• Nenhum resultado encontrado

1. CONSTITUIÇÃO E URBANISMO

1.2. URBANISMO

Com a industrialização, veio a necessidade de mão de obra (de baixíssimo

custo) e o sonho de uma vida melhor atrai brasileiros de toda a parte, além de

estrangeiros de várias regiões do planeta.

A partir das décadas de 1930 e 1940, em decorrência da Segunda Grande

Guerra, as mulheres passam a encontrar seu lugar no mercado de trabalho e

41

Como bem frisado por Celso Fernandes Campilongo em Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 2000, passim.

mesmo as crianças passam a assumir tarefas. Trata-se de fabulosa força de

trabalho, cujo suor ajudou a alimentar a transição do Brasil agrário e rural para o

Brasil industrial e urbano.

As cidades passam a crescer sem o devido planejamento. Alocar o grande

volume de pessoas que chegavam a cada dia aos centros urbanos era um problema

do qual não se ocupava com a necessária seriedade o Estado.

A expansão desordenada determinou o surgimento de formas irregulares de

moradias, como os cortiços (grandes mansões eram locadas a inúmeras famílias,

cada qual ocupando uma pequena porção de espaço e compartilhando

equipamentos sanitários com as demais).

A Lei Lehman

42

buscou solucionar o problema declarando ilegais essas

moradias irregulares. Essa medida, porém, somente contribuiu para o deslocamento

dessa massa humana para a periferia das cidades, ainda de urbanização incipiente

ou nula.

Sem imóveis prontos para ocupar, não restou a essas pessoas senão

instalar-se de forma precária e improvisada (ocupação de terrenos vazios, com a

construção de simulacros de residências, em madeira, folhas de zinco ou outros

materiais nos quais raramente a alvenaria se incluía). Tem início um processo de

“favelização” nunca visto até então

4344

.

Essas favelas passam a ser erguidas principalmente ao longo de linhas de

circulação (estradas e avenidas) e cursos d’água

45

.

42

Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979. 43

Cf. José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 23. 44

A pesquisa IBGE 2000 nos Municípios revela a presença de assentamentos irregulares em quase 100% das cidades com mais de 500 mil habitantes e, em menor escala, nas cidades médias e pequenas (fonte: página da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades na internet, http://www.cidades.gov.br, em 18/7/2003).

45

Como relatado pela Profa. Ermínia Maricato, em palestra proferida no Instituto dos Advogados de São Paulo em 20 de junho de 2002.

Relegadas ao descaso das autoridades, esses aglomerados habitacionais

improvisados se transformam em densos núcleos populacionais, que crescem

desordenadamente e totalmente alheios aos benefícios da urbanificação, sem

atenção estatal e sujeitas a toda sorte de controle por organizações não oficiais,

como o crime organizado.

Soluções paliativas (e mais voltadas ao controle social do que propriamente

à distribuição de benefícios ou à solução efetiva do problema), como a instalação de

guias e sarjetas para possibilitar a passagem de viaturas oficiais e vistas grossas à

realização de instalações elétricas clandestinas ou não, foram, via de regra, tudo o

que essas populações receberam do Poder Público ao longo de décadas.

E mesmo a negativa de fornecimento de tais equipamentos comunitários

mínimos serviu de fomento, ao contrário do que pretendia o Poder Público, para as

ocupações irregulares.

Em recente palestra intitulada “Meio ambiente e exclusão social: o processo

histórico de urbanização da metrópole paulistana”, proferida no dia 28 de fevereiro

de 2007, no auditório do Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São

Paulo, por ocasião da realização do Seminário de Direito Ambiental e Urbanístico

“Cidade de São Paulo: proteção do Meio Ambiente Natural e Cultural” pelo Instituto

Brasileiro de Advocacia Pública, o professor Alaôr Caffé Alves referiu-se à estratégia

de não instalar equipamentos comunitários em terrenos à margem de importante

reservatório de água na capital paulista, com a finalidade de desestimular ocupações

irregulares em área de proteção ambiental.

Conta o professor Alaôr Caffé Alves que tal fato determinou a desvalorização

dos lotes ali já existentes, levando seus proprietários a vendê-los por valores

irrisórios ou mesmo a simplesmente abandona-los, o que deu início a um enorme

processo de ocupação irregular da área, gerando um problema de proporções

absurdas, no qual se vêem em confronto os interesses de dezenas de milhares de

indivíduos em oposição aos interesses de milhões de habitantes da região

metropolitana da Grande São Paulo.

A ocupação de áreas públicas e particulares, a autoconstrução parcelada ao

arrepio das posturas administrativas (e muitas vezes com risco à vida e à saúde

pública), o dano ambiental e mesmo a lesão ao direito constitucional de moradia das

populações irregularmente assentadas são conseqüências de décadas de descaso

estatal para com a situação (tal qual a atitude que se atribui – indevidamente, uma

vez que este animal na realidade não adota esse comportamento – ao avestruz, que

ante a ameaça esconderia a cabeça num buraco, deixando que todo o restante de

seu corpo permaneça exposto ao perigo).

Diante desse cenário, resta um déficit habitacional de 6,6 milhões de

unidades no país, sendo 1,3 milhão no campo e 5,3 milhões nas cidades, segundo

estimativas da Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais

46

. Tal déficit é maior na

zona urbana

47

e atinge sobretudo a parcela de menor renda da população, sendo

que das famílias atingidas 84% conta com renda inferior a três salários mínimos. No

entanto, 67% dos recursos para habitação eram concedidos, no final do século XX, a

famílias com renda superior cinco salários mínimos, que não representavam, então,

mais do que 18,3% dos assalariados do país (IBGE/PNAD, 1999)

48

.

A globalização econômica, a crise do emprego, a queda do poder aquisitivo,

a redução da massa salarial

49

têm causado um tal agravamento da situação que já

não se pode mais qualificar como minoria a parcela da população sujeita a habitar

moradias irregulares

50

, num contexto em que se vêem desprovidas do privilégio de

46

Conforme destaca Luiz Cláudio Assis Tavares, em Questão da habitação social: desafios e perspectivas, in

Boletim do Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, janeiro de 2005, p. 13.

47

“Em 1972, quando em Estocolmo a comunidade das nações proclamou a convenção de proteção do meio ambiente, dando um sentido sistemático à proteção ambiental e incluiu a questão urbanística, 70% da população do mundo vivia na cidade. Hoje já estamos com 80% da população vivendo na cidade e numa perspectiva de 6 milhões de pessoas em 2025”, conforme manifestação de Daniel Fink no Seminário de

Regularização Fundiária, realizado nos dias 26 e 27 de junho de 2003 em São Paulo.

48

Luiz Cláudio Assis Tavares, Boletim..., p. 14. 49

A renda dos assalariados na cidade de São Paulo caiu em 28,7% entre 1997 e 2002. Em 1989 havia cerca de 614 mil desempregados na cidade; em 1999 já eram 1 milhão e 750 mil, segundo João José Sady em A nova classe que habita a não-cidade. Revista de Direito e Política, maio a agosto de 2004, p. 79.

50

Na cidade de São Paulo, a parcela da população que vive em favelas saltou de 1% para 20%, de 1995 a 1999. No final do século XX, a cidade tinha 2000 favelas nas quais residiam 200 mil famílias. Além disso, havia 600 mil famílias habitando ilegalmente, no mais das vezes sem água, esgoto ou iluminação. A área ocupada pelas moradias irregulares ocupava 17% do território da cidade, segundo o Projeto Moradia.

O IBGE aponta que o número de moradores em favelas subiu 25,4% entre 1996 e 2000, ao passo que o número total de moradores da cidade aumentou em 6%. Isso significa que o aumento da população favelada aumentou

desfrutar adequada e dignamente das funções essenciais da cidade: habitar,

trabalhar, recrear e circular

51

.

É de se perguntar se para essa parcela já bastante significativa da

população há alguma participação no consenso que garante legitimidade à

Constituição. Em outras palavras: essas pessoas partilham da convicção de que a

Constituição é feita por elas e para elas?

Isso tem a ver com a crise de legitimidade das instituições, referida por José

Eduardo Faria

52

, que se generaliza no Brasil. Esses cidadãos brasileiros não

acreditam que a Constituição seja uma resposta a seus anseios e aspirações, assim

como não acreditam no Estado do Bem Estar Social (preferindo crer na maldade

estatal

53

), entregando-se à autotutela ou permitindo-se conduzir pelo poder paralelo

(muitas vezes exercido à força pelo crime organizado, outras vezes por instituições

como igrejas e outras organizações não governamentais).

Essa situação gera prejuízos de diversas ordens e naturezas, começando

pelo abandono da esperança de realização daqueles direitos que compõem o “piso

vital mínimo”

54

estabelecido pela Constituição, e desembocando na miséria, na

violência desenfreada e na ruptura do tecido social.

As ocupações irregulares, em quaisquer de suas possibilidades, a par de

inúmeros outros problemas de interesse urbanístico (violência urbana, ocupação de

áreas públicas e de interesse especial, degradação do interesse turístico e

paisagístico, dificuldade em proporcionar serviços públicos, etc.), geram um enorme

problema urbanístico e ambiental.

quatro vezes mais do que o resto da cidade. Já o índice de homicídios aumentou em 30% (João José Sady, op.

cit., p. 79-80).

51

Assim definidas na Carta de Atenas, de 1933. 52

José Eduardo Faria. O Direito na Economia Globalizada.1ª ed., 2ª tir. São Paulo: Malheiros, 2000, passim. 53

Conceito segundo o qual o Estado é o inimigo, aquele que arrecada tributos e não devolve benefícios, aquele que multa e confisca, mas não oferece contrapartida.

54

Descritos no artigo 6º da Constituição Federal, como direitos sociais: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e a infância e proteção ais desamparados.

A situação é visível a olho nu, sendo impossível deixar de notar a

precariedade das moradias, a total ausência de equipamentos públicos e, sem

dúvida o que mais impressiona: o alarmante volume dos dejetos domésticos

(excrementos, resíduos e bens pós-utilizados

55

) lançados aleatoriamente ao redor

das moradias, em lixões improvisados e nos cursos d’água próximos,

transformando-os mesmo em esgotos a céu aberto.

Os primeiros a serem atingidos por esse passivo são os próprios moradores

das habitações irregulares, que passam a conviver diuturnamente com problemas os

mais diversos que, sem dúvida, se espraiam para muito além das redondezas,

afetando a cidade como um todo.

Abandonados à própria sorte, esses moradores dedicam-se

desesperadamente à satisfação de suas necessidades mais básicas (alimento e

abrigo), sujeitando-se a abrir mão do bem maior em prol do qual é erigido todo o

sistema jurídico-constitucional pátrio: a dignidade da vida humana.

Em seguida, por óbvio, essa massa de problemas urbanísticos e ambientais

passa a atingir difusamente a habitantes de toda a região, mediante dificuldades de

circulação, aumento da criminalidade, contaminação do solo, do ar atmosférico, de

mananciais e de cursos d’água superficiais e subterrâneos, além de inundações

originadas em locais de assoreamento, transmissão de enfermidades por vetores e

pela ação dos ventos que carregam partículas contaminadas, além da degradação

do patrimônio cultural, histórico, paisagístico e turístico, etc.

Resumindo, a questão envolve sério perigo à saúde pública e ao meio

ambiente, além de ameaçar a ordem urbanística.

55

A diferença básica entre a denominação genérica de “resíduo” e a de bem “pós-utilizado” está no fato deste último representar um tipo específico de resíduo, que tem sua gênese não como decorrência direta do consumo, mas sim na arbitragem de uma vida útil média estabelecida na própria concepção do produto. (...) Esta diferenciação entre os bens “pós-utilizados” e os demais resíduos é fundamental para que se perceba as

distintas concepções por trás de um invólucro de leite vazio e um automóvel abandonado após anos de uso, cf. Paulo Jorge Moraes Figueiredo. A sociedade do lixo: os resíduos, a questão energética e a crise ambiental. Piracicaba: UNIMEP, 1994.

A Constituição contém princípios e normas capazes de proporcionar solução

para a situação posta. No entanto, é possível falar em eficácia somente a partir do

momento em que as soluções indicadas e previstas na Carta deixem de ser apenas

formais (Constituição no aspecto formal) e instrumentais (Constituição no aspecto

instrumental) e passem a ser efetivamente materiais (Constituição no aspecto

material), concretizando-se no dia-a-dia das pessoas que compõem, hoje, e

comporão no futuro, a comunidade para a qual a Constituição Federal se destina.

Para isso, é preciso que o Estado aja como promotor de efetivo bem-estar

social. E o Direito Urbanístico é importante instrumento nesse mister.

O Direito Urbanístico carrega em seu ventre a possibilidade de estabelecer

um mínimo de ordem (cosmos), a fim de que os objetivos constitucionais possam de

realizar de forma sólida e permanente, possibilitando o exercício adequado dos

direitos e garantias individuais e sociais estabelecidos na Constituição. Caso

contrário, corre-se o risco de instalar-se o caos, e a sociedade brasileira, submetida

a esse processo de formação de um pobretariado, na expressão de Michael Löwy

56

,

desacostumado à desobediência civil legítima, e muitas vezes carente de

conhecimento, independência intelectual e política e capacidade de entender as

relações interpessoais num nível elevado, poderá eleger outras formas de

resistência ao status quo francamente desfavorável e injusto, resultando em

convulsão social que tanto pode tomar o rumo da revolução (no sentido kelseniano

de ruptura institucional, na qual uma determinada ordem jurídica é revogada por uma

nova) quanto da pura e simples derrocada das instituições e do Estado de Direito

57

.

56

Löwy nos informa que “os sindicalistas cristãos/marxistas de El Salvador inventaram um termo que associa todos os componentes da população pobre e dominada: o ‘pobretariado’", referindo-se aos “desempregados, semidesempregados, marginais, bóias-frias, vendedores ambulantes, etc. — excluídos do sistema de produção formal”. Michael Löwy. O catolicismo latino-americano radicalizado. Estudos avançados , vol.3, no.5. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, Jan./Abr. 1989. Tradução de Mário Laranjeira. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-

40141989000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 24 Mar 2007. 57

Situação que, infelizmente, já é possível perceber, não sem profundo estarrecimento, pelas notícias profusamente divulgadas pela mídia de massa.

O Brasil é uma nação dotada de um potencial fabuloso para a felicidade

58

(sendo a busca da felicidade um dos ideais humanos, conforme estabelecido na

Declaração da Independência dos Estados Unidos da América), posto que rico em

recursos naturais e humanos. Falta apenas um bom gerenciamento de curto, médio

e longo prazos. Para isso nossa Constituição tem os instrumentos imprescindíveis. É

necessário somente decidir e agir.