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O discurso, segundo Lacheret-Dujour (2007), é explicado tanto como um processo enunciativo, capaz de explorar os recursos verbais e não verbais da linguagem, objetivando um fim comunicativo, como um objeto acabado, que resulta, também, da enunciação. Consequentemente, ao propor uma interação entre prosódia e discurso, dois domínios emergem: um primeiro, do contexto de produção, e um segundo, relacionado aos traços linguísticos que o discurso produz. Pensando numa interface prosódia-discurso nos dias atuais, a autora comenta que duas perspectivas têm sido consideradas. A primeira delas, relacionada à produção, corresponde à estrutura entonodiscursiva e é baseada em um modelo lógico-algébrico. Por sua vez, a segunda relaciona-se à compreensão, procurando entender como os índices prosódicos agem durante os processos de interpretação dos enunciados. Em outras palavras, fica claro que, a partir dessas considerações, não é possível concebermos prosódia e demais elementos linguísticos como duas coisas distintas, mas sim como elementos que atuam em conjunto na oralidade, durante os processos de construção de sentido e que, portanto, os estudos acerca dessa interdisciplinaridade precisam ser mais explorados.

A associação entre prosódia e discurso já havia sido mostrada, ainda que de maneira modesta, em Aristóteles (1998). No Livro III, o autor examina os elementos a partir dos quais a persuasão seria obtida. O autor nos mostra como tons, ritmo, volume e harmonia são dispostos no discurso do orador. Assim, o que hoje entendemos como prosódia já figurava como um elemento discursivo que corrobora a construção de sentido desde a antiguidade clássica:

a pronunciação assenta na voz, ou seja, na forma como é necessário empregá-la de acordo com cada emoção (por vezes forte, por vezes débil ou média) e como devem ser empregues os tons, ora agudos, ora graves ou médios, e também quais os ritmos de acordo com cada circunstância. São, por conseguinte, três os aspectos a observar: são eles volume, harmonia e ritmo. Aqueles que, entre os competidores, empregam estes três aspectos arrebatam quase todos os prêmios; e tal como os actores têm agora mais influência nas competições poéticas do que os autores, o mesmo se passa nos

debates deliberativos devido à degradação das instituições políticas. (ARISTÓTELES, 1998, p. 176)

De certo modo, o autor sugere que elementos de natureza prosódica atuam de maneira significativa em diversas situações comunicativas. O sucesso ou não sucesso da atividade argumentativa está condicionado ao “bom uso” de volume, harmonia e ritmo, que se enquadram no que hoje chamamos prosódia. Aristóteles (1998) entende que o discurso precisa ter, por exemplo, um ritmo conveniente e não ser desprovido deste para ser bem sucedido. Em suma, reafirmamos que modulações no modo de falar (como mudanças de altura melódica, prolongamento ou não de sílabas etc.), junto a outros fatores, dão forma aos processos argumentativos e à força retórica dos enunciados e isso vem sendo evidenciado desde a Antiguidade Clássica.

Passando à argumentação na contemporaneidade, Amossy (2011), na continuidade da retórica clássica, entende que uma análise argumentativa pode servir aos demais campos de estudo, como de literatura e comunicação, atuando ora como um quadro, ora fornecendo instrumentos de trabalho, o que nos sugere, novamente, uma interdisciplinaridade. O discurso argumentativo, que se desenvolve em uma situação de comunicação, engloba diversos recursos linguísticos, como escolhas lexicais, semânticas e prosódicas. O comentário da autora é o seguinte:

O discurso argumentativo não se desenrola no espaço abstrato da lógica pura, mas numa situação de comunicação em que o locutor apresenta seu ponto de vista na língua natural com todos os seus recursos, que compreendem tanto o uso de conectores ou de dêiticos, quanto a pressuposição e o implícito, as marcas de estereotipia, a ambiguidade, a polissemia, a metáfora, a repetição, o ritmo. (AMOSSY, 2011, p. 132-133. Grifos nossos)

Desse modo, a autora comenta que o discurso argumentativo se desenvolve numa situação de comunicação em que são apresentados pontos de vista na língua natural de quem os enuncia, compreendendo todos os recursos da língua, inclusive o ritmo. Ampliando as discussões da autora, acreditamos que entre esses recursos da língua incluem-se outros aspectos prosódicos, além do ritmo. A intenção do falante, expressa via prosódia, é um fator importante a ser englobado aqui. Ao argumentar, o orador constrói seu discurso e age sobre o outro também pelo seu modo de falar e não somente pela ação, dando pistas ao ouvinte sobre seu comportamento em relação a ele.

Galinari (2011) também discute o lugar da argumentação nos estudos discursivos, retomando três abordagens que a compreendem de maneiras distintas. Segundo o autor, a

Teoria da Argumentação na Língua vê a argumentação como uma “semântica ideal da frase”, gerando conclusões a partir dos enunciados. Por sua vez, a Linguística Textual entende que a argumentação consiste numa sequência ou tipo textual, cujas relações lógicas são estabelecidas, em uma sequência argumentativa, por conectores textuais do tipo mas, portanto etc. Charaudeau, em sua Teoria Semiolinguística, associa a argumentação a um tipo específico de organização do discurso. Contrariamente a essas abordagens e ancorado na tradição retórica, Galinari (2011) propõe que a argumentação consiste em uma

dimensão profunda dos enunciados sociais, que ora pode ser depreendida do seu componente lógico, ora de seu componente narrativo, descritivo, enunciativo e, mais provavelmente, na inter-relação entre tais “ferramentas simbólicas”, incluindo ainda, nesse turbilhão de recursos os elementos citados no parágrafo anterior [as configurações sintáticas, a seleção lexical, os valores e representações reportadas, a estrutura prosódica, o componente temático, entre outros] . (GALINARI, 2011, p. 100)

Na verdade, a proposta do autor é que a argumentação não seja compreendida como um modo de organização discursiva, como querem Charaudeau e outros analistas do discurso, tampouco como um tipo textual, tal qual Adam e outros pesquisadores da Linguística Textual. Trata-se, para Galinari (2011), de compreender a argumentação como uma propriedade da linguagem. Nesse sentido, o logos passa a ser entendido como uma estrutura linguístico- discursiva, carregado de múltiplas dimensões. Além de englobar o discurso, como tradicionalmente definido, o logos passa, nessa perspectiva, a compreender todos os componentes linguísticos do discurso. Entre as diversas modalidades de logoi possíveis, destacamos a que o autor chamou de logos-prosódico. Aqui, estariam incluídas questões relacionadas a variações de tempo, altura melódica e de acento. Novamente, vemos a relevância de serem estudados elementos que corroboram a construção de sentido, como questões relacionadas à entonação e duração, constituintes do logos-prosódico.

Outro trabalho em que encontramos alguma referência à prosódia nos estudos discursivos é o de Dascal (2005). Como lembrado pelo autor, a pragmática reconhece que informações contextuais obtidas por meios não discursivos também são importantes para a interpretação dos enunciados. Nas palavras do autor,

há tempos que os pragmaticistas não consideram mais “para-linguísticas” as informações que provêm dos gestos, da orientação do olhar, da expressão facial, do tom de voz etc. Elas são de fato consideradas fazendo parte da atividade discursiva que, sem elas, seria incompleta e insuficiente. (DASCAL, 2005, p. 63. Grifos nossos)

O autor sinaliza de maneira evidente que outros constituintes atuam junto à argumentação na construção de sentido e, consequentemente, na interpretação do enunciado. Novamente, vemos que elementos prosódicos (o tom de voz e, também, a prosódia gestual, ao citar expressões faciais, orientação do olhar e gestos) desempenham um papel importante nos processos discursivos. Tal importância é reconhecida pelo autor ao afirmar que esses elementos fazem parte da atividade discursiva, a qual seria incompleta e insuficiente sozinha.

As discussões apresentadas neste capítulo mostram que a prosódia é importante para a construção de sentido. É interessante notarmos que desde a Antiguidade os aspectos dessa natureza já eram tratados como elementos que fazem parte da argumentação retórica. Numa perspectiva atual, diversos autores como Galinari e Amossy fazem menção a esse componente linguístico. Touati (1993), por exemplo, abordou a prosódia retórica em diferentes discursos de políticos franceses, antes e após as eleições. Nossa discussão vem ao encontro desses estudos, na tentativa de mostrar que a prosódia é um elemento linguístico que atua junto ao discurso, corroborando a construção de sentido. Em outras palavras, o que vimos até aqui é que não há discurso (oral) sem prosódia, assim como a prosódia não se realiza fora do discurso.

3.2.1 A prosódia no discurso político no PB

Encontramos no PB alguns trabalhos em que a prosódia é associada ao discurso. Contudo, é mister que esses estudos sejam ampliados e ressaltamos que, numa interface prosódia-discurso, especialmente quando se trata do discurso político, poucos trabalhos são encontrados. Pensando especialmente nessas situações discursivas, em situação de debate eleitoral, a prosódia desempenha um papel importante na construção de sentido, pois ela é um dos elementos que condiciona o sucesso ou não dos atos de fala, por exemplo, de candidatos aos cargos de governo. É por meio dela, junto a outros fatores, que percebemos uma crítica ou ironia entre os candidatos e reconhecemos esses momentos de ataque.

Piovezani (2011), ao apresentar estudo sobre os usos e sentidos da voz no discurso político, tenta fazer uma abordagem prosódica, sem, no entanto, se ater às funções que esta desempenha. Para este trabalho, o autor analisou sequências discursivas retiradas do Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral das eleições presidenciais de 2002 dos candidatos Lula e José Serra. Piovezani (2011) buscou descrever e interpretar certos usos e efeitos dos segmentos e de elementos prosódicos. O autor reconhece que as modulações da voz, além de contribuírem para a construção e manutenção das imagens dos interlocutores (ou ethos, pode-

se acrescentar), podem expressar emoções e que as funções a serem desempenhadas por elementos prosódicos dependem do sentido que o discurso visa a produzir. Outro ponto a ser destacado é que, como lembrado pelo autor, a entonação é responsável, entre outras coisas, por marcar o foco no discurso e estruturar pressupostos argumentativos.

Em trabalho posterior, Piovezani (2013) se propôs a analisar os elementos prosódicos de um pronunciamento eleitoral de Dilma Rousseff. Em relação à entonação, o autor nos diz que ela é contínua, com pausas, às vezes mal colocadas entre verbo e seu objeto. O autor pondera que há, em algumas ênfases de sílabas tônicas, determinadas oscilações de volume. Questões relacionadas ao tempo constroem, finalmente, uma fala um tanto quanto hesitante, mas ainda tranquila e amena (PIOVEZANI, 2013). A proposta do autor, na verdade, é mostrar como a imagem do sujeito Dilma Rousseff (então candidata à presidência da República) se constrói, atribuindo às questões enfáticas ou rítmicas ou, ainda, às questões entonacionais, um papel de constituinte nessa formação imagética da candidata. A título de curiosidade, é possível notarmos que a fala hesitante da candidata ainda chama a atenção da mídia. Exemplos recentes podem ser encontrados nas últimas eleições, quando Dilma Rousseff foi reeleita, em que os meios midiáticos questionavam sua oratória.

Entendemos que os dois trabalhos de Piovezani (2011; 2013) trazem contribuições aos estudos linguísticos, especialmente no que respeita a uma interface prosódia-discurso. Em ambos os trabalhos, o autor atribui a questões de natureza prosódica alguma contribuição nos processos de construção da imagem dos candidatos. Entretanto, os trabalhos são bastante fechados ao redor das questões discursivas, sem explorar as possiblidades maiores que podem ser contempladas num estudo prosódico, como um estudo das atitudes que são trazidas ao discurso não somente por meio da argumentação retórica, mas por modulações na voz, ou seja, pela maneira como cada candidato as constrói.

Além dos trabalhos aqui revisados, outras pesquisas também discutem as relações entre prosódia e discurso, ainda que de maneira modesta. Entendemos, no entanto, que os estudos nessa área precisam ser ampliados, o que nos levaria a um conhecimento mais detalhado sobre a função atitudinal da prosódia no PB, associado aos processos de construção de sentido. Assim, ao tentar mostrar como a prosódia se junta à argumentação retórica nos momentos de desconstrução do ethos e de desqualificação do outro em debates eleitorais, objetivamos corroborar esses estudos que já foram iniciados.

4 METODOLOGIA

Para que possamos alcançar nosso objetivo e determinar qual o papel da prosódia na expressão das atitudes de ataque no discurso político, adotamos como corpus, neste trabalho, enunciados extraídos de quatro debates transmitidos por redes de TV abertas, durante as eleições ao governo de Minas Gerais em 2014. Os debates analisados foram transmitidos pela Band Minas, em 07 de agosto; pela Rede TV!, em 21 de setembro; pela TV Alterosa, em 23 de setembro e, finalmente, pela Globo Minas, em 30 de setembro7. Nossa opção por esses debates políticos justifica-se por estes serem situações comunicativas nas quais o ethos de cada candidato é construído, além de trazerem situações discursivas que permitem ou propiciam que um candidato desqualifique seu adversário, por meio da desconstrução da imagem deste.