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A proteção dos direitos humanos como fortalecimento da “cápsula de contenção” do estado de exceção: a contribuição de Eugenio Raul Zaffaron

3 AS POLÍTICAS CRIMINAIS BRASILEIRAS CONTEMPORÂNEAS E A CRIAÇÃO DE UM ESTADO DE EXCEÇÃO

4 O RESGATE DO DISCURSO DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA A CONTRUÇÃO DE UM MODELO DE CONTROLE

4.3. A proteção dos direitos humanos como fortalecimento da “cápsula de contenção” do estado de exceção: a contribuição de Eugenio Raul Zaffaron

“Acredito que toda autoridade tem de se justificar. Que toda hierarquia é ilegítima enquanto não demonstrar o contrário.

Às vezes pode se justificar, mas na maioria das vezes, não. E isso... isso é anarquismo.”

Noam Chomsky

A partir das críticas abordadas, compreende-se que a ideia sedimentada sobre o crime e o criminoso são construções biopolíticas, inseridas pelo controle em nome da ordem e, portanto, escondidas atrás do pano de fundo da defesa social.

A evolução das penalidades e da repressão não é por acaso, pois existe, de fato, um processo estrutural de “reformas sociais” baseado em dinâmicas invisíveis e anônimas inseridas para o avanço do mercado capitalista. Compreendendo o que foi exposto até o momento,

43 O PNUD Brasil expõe na plataforma digital os objetivos do Programa: “Uma das prioridades do PNUD no Brasil

é a erradicação da pobreza e da fome, em todas as suas formas e dimensões, e a garantia da dignidade e da igualdade para todos e todas, sem deixar ninguém para trás. Apesar dos avanços obtidos pelo país no que tange à redução da pobreza ao longo dos últimos anoso país ainda figura entre os mais desiguais do mundo. As desigualdades estruturantes baseadas em situação de domicilio, gênero, raça e etnia são o maior desafio de desenvolvimento do País. Objetivo: Como pilar da Agenda 2030, o PNUD Brasil tem como foco fortalecer o desenvolvimento social em todo o território brasileiro, promovendo o desenvolvimento de capacidades para reduzir as desigualdades, superar crises e garantir o acesso de toda a população a bens e serviços públicos de qualidade, sem discriminação por gênero, raça, idade ou orientação sexual. Este eixo também prevê aprimoramento da qualidade de vida e trabalho das populações rurais e avanço da base de Cooperação Sul-Sul. Tudo isso por meio de iniciativas junto aos governos municipais, estaduais e federal, a sociedade civil, o setor privado e organizações internacionais, fortalecendo as capacidades de formulação, monitoramento e avaliação de políticas sociais, em busca de uma sociedade inclusiva com plenos direitos a todas e todos. Resultados: Capacidades institucionais fortalecidas para promover crescimento e desenvolvimento inclusivos e sustentáveis, incorporando capacidades produtivas para a geração de empregos e renda para as populações pobres e em extrema pobreza; Combate às mudanças do clima e seus efeitos adversos.” Disponível em: < http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/pessoas.html>.

amadurecendo a ideia (real) de que a Política Criminal caminha a passos políticos, é possível “aceitar” a afirmativa de que transformações históricas no entorno do Direito Penal sempre estão interligadas aos aparelhos repressivos do Estado – e este último, conduzido pelo controle de regularização de classes em nome do capital econômico.

Numa economia capitalista, o mercado grita a ordem de que as classes sociais despossuídas são, evidentemente, o objetivo principal das instituições penais. Evidentemente, porque a Política Criminal articula-se consoante as condições materiais do inimigo, pois, para ser eficaz “as instituições e práticas repressivas devem impor, a quem ousa violar a ordem constituída, condições de existência piores do que as garantias a quem se submeter a ela.” (DE GIORGI, 2006, p. 39). A reclusão ultrapassa a esfera da liberdade individual, eis que, sistematicamente, expõe a estratégia do controle de toda uma classe marginalizada.

A excessiva criminalização de determinados corpos no Brasil é oriunda desta sistemática, tendo em vista o encarceramento em massa e a estigmatização dos contingentes populacionais provenientes de baixa escala social. Tendo em vista que o estado de exceção é, também, uma construção humana, o estudo esboça, sobretudo, as medidas em que a política criminal brasileira contemporânea - alicerçada em discursos repressivistas de controle social - reproduz a opressão exercida precipuamente contra/sobre essas camadas pauperizadas.

A consolidação desta lógica violenta de imposição de repressão do outro perdurará enquanto sobreviver a grosseira premissa etiológica-individual de que tais pessoas existem, e que, são determinantes e enquadram-se no perfil estereotipado criminalmente, subsistindo a (des)ilusão quanto à possibilidade de construção de sociedades mais justas (DIETER, 2012).

Destarte, os discursos da Criminologia Crítica atentam para a política inserida de modo exacerbado no Sistema Penal, e, surgem, como ferramentas conceituais utilizadas para a (re)formulação de um modelo de controle social pautado pela proteção/promoção dos Direitos Humanos – em detrimento da lógica repressivista e estereotipada, incutida através da política criminal de exclusão do homo sacer e da permanência constante de um “estado de exceção” na sociedade brasileira contemporânea.

Do exposto, Baratta (1983, p. 146) caracteriza que “o desigual tratamento de situações e de sujeitos iguais no processo social de definição da ‘criminalidade’, responde a uma lógica de relações assimétricas de distribuição do poder e dos recursos da sociedade”.

No entanto, observa-se que o Direito Penal não pode ser tratado como fator socioeconômico, ainda que, durante anos tenha perseverado dubiamente por este lado. Visando a recomposição do Sistema Penal, delineia-se a questão dos Direitos Humanos, resgatando o

discurso da Criminologia Crítica como condição de possibilidade para a construção de um modelo de controle social pautado na proteção/promoção dos direitos humanos.

Deste modo, busca-se efetivar a proteção dos direitos humanos como fortalecimento da “cápsula de contenção” do estado de exceção. Na perspectiva em tela, o Direito Penal atua como mecanismo de tutela de direitos humanos – por meio de sua dupla finalidade, qual seja: “do fraco ofendido ou ameaçado com o delito, como do fraco ofendido ou ameaçado pela vingança; contra o mais forte, que no delito é o réu e na vingança é o ofendido.” (WERMUTH; ENGELLMANN; CALLEGARI, 2012, p. 377).

Contrariamente à (re)produção da delinquência, tendo em vista a prática recorrente do Direito Penal no cenário brasileiro, de escassez de garantias e aprisionamento “eficaz”, Juarez Cirino dos Santos (2015, p. 06) designa o teor histórico introduzido na sistemática, eis que

a criminalização do oprimido, segundo a Criminologia crítica – cumpriria a função de moralizar a classe operária, mediante inculcação/aquisição de uma legalidade de base: a aprendizagem das regras da propriedade, o treinamento para docilidade no trabalho, a estabilidade na família, na habitação etc. Por outro lado, essa criminalidade de repressão, localizada nas classes oprimidas da população, realizaria o papel de ocultar a criminalidade dos opressores, com suas leis tolerantes, tribunais indulgentes e imprensa discreta. Em definitivo, a teoria política da criminalidade desenvolvida por Foucault repudia o conceito de natureza criminógena de determinados indivíduos, para mostrar o crime como jogo de forças, no qual a posição de classe produz o poder e a prisão. A imagem de um julgamento que coloca juiz e réu frente à frente é antológica: se o magistrado tivesse tido a infância pobre do acusado, poderia ser o réu em julgamento; se o réu fosse bem nascido, poderia estar no lugar do juiz.

No âmbito brasileiro, diante dos discursos jurídico-penais que efetivam a proliferação do capitalismo, em detrimento de uma massa explorada e criminalizada, a supressão de um direito penal do autor não “interessa” às agências controladoras da ordem. Para Vera Regina Pereira de Andrade (1994), a violação encoberta da igualdade jurídica e da legalidade pela seletividade estrutural é decorrente de um Sistema Penal falho, que convive com a “violação aberta” da legalidade, tendo em vista o grau do que é amplamente documentado no campo vigente, como se de Direito fosse... Sobretudo, ainda que a normativa doutrine o Direito Penal de forma garantista, observa-se que a nobre atuação da regra torna-se utopia, em contrapartida ao sustentáculo político-econômico:

O controle da criminalidade aparece no contexto político da luta de classes das sociedades modernas, marcado pelo fracasso dos objetivos ideológicos de repressão da criminalidade e de correção do condenado, que encobre o êxito histórico dos objetivos reais de gestão diferencial da criminalidade: a lei penal é instrumento de classe, produzida por uma classe para aplicação às classes inferiores; a justiça penal constitui mecanismo de dominação de classe, caracterizado pela gestão diferencial das ilegalidades; a prisão é a instituição central da estratégia de dissociação política da

criminalidade, com repressão da criminalidade das classes inferiores e imunização da criminalidade das elites de poder econômico e político. (SANTOS, 2015, p. 08)

Superada a introdução crítica acerca da aplicabilidade real do Direito Penal, essa parte do estudo visa a compreender a função dos Direitos Humanos na construção de um novo contexto jurídico-penal. À vista disso, o conceito de Direitos Humanos “assume, nesse caso, uma dupla função. Em primeiro lugar, uma função negativa concernente aos limites da intervenção penal. Em segundo lugar, uma função positiva a respeito da definição do objeto, possível, porém não necessário, da tutela por meio do direito penal.” (BARATTA, 2003, p. 03). Aponta-se, ainda, que a Criminologia Crítica intersecciona os papéis entre sistema penal e sistema social, tutelando os direitos de modo universal e/ou global, de acordo com a consistência material e ideológica das relações existentes nas sociedades.

No debate jurídico-penal contemporâneo, é notória a preocupação do senso comum, ou seja, da sociedade como um todo, com o enfrentamento aos riscos representados pelas novas formas assumidas pela criminalidade – amplamente divulgadas através dos meios midiáticos, numa espécie de “histeria” contra o inimigo – propagando a cultura do medo, ao insuflar sinais de alerta aos cidadãos de bem (?!), clamando por políticas de segurança, suscitando, assim, inúmeras discussões acerca da capacidade dos poderes públicos em dar respostas efetivas aos problemas causados por tal criminalidade (WERMUTH, 2016).

Diante da compreensão de que a descriminalização de corpos é um ponto a ser conquistado pelos cidadãos mendigantes da Justiça Penal, que ainda acreditam no Estado e nas ações adotadas por este em função dos problemas sociais, almeja-se, num futuro próximo, que tais cidadãos constituam a maioria do povo ao desnudar as facetas inquisitórias da Política Criminal na construção da criminalidade, lutando contra a imposição da violência estruturada. Destarte, no cenário atual, o Direito Penal assume o centro dos debates – eis que “eleito” como instrumento privilegiado de resposta à todos os males causados pelo crime. Nesta linha, Wermuth (2016, n/p.) ressalta a “necessidade de expansão do seu raio de intervenção, bem como da importância de se relegarem a segundo plano princípios e garantias que davam sustentação à sua teorização liberal. Busca-se, com isso, uma maior eficiência no combate à criminalidade”. Com suas velhas fórmulas, suas penas ineficazes, o Sistema Penal mais incrementa do que combate a violência dos sujeitos criminalizados:

Esse direito penal dos traficantes, que traduz verdadeira guerra, não só suspende as garantias dos traficantes, mas abre espaço para a supressão das garantias de todos aqueles que como eles venham a ser considerados perigosos à vida da população. Trata-se de um direito incompatível com as práticas de poder na atualidade, por esse motivo não consegue limitá-las; trata-se de um direito viril, desde logo armado e

decidido a defender o velho e lúgubre cárcere, que não é capaz de engendrar novas práticas no sistema penal, aptas a traduzir uma atitude crítica em relação ao exercício do poder punitivo como um todo, e que sejam mais sensíveis ao sofrimento do outro. (BORGES; OLIVEIRA, 2013, p. 241)

Desta forma, a crescente “onda de crimes” é o discurso que sai da boca do povo, ainda que a criminalidade não seja crescente, mas pela falácia da mídia, cujo enfoque é a exaltação de tragédias interligadas ao patrimônio, como roubos, assaltos, homicídios, agressões e/ou crimes de trânsito, o horror ao crime é impregnado pelo discurso de ódio.

Em decorrência disso, influenciada pelos meios de comunicação, a massa clama pelas reformas do Direito Penal – o “salvador” da ordem que assegurará por intermédio do Estado a vigência da lei, cobrando a todo custo por maior rigidez através da intervenção punitiva. Nesse contexto, surgem os discursos positivistas:

Os poderes públicos, sabendo dos efeitos políticos positivos decorrentes do atendimento a essas demandas, respondem mediante promessas legislativas de intervenções penais mais duras e radicais. Não raro, verifica-se que os poderes públicos, inclusive, fomentam a criação de uma atmosfera de medo e insegurança em relação a determinados fatos, no intento de conseguir facilitar a aprovação de reformas legislativas ou impulsionar a população na demanda por leis mais duras. (WERMUTH, 2016, n/p.)

Para Wermuth (2016, n/p.) essa estratégia “quer dizer que o Direito Penal passa a ser utilizado enquanto ‘arma política’, ou, em outras palavras, um ‘instrumento de comunicação’ por meio do qual os poderes públicos deixam de se preocupar com o que pode ser feito de melhor” e neste sentido, preocupam-se, intencionalmente, com o que pode ser transmitido de melhor “até porque, caso não admitam as demandas populares em prol do recrudescimento punitivo, correm o risco de perderem sua clientela eleitoral e/ou serem vistos como antiquados ou ‘fora de moda’.” O autor sustenta, ainda, que poderes públicos agem de acordo com as demandas de clamor público (condicionado) no intuito de capturar capital político por meio de uma “falsa” demonstração exemplar da atividade da prática legislativa e da justiça penal.

Especialmente no Brasil, o ódio ao inimigo configura o ressurgimento do punitivismo voluntário, partindo de um discurso militante de punições severas, fortalecidas pela dogmática de um estado de exceção. Logo, pelo entendimento contraditório do combate à violência utilizando-se de mais violência, instrumentalizada na ordem pela polícia, o controle dissemina a reação social no intuito de perseguir o outro – a figura do homo sacer pode ser definida no contexto do negro e pobre, morador de favela de baixa renda, combinação perfeita na cultura brasileira para a estigmatização. De modo que

a política criminal passa a ocupar os espaços normalmente destinados a outras políticas disciplinares de controle social, sendo possível constatar uma substituição das políticas disciplinares inclusivas por meras práticas de exclusão e segregação baseadas quase que unicamente na intervenção do sistema penal. A mediação política nas relações sociais é substituída por um Direito Penal de emergência, e as questões sociais passam a ser tratadas como ‘questões de polícia’. (WERMUTH, 2016, n/p.)

Resistências persistem em nome da defesa da sociedade, consolidando o aparato policial que aproveita-se do desvirtuamento latente do Estado Democrático de Direito. Trava-se uma batalha contra à marginalidade, quando, em verdade, a função social deveria desempenhar a reabilitação de camadas marginalizadas pelo estigma social. Zaffaroni (2016) assevera que, embora exista um amplo consenso a respeito da rigidez da legislação penal nos últimos tempos, não há eficácia aparente em decorrência de tais normativas, considerando que a maioria da doutrina posiciona-se contrariamente à questão.

Identifica-se, portanto, um simulacro de Direito que adapta-se consoante a época, baseado na incapacidade de compreender e governar o real, tendo em vista a “transição a um poder de controle do excesso que não é mais produção, mas sim pura destruição de subjetividades. Através da vigilância, do gueto, do internamento, da guerra contra a imigração, da guerra humanitária, ele cultiva a ilusão de constranger a multidão em categorias [...]” numa espécie de ordem pré-concebida (DE GIORGI, 2006, p. 112, grifos do autor).

A proposta tática de contenção – previamente destinada ao combate do inimigo e as ameaças provenientes de suas ações – implica numa espécie de “separação” entre os indivíduos dentro do Sistema Penal, isto é, habilitar-se-ia o poder punitivo de uma maneira para os cidadãos e de outra para os inimigos, sinalizando-os como pessoas e não-pessoas.

Visando a estancar os avanços do direito penal do inimigo, Zaffaroni (2016, p. 156, grifos do autor) traz à baila a proposta tática de contenção de Jacobs, que “cumpre a função de reafirmar a vigência da norma, e essa função continuaria a ser cumprida no direito penal do cidadão, enquanto no direito penal do inimigo deveria operar como um puro impedimento físico”. Diante de tal imposição, percebe-se que a introdução terminológica de uma faceta já existente no Direito Penal choca a comunidade pelo seu linguajar expostamente discriminatório acerca das formas de contenção:

Porém, justamente o vocabulário é seu melhor acerto, pois sua terminologia põe em apuros todo o penalismo, dado que, ao resgatar e tornar explícito o conceito de inimigo ou de estranho e seu inevitável caráter de não pessoa, ele desnudou o fenômeno e, com isso, a má consciência histórica do direito penal (doutrina penal) frente à teoria política, tal como o destacamos. Pode-se afirmar que o maior mérito desta proposta é a clareza e a frontal sinceridade com que o problema é definido. (ZAFFARONI, 2016, p. 158, grifos do autor)

Neste contexto, a principal função a ser desempenhada pelo Direito Penal em um Estado Democrático de Direito é a de redução e contenção do poder punitivo, de forma a mantê-lo dentro dos limites menos irracionais possíveis, de forma a impedir a guerra e permitir que os conflitos sociais e políticos sejam resolvidos de forma não violenta, em sinal de respeito aos Direitos Humanos, pressuposto central da intervenção punitiva (ZAFFARONI, 2007). Nada mais atual do que a privação da vida, e, neste ínterim, da liberdade dos sujeitos, e então, o estudo nos conduz à análise da (re)produção da vida nua.

Para Souza (2010, p. 18) os desígnios do poder soberano operam no sentido de privar pessoas de seus direitos civis, constituindo “uma poderosa alavanca à consciência coletiva, uma ameaça mítica e real a pairar sobre as pessoas”. Ao tempo que o espaço da política define-se a partir da vida nua, ressalvados os direitos dos cidadãos e desdourando os direitos daqueles assinalados como homo sacer, o estado de exceção manipula o livre-arbítrio, de modo intolerante e parcial, abandonando todos os princípios do Estado de Direito.

Outrossim, a existência de tal estado de exceção “restauraria (no imaginário coletivo, digamos assim) a normalidade instituída pelo poder soberano (como identificar quem está “dentro” senão identificando quem está ‘fora’)” (SOUZA, 2010, p. 18). Nestes moldes, verifica- se que “o poder soberano não se limitaria ao poder de coerção a partir do par força/direito, a vida nua é a condição concreta de fora da jurisdição/normalidade existente, uma zona de indistinção que aterrorizaria a consciência dos homens, justificando a necessidade do Estado.” (SOUZA, 2010, p. 18).

Não obstante, Agamben (2002, p. 146) elucida que “se toda valorização e toda ‘politização’ da vida (como está implícita, no fundo, na soberania do indivíduo sobre a sua própria existência) implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, e então somente ‘vida sacra’”. Com tal característica, a vida sacra pode ser impunemente eliminada no estado de exceção, tendo em vista que a biopolítica impregnada na sociedade “fixa’ este limite, permitindo a conduta de eliminação do social, pois, fundamentalmente, decide quais são os “homens sacros”. Porventura, tal prática assemelha-se à violência da contemporaneidade: “Os segmentos excluídos da população, vítimas das mais diversas formas de violência física, simbólica ou moral – resultantes da opressão socioeconômica – acabam não aparecendo como portadores de direitos subjetivos públicos”, e, desta forma, não podem ser “considerados como verdadeiros ‘sujeitos de direito’, já que excluídos, em maior ou menor grau, do âmbito de proteção dos direitos e garantias fundamentais.” (SARLET, 2003, p. 90).

Neste paralelo traçado entre o estado de exceção e o Estado Democrático de Direito, conclui-se que a dogmática imposta pelo estado de exceção na modernidade consiste na tentativa de naturalizar na ordem jurídica o controle através da exceção. Pela realidade brasileira no campo jurídico-penal, em síntese, determina-se que “seria como se sobrevivesse apenas o império da lei – ordem e dever de obediência -; os direitos (liberdade de) foram monopolizados pelo poder soberano” (SOUZA, 2010, p. 21).

A visão de Agamben (2002, p. 184) atribui a tenacidade de um Sistema de Política Criminal, especialmente, classista, que garante a primazia da dimensão socioeconômica do Direito Penal, ao elucidar que o povo carrega desde sempre tal fratura biopolítica:

Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído. Daí as contradições e as aporias as quais ele dá lugar toda vez que e evocado e posto em jogo na cena política. Ele é aquilo que já e desde sempre, e que deve, todavia, realizar-se; e a fonte de toda identidade, e deve, porém, continuamente redefinir-se e purificar-se através da exclusão, da língua, do sangue, do território. Ou então, no pólo aposto, ele é aquilo