O conceito de propriedade, conforme os relembra Lúcia Valle Figueiredo,
“pode ser econômico-social, metajurídico, ou a partir de qualquer enfoque pessoal
que se lhe queira atribuir”. Já o direito de propriedade é “o traçado pelo ordenamento
constitucional vigente, que o denota e cuja conotação será dada pelas normas
infraconstitucionais, a par das interpretações jurisprudencial e doutrinária que, não
desbordando da ‘moldura’, vão paulatinamente, enriquecendo-lhe o conteúdo”
118.
Celso Antônio Bandeira de Mello também distingue
119:
O direito de propriedade é a expressão juridicamente reconhecida à propriedade. É o perfil jurídico da propriedade. É a propriedade tal como configurada em dada orientação normativa. É, em suma, a dimensão ou o âmbito de expressão legítima da propriedade: aquilo que o direito considera como tal.
Na nova ordem instalada a partir de 1988, o direito de propriedade continua
assegurado, no entanto, também o está o direito, pertencente à coletividade (de
natureza transindividual
120, pois), de atendimento da função social da propriedade.
Assim, a transformação se opera no próprio conceito de propriedade. É o
próprio instituto que surge metamorfoseado – a ponto de não haver mais precisão
técnica na afirmação de que se encontra o direito de propriedade na esfera do direito
privado, ante os contornos evidentemente públicos que recebeu a partir da nova
disciplina constitucional e da própria introdução do parágrafo 1º do artigo 1.288 do
novo Código Civil (Lei 10.406, de 2002), que diz:
118
Op. cit., p. 25. 119
Novos aspectos da função social da propriedade no direito público, RDP, vol. 84, p. 39. 120
O direito ao cumprimento da função social da propriedade é claramente um direito coletivo, no sentido lato da expressão, no sentido dos incisos I a III do parágrafo único do artigo 81 da Lei 8.078/1990, Código de Defesa do Consumidor.
O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
De fato, a propriedade e o direito de propriedade encontram seu fundamento
na Constituição, sendo o Código Civil tão somente o instrumento que disciplina as
relações entre particulares, no que diz respeito ao exercício dos direitos inerentes ao
status de proprietário (uso, gozo, fruição e disposição, além do direito de reaver a
propriedade de quem a possua ou detenha injustamente)
121. Nos parece, pois,
bastante coerente o posicionamento do professor Oswaldo Aranha Bandeira de
Mello, no sentido de que o direito de propriedade pertence à seara do Direito Público
e não à do Direito Privado
122.
No mínimo, é de se aceitar o fato de que as fronteiras entre o Direito Público
e o Direito Privado se tornaram fluidas, restando mitigada em grande medida a
imemorial dualidade e o caráter eminentemente individualista da propriedade.
Assim, ante as disposições constitucionais da Carta Democrática de 1988 e
mesmo do que dispõe o Código Civil, não faz mais parte do arcabouço de
faculdades do proprietário não usar, não fruir e não dispor.
De princípio, quando o direito de propriedade tinha por função unicamente
proteger o interesse do indivíduo perante os demais e mesmo perante o Estado, os
poderes inerentes à propriedade eram absolutos e cabia unicamente ao proprietário
decidir o que, quando e como em relação à coisa sobre a qual exercia o domínio.
O instituto, porém, evoluiu e hoje a preocupação do ordenamento jurídico é
tutelar o acesso de todos à propriedade, de forma sustentável, de modo que os
novos contornos desta visam proteger os objetivos sociais da coletividade em face
121
Cf. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª ed., São Paulo, RT, 1989, p. 242. 122
do abuso no exercício individual do poder econômico.
E é nesse ponto que o dever de dar à propriedade a destinação social para a
qual é vocacionada se distancia das limitações administrativas, decorrentes do
exercício do chamado Poder de polícia. É que as limitações administrativas têm
conteúdo negativo (forçando a uma abstenção de conduta) ou positivo (v.g.,
compelindo ao recolhimento de uma taxa ou à instalação de equipamentos de
segurança), porém impondo ao particular um comportamento (positivo ou negativo)
que se relaciona com o exercício de um dado direito, mas que com ele não se
confunde, por lhe ser externo. Já a imposição de promover o cumprimento da função
social da propriedade diz respeito ao próprio direito de propriedade. É como dizer
que o proprietário é compelido a exercer o seu direito, sob pena de vê-lo
prejudicado. Em outras palavras, o que se exige do proprietário é que use, goze,
frua ou então disponha de seu patrimônio, conforme os ditames da justiça social
relacionados à função específica de dada propriedade. O dever é, então,
diretamente vinculado à vocação da coisa pertencida.
Na realidade, a função social da propriedade não limita o direito de
propriedade, mas integra a própria definição desse direito. Por isso é que
hodiernamente a conceituação jurídica do instituto “Propriedade” deve incorporar
esse compromisso entre a ordem liberal e a ordem social
123. Propriedade é, hoje, o
poder-dever
124de usar, gozar, fruir e dispor da coisa, conforme a sua função social.
Assim, quando o Direito consagra o direito de propriedade em nível
constitucional, visa proteger o que Celso Antônio chama de funcionalidade da
utilização, ou seja, a aptidão natural da coisa, conjugada com a destinação social
que cumpre, segundo o contexto em que está inserida
125. A propriedade que
merece, pois, plena proteção constitucional é a propriedade-qualificada
126. Adilson
123
Cf. Carlos Ari Sundfeld. Função social da propriedade, Temas de Direito Urbanístico, vol. I, São Paulo, RT, 1987, p. 2.
124
A propriedade carrega em si o poder sobre a coisa, oponível a terceiros, mas também o dever de fazer cumprir a função social específica do bem em favor da coletividade.
125
Apud Carlos Ari Sundfeld, op. cit., p. 16. 126
Abreu Dallari leciona
127: “De acordo com a formulação constitucional, o sistema
jurídico brasileiro somente consagra, comporta e ampara o direito de propriedade
enquanto e na medida em que ele estiver cumprindo uma função social”.
Diante de tal cenário, pode-se perquirir se, na verdade, a propriedade é
função social. Esse foi o entendimento desposado por Leon Duguit
128, na obra Les
Transformations du Droit Privé depuis le Code Napoleón, na qual reuniu o material
das conferências realizadas em Buenos Aires no ano de 1911
129.
Duguit justifica sua posição
130:
Todo indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade uma certa função, na razão direta do lugar que nela ocupa. Ora, o detentor de riqueza, pelo próprio fato de deter a riqueza, pode cumprir uma certa missão que só ele pode cumprir. Somente ele pode aumentar a riqueza geral, assegurar a satisfação de necessidades gerais, fazendo valer o capital que detém. Está, em conseqüência, socialmente obrigado a cumprir esta missão e só será socialmente protegido se cumpri-la e na medida em que o fizer. A propriedade não é mais o direito subjetivo do proprietário, é a função social do detentor da riqueza.
Em que pese a adesão de juristas de grande peso, dos quais ouso,
humildemente, discordar, tal conclusão não parece totalmente acertada, apesar de
fundar-se em raciocínio coerente.
O professor Celso Antônio Bandeira de Mello é categórico ao afirmar que “a
propriedade ainda está claramente configurada como um direito que deve cumprir
uma função social e não como sendo pura e simplesmente uma função social, isto é,
bem protegido tão só na medida em que a realiza”
131.
127
Adilson Abreu Dallari, Desapropriações para Fins Urbanísticos, Rio de Janeiro, Forense, 1981. 128
Influenciado pelo positivismo de Augusto Comte, cf. Guilherme José Purvin de Figueiredo. A propriedade no
Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Esplanada, 2004, p. 69.
129
Apud Carlos Ari Sundfeld, op. cit., passim. 130
Idem. 131
E, de fato, o mestre tem razão. Pois, se assim não fosse, não haveria razão
de ser para a previsão legal de indenização na desapropriação-sanção determinada
pelo parágrafo 4º do artigo 182, da Constituição de 1988. Se a propriedade fosse
simplesmente função e não direito, bastaria ao Poder Público confiscar o bem, sem
indenização qualquer, na hipótese de descumprimento de sua função social
132. Se a
Constituição prevê o pagamento de indenização na hipótese de desapropriação-
sanção (é verdade que mitigada, pois não se vincula, em princípio, à exigência de
ser paga “em dinheiro”
133, posto que o pagamento poderá se dar com títulos da
dívida pública, em parcelas anuais e sucessivas, com prazo de resgate de dez
anos
134), significa que o não atendimento da função social não acarreta o
desaparecimento da propriedade (ou mesmo do direito de propriedade), por isso, a
propriedade não é função, mas sim tem função social.
Na verdade, essa é uma constatação. No entanto, não é a solução ideal
para a questão do atendimento do interesse coletivo. Com efeito, Guilherme José
Purvin de Figueiredo, de forma bastante apropriada, lamenta tal situação em sua
magistral tese de doutorado A propriedade no Direito Ambiental:
132
Cynthia Regina de Lima Passos aponta, em sua dissertação de mestrado Regime jurídico da propriedade
urbana na Constituição de 1988 e a superação do conceito único de titularidade no Direito Civil brasileiro,
de 2006 (ainda inédita), que a Constituição Boliviana traz solução diversa para a questão do descumprimento da função social da propriedade: “A propriedade, por sua vez, é submetida ao interesse público ou social, isto é, seu exercício é condicionado à proteção dos direitos coletivos, sociais, o que significa dizer que não merece proteção, e sequer será indenizada em caso de desapropriação, aquela propriedade privada cuja utilização se dá em desconformidade com os direitos sociais e ambientais. A função social inscreve-se como essência da propriedade: nessa perspectiva, a propriedade é uma função social” (p. 89).
133
Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXIV: “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;”.
134
Sobre a indenização que decorre da desapropriação-sanção, algumas questões interessantes surgem, relacionadas ao caráter do pagamento do justo valor em títulos da dívida pública. Uma delas é a dúvida em relação ao fato de essa modalidade de indenização atender ao requisito de ser prévia.
Conforme o entendimento externado pelo professor Guilherme José Purvin de Figueiredo em debate que se seguiu ao primeiro painel do Seminário de Direito Ambiental e Urbanístico – Cidade de São Paulo: Proteção do Meio Ambiente Natural e Cultural, realizado pelo Instituto Brasileiro de Advocacia Pública no Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, em 28 de fevereiro de 2007, a determinação constitucional de ser prévia a indenização, constante do inciso XXIV do artigo 5º da Constituição e não afastada pelo texto do artigo 182, parágrafo 4º, inciso III, é plenamente atendida por ocasião da entrega dos títulos da dívida pública ao expropriado, que deverá se dar antes da transferência da titularidade do bem imóvel urbano ao Poder Público expropriante. Efetuada a entrega dos títulos fica ultimado o pagamento. A questão do resgate em parcelas anuais não descaracteriza o caráter prévio da indenização. Dessa forma, assim que os títulos forem adjudicados ao expropriado, a titularidade do bem pode ser transmitida de pronto ao Poder Público municipal.
Houvesse na Carta de 1988 um maior rigor na defesa do interesse público, certamente seria consagrado o entendimento de que a propriedade é uma função social. Melhor seria que nosso ordenamento constitucional tivesse erigido efetivamente a propriedade á condição de função social (e não esta à condição de elemento constitutivo daquela), desconstituindo o direito daquele que descumprisse tal princípio135.