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Proteção do patrimônio cultural

No documento PORTCOM (páginas 64-70)

2. Patrimônio: Um Conceito Abrangente

2.2 Proteção do patrimônio cultural

Em nosso mundo, a transmissão do patrimônio de geração a ge- ração está seriamente ameaçada, entre outros fatores, pela industriali- zação, pelo crescimento das cidades, pelos conflitos armados, pela de- gradação do meio ambiente, pelas consequências do turismo de massa desordenado. Por outro lado, há organismos reguladores, como afirma Stela Maris Murta:

[...] os órgãos de preservação, tais como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e seus similares estaduais e muni- cipais, são responsáveis pela gestão de grande parte dos atrativos históricos, culturais e ambientais, tendo de buscar alternativas de sustentabilidade financeira, entre as quais se destaca o tu- rismo que, por sua vez, depende fortemente desses atrativos.

119 CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. 2. ed. São Paulo: Studio Nobel, 1997, p. 160.

A experiência mostra que só uma comunidade consciente e engajada na preservação de seu patrimônio, como recurso de seu desenvolvimento econômico no presente, pode enfrentar as demandas do turismo sem ser engolida por ele no futuro. As- sim, a saída para a preservação é capacitar a comunidade para assimilar e explorar, em seu favor, as pressões do progresso e do desenvolvimento. Para tanto, os valores da preservação devem ser assimilados de forma eficaz por moradores e visitantes.120

Organismos internacionais, como a UNESCO, também podem auxiliar na preservação e salvaguarda de bens culturais. Nesse sentido, Fernando Fernandes da Silva argumenta que:

Embora a situação não seja das melhores, as autoridades res- ponsáveis pela proteção podem obter algumas vantagens em razão da inscrição dos bens culturais na Lista do Patrimônio Mundial, como, por exemplo, a divulgação ao público da impor- tância dos bens culturais pertencentes ao patrimônio cultural da humanidade a fim de angariar simpatia à causa da proteção. Essa linha de ação atende à função ‘publicitária’ da Lista do Pa- trimônio Mundial e permite a formação de um movimento de solidariedade da comunidade nacional favorável à proteção.121

O planejamento turístico eficiente aponta para a necessidade das destinações nacionais não permanecerem atreladas apenas aos recur- sos naturais, recursos que não devem ser desprezados, mas que não devem ser os únicos considerados.

A proteção do patrimônio natural e cultural é uma decorrência da necessidade de se preservar o meio ambiente mundial, como recupera

120 MURTA, Stela Maris. Turismo histórico-cultural: parques temáticos, roteiros e atrações âncora. In: MURTA, Stela Maris; ALBANO, Celina (Orgs.). Interpretar o patrimônio: um exercício do olhar. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Território Brasilis, 2002c, p. 140-141.

121 SILVA, Fernando Fernandes da. As cidades brasileiras e o patrimônio

Guido Fernando Silva Soares:

Na visão do desenvolvimento sustentável, a preservação do pa- trimônio natural e cultural, que constitui o hábitat do ser hu- mano, decorre dos deveres de resguardar aquilo que não se pode reconstruir, uma vez destruído. E tais deveres são referíveis (sic) a quaisquer seres que integram o conceito de humanidade, enti- dade sem fronteiras, que existe onde haja homens e mulheres.122

Em nossos dias, não se discute mais se as políticas culturais de- vem estar integradas às políticas sociais e econômicas, mas sim de que forma integrá-las como expressão do desenvolvimento social em seu papel na constituição da identidade coletiva. Da mesma maneira, a convergência entre as políticas culturais e turísticas é essencial e deve reforçar a complementaridade e evitar incoerências. O poder público deve assumir o protagonismo na planificação e controle dos possíveis impactos e problemas que possam surgir, assumindo sua função de instrumento para a educação, a promoção da identidade coletiva, do desenvolvimento social, econômico e cultural.123

Há, no Brasil, a falta de uma visão sistêmica e de complementaridade na gestão cultural. Conforme afirma José Carlos Durand: “no Brasil, sequer se sabe quantas prefeituras possuem secretarias de cultura e, por conseguin- te, em quantas os assuntos culturais são tratados através de secretarias de educação, esportes e turismo, ou outra qualquer.”124 Essa realidade pode ser melhor visualizada com dados do IBGE, que registram que não há órgãos exclusivos para gerir a cultura na maioria dos municípios brasileiros:

122 SOARES, Guido Fernando Silva. Prefácio. In: SILVA, Fernando Fernandes da. As cidades brasileiras e o patrimônio cultural da humanidade. São Paulo: Peirópolis; Edusp, 2003, p. 21.

123 ORAMAS, Alicia Hernández. Op. cit.

124 DURAND, José Carlos. Cultura como objeto de política pública. São

Paulo Perspectiva. São Paulo, v. 15, n. 2, 2001, p. 67.

[...] em 72% dos municípios brasileiros ainda predomina a cul- tura acoplada a outros temas. Somando-se esta porcentagem aos 12,6%, em que o setor é subordinado a outra secretaria, ou seja, configurando um menor status, temos que 84,6% de ór- gãos gestores não exclusivos da cultura. Quando a cultura está em conjunto com outras políticas setoriais – geralmente com a educação – ela costuma ser considerada de forma marginal.125

O Brasil possui dimensões continentais, tanto geográficas quanto culturais. A rica diversidade dos bens culturais do país necessita ser investigada e inventariada para que a comunidade local, num primeiro momento, e os visitantes, num segundo, possam assimilar, valorizar, salvaguardar e transmitir às gerações futuras esse patrimônio. O patri- mônio, hoje, segundo Carlos Alberto Dória:

[...] é bastante denso e espesso, caminhando para um engrossa- mento cada vez maior na medida em que a própria noção que o preside transborda dos limites do barroco para incorporar – no plano da arquitetura – o ecletismo e o modernismo como fontes de identidade estilística. Também a chamada ‘cultura imaterial’ passou a ser identificada e ‘protegida’ [...]126

Exatamente esses bens da cultura imaterial, via de regra, os mais significativos e menos valorizados, é que podem fornecer subsídios para um sentimento de pertencimento a uma comunidade, por extensão, a um país, constituindo-se como capital simbólico.127 Essa cultura, mui- tas vezes esquecida ou substituída pelos modismos internacionais, é aquela que pode conduzir uma comunidade a respeitar os valores éti-

125 IBGE. IBGE investiga a Cultura nos municípios brasileiros. Disponível em:<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_ visualiza.php?id_noticia=980&id_pagina=1> Acesso em: 05 fev. 2008. 126 DÓRIA, Carlos Alberto. A merencória luz do Estado. São Paulo

Perspectiva. São Paulo, v. 15, n. 2, 2001, p. 89.

cos, a formar laços solidários, a projetar-se social e economicamente, tornando-se viável para o residente e possível para o visitante, como afirma José Carlos Durand:

Uma visão sistêmica é necessariamente de longo prazo, embora seja possível ‘fazer explodir’, do dia para a noite, o público de museus e concertos, usando-se promoção intensiva na mídia de massa e/ou transformando uma exposição ou uma apresentação ao vivo em um ‘grande espetáculo’. [...] Para transformar um fre- quentador ocasional em um apreciador regular de cultura, é pre- ciso pensar a prazo mais longo. E dar-lhe educação artística.128

A consciência que atribui poder aos bens culturais não surge do dia para a noite, nem apenas com a participação do governo. Trata- -se de um processo longo, que envolve todos os setores da sociedade. Além disso, é preciso compreender que a legitimidade do patrimônio oficializado não se deve, unicamente, a seu valor intrínseco, pois esta é determinada pelos embates que ocorrem em todo o campo simbólico, em que vence aquele que alcança maior reconhecimento pelo grupo, aquele que alcança uma atribuição de maior valor para seu imaginário na construção da realidade.

O imaginário configura, racionalmente, as imagens a partir das expe- riências vividas, gerando uma coleção delas que são liberadas pela revi- sitação.129 Na instituição do imaginário, a comunidade dialoga com seu passado e, no âmbito do patrimônio, realiza as negociações entre passado e presente, acionando um tempo mítico, ou como afirma Robert Hewinson:

O impulso de preservar o passado é parte do impulso de preser- var o eu. Sem saber onde estivemos, é difícil saber para aonde es- tamos indo. O passado é o fundamento da identidade individual e coletiva; objetos do passado são a fonte da significação como 128 DURAND, José Carlos. Op. cit., p. 67-68.

129 MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.

símbolos culturais. A continuidade entre passado e presente cria um sentido de sequência para o caos aleatório e, como a mu- dança é inevitável, um sistema estável de sentidos organizados nos permite lidar com a inovação e a decadência. O impulso nostálgico é um importante agente do ajuste à crise, é o seu emoliente social, reforçando identidade nacional, quando a confiança se enfraquece ou é ameaçada.130

Complementando essa ideia e pensando em como a comunidade pode participar ativamente da transformação das cidades, tem-se o pensamento do arquiteto e urbanista Carlos Nelson dos Santos, quan- do afirma ser possível fazer de cada cidadão um urbanista.131

A busca de um referente comum estimula o diálogo com o pas- sado. No campo do turismo, esse diálogo pode conduzir ao encontro de vocações e identidades num processo de redescoberta do mundo, abrangendo a identidade do lugar, pondo em cena o valor do patrimô- nio cultural e natural.132 As listagens patrimoniais, tratadas, no próxi- mo capítulo deste trabalho, são alguns dos instrumentos de legitima- ção do capital simbólico.

130 HEWINSON, Robert, apud HARVEY, David. Espaços urbanos na aldeia global: reflexões sobre a condição urbana no capitalismo no final do século XX. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo. Minas Gerais: PUC, n. 4, maio, 1996, p. 85.

131 SANTOS, Carlos Nelson dos. A cidade como um jogo de cartas. Niterói: Universidade Federal Fluminense; São Paulo: Projeto Editores, 1998. 132 BARREIRA, Irlys Alencar. A cidade no fluxo do tempo: invenção do

passado e patrimônio. Sociologias. Porto Alegre, ano 5, n. 9, jan./jun. 2003, p. 314-339.

No documento PORTCOM (páginas 64-70)