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O repressivismo nas políticas criminais brasileiras contemporâneas: o caso da guerra ao tráfico e ao crime organizado como paradigmas

3 AS POLÍTICAS CRIMINAIS BRASILEIRAS CONTEMPORÂNEAS E A CRIAÇÃO DE UM ESTADO DE EXCEÇÃO

3.2. O repressivismo nas políticas criminais brasileiras contemporâneas: o caso da guerra ao tráfico e ao crime organizado como paradigmas

“Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um é segurança e o outro é a liberdade. Você não consegue ser feliz, você não consegue ter uma vida digna na ausência de um deles, certo?”

Zygmunt Bauman.

“Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá. As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá...” Gonçalves Dias escreveu a “Canção do Exílio” em 1847. Trata-se de um poema rico sobre as paisagens e os encantos da pátria adorada. No ano de 2017, a canção foi parafraseada pelos alunos de uma escola estadual do Rio de Janeiro, moradores do bairro da Penha, localizado na Zona Norte da cidade, evidenciando a realidade brasileira à qual estão habituados:

Minha terra é a Penha, o medo mora aqui. Todo dia chega a notícia que morreu mais um ali. Nossas casas perfuradas pelas balas que atingiu. Corações cheios de medo do polícia que surgiu. Se cismar em sair à noite, já não posso mais. Pelo risco de morrer

e não voltar para os meus pais. Minha terra tem horrores que não encontro em outro lugar. A falta de segurança é tão grande, que mal posso relaxar.

'Não permita Deus que eu morra', antes de sair deste lugar.

Me leve para um lugar tranquilo, onde canta o sabiá.

A nova roupagem inclinada à substituição da letra graciosa da canção indica os horrores e as intranquilidades deste lugar. Compreende-se então a pátria desenhada pela estereotipagem, na qual a exclusão e a marginalização fizeram (e fazem) parte do processo de isolamento econômico, social e cultural do negro - e de toda a sua negritude, eis que a aglomeração das massas contornou a sistemática do desvelamento da dignidade da raça, “com suas indiscutíveis consequências funestas foi um produto natural de sua incapacidade relativa de sentir, pensar e agir socialmente como um homem livre” (FERNANDES, 1987, p. 95).

O comando da cidade organizou o espaço do negro, pois o branco senhor da casa não clamará a Deus pedindo para não padecer naquele lugar. Este espaço não se refere somente à

habitação, mas à ocupação do negro e de seus descendentes na estratificação social, ou seja, a função que o negro exerce na sociedade.

Imprescindível resgatar alguns pontos entre o Direito Penal e a Política Criminal de aniquilamento do outro, tendo em vista que, quando o processo de branqueamento não branqueia tanto assim determinados corpos, é necessário escondê-los e subjugá-los, oprimindo sua vez e sua voz, para que essa massa não se revolte contra a economia do capital. Expressões como “branqueamento” e “ascensão social” tiranizam a figura da raça, e, “aparecem como sinônimos quando relacionados ao negro.

Parece-nos que isso decorre do fato de que essa sociedade de classes se considera, de fato, como um ‘mundo dos brancos’ no qual o negro não deve penetrar” (BENTO, 2012, p. 26). Neste “progresso” social branqueador, a sociedade omite-se ao adotar o papel do tirano europeu e escravizar a massa negra.

Não há imposição aqui para a aceitação da realidade, eis que também não há contraposição daqueles que se aproveitam do que foi construído pelo Estado. Pelo contrário, Werneck (2001, p. 05) sustenta que a sociedade branca separa o “lado de dentro” e o “lado de fora” das escolhas, cujo sistema de silenciamento e aproveitamento baseia-se no ver ou não ver, também calcado na dogmática do não ser visto para quando os assuntos atingem a esfera da estratificação social e da discriminação.

O estigma não se aprofunda na questão sobre direitos, sobre ter um serviço prestado adequadamente, acerca de saúde e segurança, das chances de sobrevida, das políticas públicas que o Estado deveria empreender naquele local ou das possibilidades de vida digna. De modo superficial, o estigma impregna a valoração de sujeitos no âmbito social. Assim, o Direito Penal aniquila corpos todos os dias. São brechas e restos, cantos de lugares, devastações de corpos e de almas. O outro lado

vive as cenas de sempre: pobreza; doenças evitáveis e doenças degenerativas tratáveis provocando devastações em corpos e povos; acesso privilegiado ao sistema prisional e aos hospícios. Ou vivendo famintos e sedentos da seca, sem teto; meninos e meninas que vivem nas ruas, que são explorados sexualmente, jogados no vício da cola, do crack e da cocaína. O outro lado vive das brechas, das sobras. Numa disputa cotidiana com as forças do não-ser. Esquizofrenizando-se. Embranquecendo-se. Ou resistindo - a que? Se este sempre foi o país da democracia racial. Deixou de ser há pouco, já dissemos. Nestes tempos FHC. Mesmo assim, a aceitação da declaração pública da vigência do racismo no país ainda provoca polêmica em todos os níveis. Ou a inércia é a resposta dos que se importam, dos que compartilham os ‘bons sentimentos’. É cruel isto a que muitos chamam de democracia brasileira. Mas é o que vivemos todos os dias. (WERNECK, 2001, p. 05)

Constrangimentos múltiplos e a reprodução de uma violência guiada por mecanismos artificiais, delineados consoante “os meios que servem para regular as condutas dos membros da sociedade, estes meios são chamados de instrumentos de controle social, Aparelhos Ideológicos de Estado, agências controladoras ou aparelhos de hegemonia” (PEREIRA; BRAZ, 2015, p. 29). A ideologia do controle montou através do Estado um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade – a classe dominante comanda os dominados, fazendo os corpos submeterem-se às regras políticas, no grande jogo da Política Criminal brasileira.

Com efeito, como assevera Chauí (1980, p. 35) o “grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como Estado e direito”. Por intermédio das leis a dominação do Estado entranha-se nas raízes sociais, neutralizando o sentido de ordem para que não seja tida como uma violência, tendo em vista a legalidade e a funcionalidade do bem comum.

A correlação existente entre os disciplinados e a ordem seletiva é objeto da pesquisa de João Ricardo W. Dornelles (2008), o qual expõe que a seletividade e a estigmatização, impostas através da construção da figura do inimigo, são as principais características dos sistemas penais contemporâneos. Deste modo, o modelo social implantado no Brasil a partir da década de 1980 utiliza novos instrumentos e estratégias de controle social com mecanismos defensivos de ordem, produzindo a permanente sensação de insegurança e medo, além de que, tradicionalmente, a defesa social foi exaltada como garantia para a naturalização e reprodução de políticas seletivas de exclusão do outro.

Consoante o exposto, o modelo social funcionalista delineia o espaço urbano adequando-o para conceber todas estas seletividades, delimitando-os

por zonas normais ou legais e zonas anormais ou ilegais, explicando a distinção entre zonas saudáveis, normais e legais, e as zonas perigosas, anormais, de delinquência, por relações biologicamente determinadas, com fundamento em características pessoais e em processos de seleção natural. (DORNELLES, 2008, p. 21)

Nessa mecânica urbano-social, a favela é uma zona de delinquência pré estabelecida. Quando relacionada com a questão econômica, justifica-se que os aglomerados em tempos de crise foram despejados naquele local, eis que já não serviam e/ou não eram úteis para as demandas da sociedade, então foram excluídos da zona normal e “digna”. Assevera De Giorgi (2006, p. 59) que, durante os períodos de crise econômica, recessão, aumento de desemprego, bem como de deterioração das condições de trabalho “entra em cena uma nova ‘moralidade’.

Uma moralidade que se mostra severa para com os fenômenos de desvio e constitui terreno fértil para as campanhas de law and order promovidas pelas elites no poder”.

O Sistema Penal faz parte desta ampla sistemática do controle social das sociedades contemporâneas, visto que possui “uma personalidade exorcizadora que é tão ineficaz quanto inútil ou, na verdade, tem a utilidade de, em sua aparente inutilidade e ineficácia, cumprir o papel de controle rígido dos segmentos e classes sociais considerados ameaçadores à ordem social” (DORNELLES, 2008, p. 24, grifos do autor). Neste sentido, o modelo de Política Criminal desenvolvido na iminente crise do neoliberalismo globalizado “reverbera o fomento à orientação repressiva, autoritária e policialesca. Estimula a intensificação e extensão das sanções. Eleva o discurso punitivo eficientista que erige a seletividade estrutural do sistema penal, a criminalização de novas condutas e a exasperação das penas” (PEDRINHA; PEREIRA, 2011, p. 279). O modelo repressor punitivo e a intensa criação de punições rígidas

integram as diretrizes de uma Política Criminal bélica, a qual pode ser traduzida por um modelo de (in) segurança pública. Mas que se firma através da construção dos discursos de segurança, que enlevam a produção de subjetividade punitiva. Assim, em nome da liberdade, nunca se prendeu tanto. Em nome da paz, nunca se fez tanta guerra. Em nome da ordem nunca se produziu tanta desordem social, como o choque de ordem. Em nome da segurança, nunca se gerou tanta insegurança. O modelo de política criminal em tempos de crise, bélico, caracteriza-se pelos embates violentos, pelos enfrentamentos armados, pela busca de eliminação de alvos considerados inimigos, pela produção de mortes. (PEDRINHA; PEREIRA, 2011, p. 280)

A proliferação do inimigo externaliza a proeminência de um discurso de ódio, no qual a “branquitude” subjuga a carne mais barata do mercado e enfatiza a rotulação de contingentes populacionais. Wermuth (2017, p. 01) destaca o fato da “clientela” do Sistema Penal brasileiro ser composta majoritariamente por indivíduos pertencentes aos estratos sociais economicamente hipossuficientes, corroborando este viés com a ideia de “que existe não um processo de seleção de condutas criminosas, mas sim de pessoas que receberão o rótulo de delinquentes”. Por conseguinte, frisa-se, mais do que uma militarização da segurança pública, instaura-se uma militarização na vida social dos sujeitos determinados como homo sacer - na qual o sistema político-social é permissivo e punitivo, eis que determina o inimigo, localiza-o e referencia o aparato normativo e policial para segregar e criminalizar os corpos.

Na esfera punitivista, a expansão do Direito Penal apoia-se no status de defesa social, calcada nos princípios do bem estar comum e da segurança social, pressupondo a eficácia do direito no combate aos males da nação para propagar o discurso do extermínio do inimigo (SÁNCHEZ, 2011). A realidade de tal “defesa social” é o Decreto de Intervenção Federal no

Rio de Janeiro23, segundo o governo (fora!) Temer, a finalidade da medida é “conter grave

comprometimento da ordem pública”24. Na mesma linha (do tiro e da ordem), o ministro da Defesa, Raul Jungmann, salienta que “o cidadão poderá sentir e ter é um sistema muito mais robusto de segurança social, com coordenação mais estreita, capacidade operacional maior, inteligência bem mais integrada”. O objetivo é o de organizar o caos da ordem pública, legitimando, de fato, o estado de exceção delineado por Agamben (2002).

Historicamente as políticas assistiram os segmentos vulneráveis da população no Brasil, agindo em prol da ordem contando, para isso, com a repressão no tocante à vadiagem, à loucura, à pobreza, à indigência e à mendicância, modificando as conjecturas sociais para sustentar a criminalidade como pano de fundo nestas condições, tornando-as anti-humanas ou anormais.

23 O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso X, da

Constituição, DECRETA:

Art. 1º Fica decretada intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018.

§ 1º A intervenção de que trata o caput se limita à área de segurança pública, conforme o disposto no Capítulo III do Título V da Constituição e no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.

§ 2º O objetivo da intervenção é pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro.

Art. 2º Fica nomeado para o cargo de Interventor o General de Exército Walter Souza Braga Netto. Parágrafo único. O cargo de Interventor é de natureza militar.

Art. 3º As atribuições do Interventor são aquelas previstas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro necessárias às ações de segurança pública, previstas no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. § 1º O Interventor fica subordinado ao Presidente da República e não está sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção.

§ 2º O Interventor poderá requisitar, se necessário, os recursos financeiros, tecnológicos, estruturais e humanos do Estado do Rio de Janeiro afetos ao objeto e necessários à consecução do objetivo da intervenção.

§ 3º O Interventor poderá requisitar a quaisquer órgãos, civis e militares, da administração pública federal, os meios necessários para consecução do objetivo da intervenção.

§ 4º As atribuições previstas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro que não tiverem relação direta ou indireta com a segurança pública permanecerão sob a titularidade do Governador do Estado do Rio de Janeiro.

§ 5º O Interventor, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, exercerá o controle operacional de todos os órgãos estaduais de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição e no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.

Art. 4º Poderão ser requisitados, durante o período da intervenção, os bens, serviços e servidores afetos às áreas da Secretaria de Estado de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro, para emprego nas ações de segurança pública determinadas pelo Interventor.

Art. 5º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 16 de 2018; 197º da Independência e 130º da República.

24 Informações extraídas da reportagem realizada pela BBC no Brasil, redigida por Amanda Rossi na data de

21/02/2018. A notícia destaca que “O Senado aprovou nos últimos minutos desta terça-feira o decreto assinado pelo presidente Michel Temer que determina a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, deixando a segurança pública fluminense sob responsabilidade de um interventor militar, que responde ao presidente da República. O placar foi de 55 votos favoráveis, 13 contrários e uma abstenção”. Importante ressaltar o genocídio da população no Rio de Janeiro, que com essa medida, não cessará – pelo contrário, combate-se violência com mais violência: “Por que essa medida está sendo tomada no Rio de Janeiro, e não em outros Estados? O Rio de Janeiro vive uma grave crise de segurança pública, com aumento do número de homicídios, de mortes de policiais e confrontos com criminosos. Porém, outros Estados vivem emergências de segurança tão ou mais agudas. Enquanto a taxa de homicídios no Rio de Janeiro foi de 32 por 100 mil habitantes em 2017, no Acre foi de 55 por 100 mil e, no Rio Grande do Norte, de 69 por 100 mil”. A ação das Forças Armadas permanecerá até o dia 31 de dezembro de 2018. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43079114>. Acesso em: 15/03/2018.

Desta forma, a assistência policial e jurídica foi invocada numa espécie de salvação, consubstanciada através de um Direito Penal norteador “garantista” que conduz à intervenção erigido pela categoria de solucionador de conflitos sociais... Ora, agravaram-se penas e surgiram novos tipos penais, aumentou-se a severidade e a vigilância relacionada aos delitos e, ainda assim, o panorama atual encontra o cenário do encarceramento em massa sob o domínio de classes, organizado por intermédio de um controle penal autoritário, extremamente punitivo e genocida (COSTA, 2005).

Acerca da realidade brasileira, Roberta Duboc Pedrinha e Veny Leston Pessione Pereira (2011, p. 283) elencam “a multiplicação de vários níveis de preparação para a ‘guerra’, difusos ou concentrados, no interior da sociedade civil, que indicam um processo de naturalização do convívio com a violência”. Dentre eles, discursos focalizados em posse de armas, aprendizados sobre técnicas de defesa pessoal, comércio e divulgação de blindagens de automóveis, alarmes e grades em casas, segurança particular e colocação de câmeras de vigilância em residências e locais públicos.

Ainda, o isolamento de moradias em condomínios fechados, muros, cercas, cachorros adestrados no pátio, contratação de segurança privada, nos centros maiores a indicação e/ou formação de milícias e gangues para a eliminação dos indesejáveis, a privatização de espaços e outras técnicas de domínio, evidenciam a particularização de poucos em busca da tão desejada segurança (PEDRINHA; PEREIRA, 2011).

Em síntese, a notória proteção para o ataque num estado de guerra. Há que proferir, ainda, sobre o “digno” tratamento diferenciado para aqueles que povoam os locais considerados “anormais”, as zonas perigosas, pois a identificação dos inimigos desencadeia “um controle social muito mais autoritário sobre os cidadãos, próprio daquele exercido pelo Estado absoluto, pois aqueles estariam expostos a inúmeras formas de controle, limitações de liberdade e mesmo penalidades indevidas decorrentes de eventuais individualizações errôneas” (BORGES; OLIVEIRA, 2013). A respeito deste controle específico, do combate ao tráfico e ao crime organizado, Borges e Oliveira (2013, p. 239) compreendem a tendenciosidade política quando

se percebe das atuais tendências de reforma da legislação penal no Brasil, os traficantes de drogas são o principal alvo das políticas punitivistas do Estado. Os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, em sua maioria, propõem o aumento desproporcional das penas para todas as atividades que contribuem para a comercialização ilícita de substâncias entorpecentes, bem como a suspensão de benefícios para os acusados e condenados por esta prática. Por outro lado, boa parcela desses projetos apresenta medidas de descriminalização para o consumo dessas substâncias e vincula o Estado a elaborar projetos que facilitem o tratamento dos adictos.

A Política Criminal ampara o discurso dúbio de punição dos traficantes, oferecendo em contrapartida a dogmática do discurso médico para o tratamento dos dependentes de drogas, traduzindo assim uma falsa proteção à sociedade, quando, persegue uma tendência internacional de combate ao tráfico de entorpecentes que já fora esboçada em legislações do século passado. Fiore (2012, p. 14) fundamenta que a “produção e o comércio de drogas ilícitas são, junto com o tráfico de armas, o maior mercado criminoso do mundo. Funcionando sem nenhum tipo de regulação, o comércio dessas drogas envolve, na maior parte das vezes, exploração de trabalho [...]”, posto que utiliza-se da violência armada para demarcação de territórios e evolução do comércio local. Então, há que se admitir a existência de uma lógica utilitarista para essa massa estigmatização, interligada ao mercado capitalista e político.

Destarte, complementa-se tal discurso “numa trama que reflete o exercício dos biopoderes pelo Estado/Mercado para governar as populações. Nesse caso, o Estado/Mercado se apropria da vida, mapeia seus fenômenos, estabelece uma curva de normalidade e faz viver os normais e deixa morrer os anormais.” (FOUCAULT, 1999, p. 287, apud BORGES; OLIVEIRA, 2013, p. 239). Destarte, identifica-se uma política higienista que pretende “limpar” a sociedade dos males causados pelos criminosos, sustentada pela padronização dos corpos, amparada na normalização de todos os indivíduos:

Trata-se da chamada técnica de pastoreio, surgida no seio da Igreja para guiar dos cordeiros de Deus, agora utilizada pelo Estado/Mercado para, em nome de uma verdade científica, governar as populações, normalizá-las e docilizá-las. Neste sentido, verifica-se que os dependentes de drogas são doentes/anormais passíveis de tratamento e normalização, por esse motivo o Estado/Mercado cria mecanismos para curá-los, fazê-los viver e torná-los normais. Quanto aos traficantes, pode-se dizer que são percebidos pelo Estado/Mercado como ameaças à normalização dos demais e como nós de resistência na trama do poder normalizador, em razão disso é preciso deixá- los morrer e nada melhor do que a insalubridade do encarceramento. Além disso, é justamente esse poder de fazer viver, exercido pelo Estado e pelo Mercado quando assume as funções estatais, que autoriza a guerra e a inocuização daqueles que ameaçam a vida da população. Sabe-se que essa preocupação exacerbada com a vida, no atual estágio do modo de produção capitalista, tem um objetivo primordial: alongar a vida para consumir por mais tempo. (BORGES; OLIVEIRA, 2013, p. 240)

Assim, o Brasil tornou-se palco de práticas de combate aos pobres, de captura de criminosos e de extermínio das massas – o relatório da Anistia Internacional (2005), intitulado “Eles entram atirando: Policiamento de comunidades socialmente excluídas”25 embasa o

25 O relatório descreve como as comunidades socialmente excluídas se encontram encurraladas, de um lado, pelos

níveis elevados de violência praticada pelas gangues criminais e facções do tráfico e, de outro, pela repressão, pelas violações de direitos humanos e pela discriminação praticadas pelas forças policiais que deveriam lhes dar