e incompetente na floresta. O filho de um espírito jamais poderia ser assim8.

O povo Desana afirma que gêmeos nascem quando os pais misturam comidas masculinas com femininas, cuja a combinação é considerada tabu por aquela comunidade. Esse comportamento é associado ao adultério ou a endogamia incestuosa. Em outros povos ameríndios, além dessas crenças apresentadas, também há o entendimento de que gêmeos podem ser resultado de quebra de tabus ou de ataques de seres espirituais.

Apesar da ocorrência de diversas narrativas míticas com a presença de gêmeos, no cotidiano, o nascimento de gêmeos é concebido como uma ameaça à humanidade e à vida social, por isso não é permitido que vivam.

Os Kaxinawá acreditam que as mulheres podem ser fecundadas por espíritos ao serem visitadas por eles em sonhos, quando caminham à margem de algum rio ou na floresta. Os frutos dessa união são propensos a deformidades ou anomalias

8 SANTOS-GRANERO, Fernando. Hakani e a campanha contra o infanticídio indígena: Percepções

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decorrentes da mutabilidade e excessos que esses espíritos estão associados. A má formação física é interpretada como indício de que o novo ser se trata de uma criança-espírito.9

Crianças “bastardas” ou frutos de relações adulterinas podem ser vítimas de interditos por não serem consideradas pessoas. Isso não ocorre por sua filiação não humana, mas por falta de inserção e de relações sociais essenciais a formação desse novo membro do grupo social. A pessoalidade social e o nascimento cultural precisam da participação de toda rede de parentesco e afins para serem atingidos plenamente.

5. Sobre a morte

Não somente a origem da vida, a manutenção dos seus ciclos e das relações sociais é festejadas na cosmologia ameríndia. A morte possui papel proeminente na sua manutenção, porque vivos, deuses e mortos coexistem e constroem uma realidade ampla.

Menget afirma que tanto o “nascimento, o crescimento, a gravidez, a doença, o homicídio e a morte natural formam uma série que dá lugar a ritos da mesma natureza”. Ou seja, toda essa cadeia forma ciclos que estão presentes na cosmologia indígena e a morte é parte essencial para manutenção dessas outras fases. (MENGET 1979:248).

Holanda ao retratar o modo como os Bororo concebem a morte, destaca que é ela a ausência de “peguru”, do respeito-vergonha que preestabelece o bom convívio entre os vivos. Por não saberem mais agir de acordo com as regras sociais, eles devem ser “desconsubstancializados” através de rituais para poder adentrar o mundo (ou aldeia) dos mortos com uma nova substancialidade ficando fora do mundo dos vivos.

Para os Timbira,

a alma dos mortos vive algum tempo em aldeia própria com uma vida social pobre e menos aprazível que deste mundo; cada alma a seu tempo, também morre e se transforma em animal de caça, não consumido pelos vivos, pois é reconhecido pela falta de gordura e do mal odor; este animal morre e se transforma num inseto, que também vem a morrer, virando um toco de pau. Este, quando o cerrado pega fogo, desaparece. (Mellati 2003). (HOLANDA.2008, p.73-74).

9 Ibidem.

(20)

Nos interditos de vida não são observados ritos que acompanham momentos importantes dos ciclos da vida, muito menos aqueles relacionados a morte. O que demonstra que os entes estão “foracluídos” da cosmologia indígena. Eles não são considerados mortos porque a morte é uma transformação, iminência constante da possibilidade de metamorfose. Ela traz consigo a dualidade da ruptura com a vida social e, ao mesmo tempo, a continuidade dos processos de produção pelos quais devem passar todo aquele que viveu.

Os mortos estão incluídos na categoria de “outros” dentro desta cosmologia, e, sendo alteridade, reafirmam a dinâmica social. Para ser “um morto é preciso antes ter desfrutado da plenitude de uma vida social”. (...) Morrer é retirar-se plenamente do social. Chegamos ao ponto: estamos falando de sistemas em que para morrer é necessário, antes, pertencer. Isso indica que, no intuito de pensar a negação do status de pessoas a alguns entes não estamos falando de morte, nem de crime, nem de movimento. (HOLANDA.2008, p.p.40,44)

Tal identificação a partir do pensamento ameríndio demonstra que os conceitos de infanticídio ou homicídio não se coadunam com a prática dos interditos de vida em seus elementos constitutivos mais basilares que é a retirada de uma vida humana. Entretanto, é ingênuo imaginar que dentro dessa lógica, atos contra a vida de crianças e, até mesmo, contra a vida de “entes”, não possam ser interpretados como um homicídio.

Em um trabalho de campo realizado pela etnóloga Emilenne Ireland, ela presencia um “incidente” no qual o padrasto de uma criança ilegítima de 4 anos aproveitando um momento a sós, tê-la sufocado. Apesar da comoção entre o grupo, o autor do ato não foi punido por existir o conflito de dois preceitos sociais:

“I) A ilegitimidade de uma criança sem pai que não deveria ter sido consubstancializada-neste caso, a mãe havia agido mal em tê-la inserido na rede de relações sociais; II) Havia o consenso de que nenhuma pessoa pode retirar a vida de outra pessoa”.

Uma informante que pertencia à aldeia relatou que ficou

muito triste quando a criança foi morta. Este não é o nosso costume. Nós não matamos crianças que estão suficientemente crescidas para andar sozinhas e deter o conhecimento de nossa linguagem. Mas o que podemos fazer? Esta criança não tinha pai. Ela não deveria ter nascido. Se isso fosse evitado, de acordo com o nosso costume, nada disso teria ocorrido. (Ireland 1993:24). (HOLANDA. 2008:25).

(21)

Tal relato nos leva a perceber a clareza dentre esses povos que, em algum momento, esse “ente consubstancializado” passa a possuir feições de pessoalidade e, a partir desse momento, o ato de pôr fim a uma vida é considerado uma infração aos próprios preceitos do grupo. A caracterização de um tipo penal ou o afastamento da imputação de acordo com o nosso sistema jurídico serão discutidos nos próximos capítulos.

(22)

CAPÍTULO II: DA AUSÊNCIA DE VIDA À AUSÊNCIA DE DOLO

1. Distinção entre infanticídio e os interditos de vida

A prática de interditos de vida realizada por alguns povos ameríndios é chamada no senso comum de “infanticídio indígena”. Tal expressão nos leva a acreditar, inicialmente, que exista uma relação entre essa prática e o infanticídio tipificado no Código Penal.

Esse estabelece em seu art. 123:

Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após:

Pena - detenção, de dois a seis anos.

É notável pela leitura do artigo que o Código Penal exige como agente do delito de infanticídio uma mãe sob a influência do puerpério. Somente a mãe pode ser sujeito ativo do crime, tratando-se, portanto, de crime próprio, não podendo ser cometido por qualquer pessoa10.

O Código adota o critério fisiológico da influência do estado puerperal para considerar o crime infanticídio. Logo, o estado puerperal é um elemento normativo essencial do tipo delitivo e, sem ele, será configurado o delito de homicídio.

Dessa forma, nos ensina Bitencourt:

O indigitado estado puerperal pode apresentar quatro hipóteses, a saber: a) o puerpério não produz nenhuma alteração na mulher; b) acarreta-lhe perturbações psicossomáticas que são a causa da violência contra o próprio filho; c) provoca-lhe doença mental; d) produz-lhe perturbação da saúde mental diminuindo-lhe a capacidade de entendimento e determinação. Na primeira hipótese, haverá homicídio; na segunda, infanticídio; na terceira, a parturiente é isenta de pena em razão de sua inimputabilidade (art.26, caput, do CP); na quarta, terá uma redução de pena em razão de sua semi-imputabilidade11.

O autor continua sua explicação e sustenta ser

indispensável uma relação de causalidade entre o estado puerperal e a ação delituosa praticada; esta tem de ser consequência da influência daquele que nem sempre produz perturbações psíquicas na mulher. Como destacava

10 O Código Penal da Guiné-Bissau tipifica como infanticídio além da conduta descrita no Código Penal Brasileiro

os interditos de vida praticados pela mãe, pai ou os avós durante o primeiro mês de vida do filho ou do neto “por este ter nascido com manifesta deficiência física ou doença, ou compreensivelmente influenciados pelos usos e costumes que vigorarem no grupo étnico a que pertençam. Ver em “Problemas do Direito Penal numa sociedade multicultural: o chamado infanticídio ritual na Guiné-Bissau”. Augusto Dias Silva.

(23)

Frederico Marques, ‘durante ou depois do parto, pouco importa, sempre é necessário que a morte resulte da influência do estado puerperal’. Não teria sentido, caso contrário, manter o privilégio, e o infanticídio representaria uma inversão odiosa da ordem natural dos valores protegidos pela ordem jurídica12.

A prática dos interditos de vida não ocorre devido a uma alteração psíquica ou desequilíbrio das funções maternas ocasionados pelo estado puerperal. Os interditos estão circunscritos a outra cosmovisão da realidade, a conceitos distintos de pessoalidade e de pertencimento social.

O elemento normativo temporal, é menos representativo para evidenciar uma distinção, mas pode também ser elucidado. A expressão legal informa ser outro delimitador do infanticídio a retirada da vida “durante ou logo após” o parto do ser nascente ou nascido. Apesar da restrição ao texto de lei, a doutrina tem aceitado a extensão do estado puerperal por alguns meses após o parto. Os interditos de vida também não se restringem aos momentos iniciais de existência do ente, podendo ocorrer alguns meses ou até mesmo anos após o nascimento biológico.

Miranda Santos observa que

o Código Penal protege a vida humana em formação em três momentos distintos, diferenciando o feto, o ser nascente e o recém-nascido: por meio dos tipos penais que incriminam o aborto (art. 124 a 127) se a vida humana intrauterina; com os tipos do homicídio (art. 121) protege-se a vida humana extrauterina; e com o infanticídio (art. 123) protege a vida durante o parto ou logo após (ser nascente e recém-nascido)13.

Atualmente não existe mais a distinção entre vida biológica e extrauterina, não havendo exigência de vida autônoma, mas somente a biológica.

Dada a não consunção dos interditos de vida ao tipo infanticídio, aparentemente, resta nos enquadrá-lo como homicídio.

2. Os interditos sob à luz do homicídio

A tipificação do crime de homicídio no Código Penal determina:

12 Ibidem.p152.

13 SANTOS, Bartira Macedo de Miranda. A proteção jurídica à vida do nascituro e uma velha lacuna legal.

(24)

Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

O homicídio é a eliminação da vida de alguém provocada por outrem. O enunciado do art.121 é o mais conciso do Código Penal Brasileiro. Essa objetividade possibilita maior amplitude, pois não estabelece nenhuma limitação à conduta que ocasionalmente restringiria a tipificação.

O bem jurídico tutelado no crime de homicídio é a vida humana. A importância do bem jurídico vida é evidente, ao ponto do legislador não se limitar a protegê-lo e, por conta disso, criou graus diversos (simples, privilegiado e qualificado), como também figuras autônomas como o infanticídio, induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio e aborto que são extensões dessa figura central.

Na perspectiva do Direito, a vida começa com o início do parto. Miranda Santos afirma que a ciência ainda não conseguiu determinar o início da vida humana e da passagem da animalidade à humanidade. Ficando tal distinção a cargo das Ciências Biológicas, resta ao Direito estabelecer o momento da personalidade jurídica da pessoa e não o início da vida.

A autora destaca que a:

expressão “alguém” pode ser tomada em dois sentidos. Em sentido vulgar, equivale a ser humano tanto o nascido com vida quanto o por nascer, independentemente da idade de gestação. Em sentido técnico-jurídico quer dizer a pessoa (que significa o ser humano nascido com vida). A expressão “alguém” contida no art. 121 (matar alguém) significa qualquer pessoa. Em outras palavras, qualquer ser humano nascido com vida14.

A expressão “alguém” visa abranger o universo de seres humanos que dispõe de vida. O sujeito passivo pode ser qualquer ser humano nascido de mulher com vida. Essa afirmação induz ao questionamento de quando começa a vida.

A resposta a essa pergunta, apesar de parecer simples, ainda carece de resposta precisa, pois muitas vezes, ela se baseia na concepção, ou na perspectiva cultural de cada grupo social. No caso das populações ameríndias, o surgimento da vida não se resume a um único fato, mas é uma continuidade, importando muito mais a formação da pessoa do que o evento do nascimento biológico.

Segundo Feitosa,

(...)a exigência do duplo nascimento está diretamente relacionada com a existência de práticas de interditos de vida. Estas traduzem o não nascimento

14 Ibidem .

(25)

cultural e sua consequência imediata, o não tornar-se humano. Na origem das mesmas reside a impossibilidade da parturiente e do grupo social ao qual ela pertence assegurarem os bens naturais necessários à manutenção da vida, e os bens culturais imprescindíveis ao processo de humanização que segundo, Lévi-Strauss (1982) não se produz por meio de uma humanidade abstrata, mas a partir de realidades culturais concretas e específicas15.

Miranda Santos destaca que, no direito, os conceitos de ser humano e de pessoa humana não se confundem. O feto é um ser humano, mas ainda não se tornou uma pessoa. “O ser humano só é considerado uma pessoa no instante em que nasce com vida. A personalidade (jurídica) é a qualidade de pessoa (do ponto de vista jurídico)”16. O Direito Civil somente outorga a personalidade jurídica ao ser humano nascido com vida. Por outro lado, o Direito Penal estabelece tipos penais específicos para tutelar cada fase da vida humana.

A ideia trazida com “matar alguém” se traduz em matar outro ser humano que não o agente. Logo, o homicídio exige a existência de dois sujeitos: o que mata e o que morre. O sujeito passivo do homicídio é o homem, na acepção de humanidade ampla, podendo ser um homem ou uma mulher. Clóvis Bevilácqua afirma que homem é “todo ser nascido de mulher”17.

Essa concepção de humanidade, nem sempre é encontrada na cosmovisão de comunidades isoladas ameríndias. Para estas, não existe causalidade entre nascer de mãe humana e ser consequentemente um humano. Nos primeiros meses de vida há constante observação da humanidade do indivíduo nascido. De acordo com Santos-Granero:

A averiguação da natureza humana de um recém-nascido por seus pais, parentes ou amigos não transforma automaticamente, contudo, a criança em uma pessoa completamente humana. Mesmo reconhecidos como humanos, a natureza dos recém-nascidos ainda é considerada indiferenciada e mutável.18

Partindo do pressuposto de que o indivíduo não nasce pessoa, mas é tornado pessoa ao ser inserido numa construção social, percebemos que uma das condições elementares para averiguação da tipicidade da conduta que é matar “alguém” deve

15 FEITOSA. Saulo Ferreira. Pluralismo moral e direito à vida: apontamentos bioéticos sobre a prática do

infanticídio em comunidades indígenas no Brasil. Dissertação de Mestrado. UNB. 2010.

16 Ibidem.

17 Apud, SANTOS, Bartira Macedo de Miranda. A proteção jurídica à vida do nascituro e uma velha lacuna legal.

Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/. Acessado no dia21/12/2017.

18 SANTOS-GRANERO, Fernando. Hakani e a campanha contra o infanticídio indígena: Percepções contrastantes

(26)

ser relativizada ou mesmo ressignificada para categorizar as mortes de recém-nascidos ocorridas dentro dessas comunidades.

3. Breves considerações sobre o tipo subjetivo

Para classificar um dado comportamento como típico, é necessário sondar a vontade e a consciência do agente para chegarmos a sua intenção. No caso do homicídio, o animus agendi é o dolo.

Há unanimidade doutrinária sobre a existência de diferentes classes de dolo possíveis. Na análise tripartida19 podemos encontrar: O dolo direto de primeiro grau, no qual o autor persegue a realização do resultado. Nesta classe do dolo é preponderante o elemento volitivo, pois o sujeito quer o resultado produzido ou que tentou realizar.

O dolo direto de segundo grau que exige do autor uma representação do resultado como uma consequência inevitável de sua conduta. Nesta categoria de dolo não existe uma “vontade dirigida ao resultado”. O dolo eventual que entra como uma terceira categoria de crime doloso, apesar de intensa discussão sobre o seu conceito e sobre a determinação de quais elementos devem ser utilizados para caracterizar alguns fatos como dolosos20.

19 Bitencourt leciona que “o objeto do dolo direto é o fim proposto, mas também os meios escolhidos e os efeitos

colaterais representados como necessários à realização do fim pretendido. Assim, o dolo direto compõe-se de três aspectos: a) a representação do resultado, os meios necessários e das consequências secundárias; b) o querer o resultado, bem como os meios escolhidos para a sua consecução, c) o anuir na realização das consequências previstas como certas, necessárias ou possíveis, decorrentes do uso dos meios escolhidos para atingir o fim proposto ou da forma de utilização dos meios. Em relação ao fim proposto e aos meios escolhido, o dolo direto é classificado como de primeiro grau, e, em relação aos efeitos colaterais, representados como necessários, é classificado como de segundo grau. Como sustenta Juarez Cirino dos Santos, ‘o fim proposto e os meios escolhidos (porque necessários ou adequados à realização da finalidade) são abrangidos, imediatamente, pela vontade consciente do agente: essa imediação os situa como objetos do dolo”. Em BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 2. Dos Crimes contra a pessoa, p. 55-56. Juarez Cirino dos Santos ao distinguir as três espécies de dolo as subdivide em: “a) intenção, também denominada dolus directus de 1º grau; b) o propósito direto, também denominado dolus directus de 2º grau; c) o propósito condicionado, ou dolus eventuais. Em linhas gerais, a intenção designa o que o autor pretende realizar; o propósito direto abrange as consequências típicas previstas como certas ou necessárias; o propósito condicionado – ou dolo eventual- indica aceitação das ou conformação com consequências típicas previstas como possíveis”. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2ª ed. Curitiba; Lumen Juris, 2007. P. 135.

20 CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. “El limite entre dolo e imprudência” in Comentários a la Jurisprudencia Penal

del Tribunal Supremo. Barcelona: José Maria Bosch Editor, 1992. Apud BUSATO, Paulo César. Dolo e Significado. Revista de Estudos Criminais. Nº31. outubro/dezembro de 2008.

(27)

Apesar da existência dessa concepção tripartida, o Código Penal brasileiro adotou uma posição bipartida do dolo, o apresentando como direto e eventual, sendo seguido por boa parte da doutrina. O artigo 18, inciso I do Código aponta:

Art. 18 - Diz-se o crime:

Crime doloso

I - Doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo

O estabelecimento do elemento subjetivo do tipo como dolo direto ou dolo eventual se origina nas divergências doutrinárias que levaram ao surgimento de algumas teorias. Dentre as existentes, Bitencourt analisa as seguintes:

a) A Teoria da vontade

Também conhecida como uma teoria clássica, a teoria da vontade defende que o dolo é a vontade dirigida a um resultado. Carrara afirmava que o dolo “consiste na intenção mais ou menos perfeita de praticar um ato que se conhece contrário à lei”21. A vontade que se analisa no dolo não é de violar a lei, mas de executar a ação visando o resultado.

Em posicionamento a respeito da importância da vontade para configuração do dolo, Hassemer22 chega a afirmar que o dolo

reside sem dúvida no lado interno do pensar e do querer (da vontade e da realização) e não no lado externo da ação e a causação: a atividade de evitação. Ou seja, uma teoria do dolo esquematicamente objetivada só pode ser exata quando o indicador externo representa completamente aquilo que se deva refletir(...)23.

Na hipótese de dolo eventual, o autor da ação assume o risco de produzir um resultado representado como possível, ou seja, ele consente na produção daquele resultado, havendo de sua parte um consentimento.

21 Apud, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. página 315. 16. Ed. São Paulo

Saraiva,2011.

22 Hassemer renuncia a ideia de dissociação entre o elemento cognitivo e volitivo para configuração do dolo. Da

mesma forma que Engish, reconhece que o dolo se encontra no aspecto interno do agente e aceita que a assunção de conceitos abstratos para descrever o dolo, seja como decisão a favor da lesão de bens jurídicos, seja como uma conduta contra bens jurídicos, ou como negação legítima realizada pelo agente. Essa discussão pode ser encontrada em “Dolo e significado” de Paulo César Busato.

(28)

b) Teoria da representação

Segundo essa teoria, para a existência do dolo basta que o agente tenha a representação do resultado como certo ou provável ou tenha uma representação subjetiva deste.

Atualmente essa teoria não angaria muito crédito. Von Liszt e Frank, seus principais defensores, acabaram reconhecendo que somente a representação de resultado não era bastante para configurar o dolo, sendo necessária a existência de uma relação psíquica entre o agente o resultado, que só pode ser identificada na expressão da vontade.

c) Teoria do consentimento

Esta teoria também reconhece a importância da vontade mesmo que não dirigida para o resultado possível ou provável, assume o risco de produzi-lo. Tal consentimento é sinônimo de querer.

As divergências entre a teoria da vontade e do consentimento foram atenuadas ao conciliarem a noção de dolo como representação e vontade ao mesmo tempo. Pois, vontade e consciência estão vinculadas, sendo a previsão sem vontade inexpressivo ao Direito Penal e a vontade sem previsão algo impossível de existência.

Chegou-se à conclusão de que os dois elementos estruturam o dolo: o primeiro é o conhecimento do fato que constitui o ato tipificado, sendo por isso chamado de elemento cognitivo; o segundo é a vontade de realizar tal ato, também conhecido como elemento volitivo. Existe um vínculo de dependência entre esses dois elementos, pois o conhecimento é o pressuposto da vontade de agir.

Comparando as teorias apresentadas e o preceito legal do art. 18 do Código Penal, nota-se que este adotou as duas teorias: a teoria da vontade, que abrange a teoria da representação, para o dolo direto, e, ao mesmo tempo, a teoria do consentimento que complementa a teoria da vontade no quesito de dolo eventual.

O estudo do dolo quando abordado como direto não levanta muitas discussões normalmente envolvendo casos que demandam provas simples para comprovação do fato. De maneira simplificada, no dolo direto, o autor representou facilmente o

(29)

resultado e dirigiu seus atos objetivando produzi-lo, tanto o elemento cognitivo como o volitivo se completam plenamente24.

Como observa Cuello,

los problemas del dolo, que son además los de la imbricación entre su aspecto substantivo y procesal, comienzan, podemos decir, utilizando el caso de la intencionalidad o dolo directo sólo como referente, cuando uno u otro de los aspectos del concepto tradicional de dolo, el elemento intelectivo o el volitivo, no se dan completos. A partir de este momento, además, comienza la relevancia especial de la prueba del dolo de cara a perfilar um concepto de dolo practicable; (...) Podemos, y debemos, además, apuntar ya, después lo veremos con más detenimiento, por qué: No exactamente porque no podemos ‘ver’ qué quiso el autor, sino porque el concepto (psicológico) de querer es muy ambíguo y desde luego hay que “prepararlo” para una imputación (en nuestro caso penal)25.

Se há possibilidade de falha ao utilizar o conceito psicológico para aferição do dolo, uma das soluções apontadas por parte da doutrina é recorrer ao contexto para inferir a intencionalidade do agente.

?Cuando podemos decir que se há querido causar una lesión tan grave, por peligrosa, como para fundamentar em ella la imputación del resultado acaecido a título de dolo (...)? Uma primeira respuesta e esta árdua pregunta, como sólo Jakobs, com la osadía que le caracteriza, se há atrevido a admitir, remite al contexto. El contexto, ciertamente, puede ser esclarecedor(...)26.

Paulo César Busato afirma que para entender o dolo é necessário fazer referências a elementos externos, por isso, há estreita relação com a teoria da prova. O dolo se resume àquilo que pode-se demonstrar. É preciso demostrar objetivamente a intenção subjetiva do agente. Em suas palavras:

Não resta, pois, nenhuma dúvida de que a identificação do dolo não pode vir da descrição de um processo psicológico, mas somente da identificação do que Hassemer27 qualifica de ‘indicadores externos’. O dolo definitivamente

não “é” um fato, mas uma atribuição de uma decisão contrária ao bem jurídico, na qual se expressam conhecimento e vontade (p.16).

24 Essa definição de dolo direto pode se evidenciar controvertida se considerarmos que o dolo direto não pode

ser facilmente definível pela expressão “querer o resultado”, pois existem situações em que o agente não quer o resultado atingido, ou mesmo lamenta a sua ocorrência. O mesmo ocorre com o “assumir o risco de produzir o resultado” no dolo eventual.

25 CUELLO CONTRERAS, Joaquín. Aspectos substantivos y procesales del dolo. Revista Peruana de Ciências

Penales. Número 16. Página 141. Disponível em: www.ibccrim.com.br. Acessado em 03 de dezembro de 2017.

26 Ibidem, página 148.

27 “Em resumo, Hassemer entende que o dolo é uma decisão a favor do injusto; mas entende também que o dolo

é uma instância interna não observável, com o que sua atribuição se reduz à investigação de elementos externos que possam servir de indicadores e justificar sua atribuição. Por isso, estes indicadores só podem ser procurados na mesma ratio do dolo, que se explica em três sucessivos níveis: situação perigosa, a representação do perigo e a decisão a favor da ação perigosa. Em BUSATO, Paulo César. Dolo e significado. Revista de Estudos Criminais. 31. outubro/dezembro de 2008, p. 15.

(30)

Se o dolo não existe enquanto um dado constatável, ontologicamente, mas é resultado de uma avaliação - e valoração - dos fatos, para que se faça uma atribuição do dolo aos interditos de vida, precisamos recorrer a cosmovisão que enseja tais atitudes e, somente então, concluir se é devida ou não a imputabilidade penal28.

Lançando um olhar do Direito estatal estabelecido sobre a prática dos interditos, existe uma lesão ao bem jurídico vida daqueles que sofrem o ato, podendo tal prática ser considerada um homicídio. Entretanto, ao verificar os aspectos culturais aos quais está inserido quem atua, percebemos que os elementos basilares do dolo de homicídio não estão presentes nestas práticas.

Uma das elementares do dolo é a consciência da ação que está sendo executada naquele exato momento, ou seja, é necessária uma consciência atual29 e efetiva da ação, que neste caso é a materialização do núcleo do tipo “matar”. No momento da interdição à vida, o elemento cognitivo que represente a retirada de uma vida não está presente30.

Como elucidado anteriormente, o “ente” que sofre o interdito não é considerado uma vida para aqueles que praticam o ato, pois nestas sociedades o nascimento cultural tem preponderância sobre o nascimento biológico, sendo aquele o fator definidor da aquisição da vida e da pessoalidade.

O “ente” é considerado uma vida potencial, mas que ainda não foi formada. Por conta disso, não é possível atribuir ao ato de interdito a consciência da prática de “matar alguém”. Partindo do pressuposto de só existir vontade se houver cognição, podemos concluir que o elemento volitivo não se configura. Logo, na prática dos interditos de vida não existe vontade de subtrair a vida. Existe a tentativa de impedir que aquele novo ser se torne uma vida.

28 Tal posicionamento pode ser encontrado entre aqueles que defendem o dolo como uma atribuição normativa.

Ibidem, p. 16.

29 Segundo Zaffaroni, o dolo não exige um conhecimento atual, mas pode ser integrado com alguns

conhecimentos atualizáveis: “existem alguns conteúdos de consciência que não podem ser separados de outros em que ‘se pensa’, o que significa que quando focalizamos a consciência sobre alguns objetos há um compensar em outros, que não podem ser separados dos anteriores, sem qualquer necessidade de que expressamente pensemos nos segundos”. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral -Volume I. 2012, p.435.

30 O objeto do conhecimento deve ser delimitado quanto à natureza desse objeto. Ou seja, “a) os elementos

descritivos do tipo legal (homem, coisa) , como realidades concretas perceptíveis pelos sentidos, devem ser apreendidos na forma de sua existência natural; os elementos normativos do tipo legal(coisa alheia, documento), com conceitos jurídicos empregados pelo legislador devem ser apreendidos conforme seu significado comum, segundo a valoração paralela ao nível do leigo – a célebre fórmula de MEZGER -, e não no sentido de definição jurídica respectiva, porque, então, somente juristas seriam capazes de dolo”. Juarez Cirino dos Santos. Direito Penal Parte Geral. p.134.

(31)

Nas palavras de Cuello Contreras:

“Con el de dolo no describimos qué quiso el autor a quien se lo adscribimos, sino que le imputamos una voluntad de lo que causó conociendo ciertas circunstancias intimamente relacionadas com lo ocurrido , salvo que aduzca otras circunstancias concurrentes en el caso que permitan adscribir el resultado a voluntad distinta31.

Somente é possível chegar a esse entendimento inserindo a ação ao contexto cultural em que ela é praticada. As circunstâncias do ocorrido para avaliar o que, no nosso entendimento, seria a retirada de uma vida, devem ser somadas às concorrentes advindas da perspectiva do agente do crime tipificado. Não se pode ignorar a relação de estranhamento e inadequação com seres que não se inserem com sua cosmovisão de pessoalidade no momento da valoração do dolo.

Entretanto, a análise do elemento subjetivo do tipo não é suficiente no oferecimento de respostas à apreciação da responsabilidade criminal em casos de interditos de vida. Devido justamente à relatividade perspectiva indígena, concepção segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos, precisamos analisar a imputação penal através dos componentes objetivos do conceito de crime.

(32)

CAPÍTULO III. ANÁLISE DA (IR)RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

A questão de maior interesse para os penalistas é saber analisar a responsabilidade penal daqueles que praticam os interditos de vida, ou seja, saber se o indígena responde ou não pelas condutas contrárias às normas penais e de qual maneira. Neste capítulo, nossa análise recairá sobre as propostas de enfrentamento da questão nos casos de homicídio de crianças em comunidades tradicionais.

1. A inimputabilidade ou a imputabilidade diminuída

Alguns sistemas jurídicos defendem a impunidade de indígenas praticantes de fatos considerados ilícitos devido a sua incapacidade de culpa. Outros apresentam como solução uma imputabilidade diminuída com a possibilidade de atenuação das eventuais penas imputadas32.

Ao possuírem cosmovisões distintas dos ocidentais, com suas respectivas concepções morais e sociais atreladas, os povos ameríndios trariam consigo uma incompreensão destas percepções, até passarem por um processo educativo. Para os defensores desta tese, a situação dos silvícolas se equipararia a dos menores de idade: “O indígena está numa situação geral de imaturidade que deverá ser tida em conta na apreciação da sua imputabilidade”33.

Fazendo uma análise sob o viés do Direito Comparado, é observado em alguns códigos de países da América do Sul a solução de inimputabilidade para fatos criminalmente ilícitos praticados pelos índios e a aplicação de medidas de segurança. O Código Penal boliviano em seu art. 17 prescreve que são “inimputáveis (...) nº5: O índio selvagem que não tiver tido nenhum contato com a civilização”. O artigo seguinte determina a atenuação da pena com possível aplicação de medida de segurança se a capacidade de querer ou agir do agente estiver diminuída podendo o juiz proceder da mesma forma “quando o agente for indígena cuja capacidade derive da sua inadaptação ao meio cultural boliviano e da sua falta de instrução34.

O Código Penal colombiano diz em seu artigo 96:

32 SILVA DIAS, Augusto. Problemas do Direito Penal numa sociedade multicultural: o chamado infanticídio ritual

na Guiné-Bissau

33 SILVA CUNHA, in Jornal do Fôro, ano 11 (1947). Apud Augusto Silva Dias.

34 Apud SILVA DIAS, Augusto. Problemas do Direito Penal numa sociedade multicultural: o chamado infanticídio

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