• Nenhum resultado encontrado

QUADRO 7 – CRONOLOGIA ABSOLUTA PARA A NECRÓPOLE DE S PEDRO DO ESTORIL

Origem Tipologia Natureza

da amostra # Ref.ª 13C/12C 0/00 Data Convencional BP Cal BC 1 σ Cal BC 2 σ S. Pedro do Estoril 1 Gruta

artificial Tíbia CCG-1119 Beta-188390 -19.0 4720±40 3620-3380 3640-3370

S. Pedro do Estoril 2 Gruta artificial Epífise proximal de fémur direito CCG-1278 Beta-188389 -19.8 4090±40 2850-2580 2860-2490 S. Pedro do Estoril 2 Gruta

artificial Úmero CCG-869 Beta-178465 -19.8 4090±40 2850-2580 2860-2490 S. Pedro do Estoril 2 Gruta artificial Fémur esquerdo CCG-1279 Beta-178466 -19.6 3850±40 2400-2220 2460-2200 S. Pedro do Estoril 1 Gruta artificial Epífise superior de fémur esquerdo CCG-1890 Beta-178467 -19.4 3830±40 2330-2210 2450-2140 S. Pedro do Estoril 1 Gruta artificial Falange da mão com espiral de ouro CCG-1892 Beta-178468 -19.6 3790±40 2290-2140 2330-2060

Como vimos, as datações obtidas para Porto Covo correspondem a duas fases nítidas, a mais antiga subdivisível em dois momentos. A datação Beta-245133, de Porto Covo, 3610-3360 cal BC 2 sigmas é estatisticamente idêntica à de S. Pedro do Estoril 1 Beta 188390, 3640-3370. Teria a gente da serra descido do interior para o litoral e transportado restos ósseos dos seus antepassados como memória genético-simbólica?

Uma coisa seria a situação para Poço Velho, como Porto Covo, uma gruta natural. Para uma

gruta artificial tipo coelheira a situação é, porém, mais complicada. A ela voltaremos na monogra-

fia em preparação sobre a necrópole de S. Pedro do Estoril Resta assim o (quase) essencial, os ritos fúnebres.

13.2. Os ritos da morte

Sobre Porto Covo, sabemos que uma população reduzida, incluindo duas crianças com menos de cinco anos (uma delas entre 1 e 2 anos), duas mulheres e, provavelmente, três homens foram aí depositados em primeira inumação. Uma de essas deposições corresponde a meados do 3.º milénio (vaso e taça com pé, lisos, «campaniformes»), mas as outras cinco são mais complexas de contextualizar.

001_204.indd 168

A UTILIZAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA GRUTA DE PORTO COVO (CASCAIS). UMA REVISÃO E ALGUMAS NOVIDADES VICTOR S. GONÇALVES 169

Fora tratar-se de deposições primárias, a seguir à morte, o que se sustenta nas informações da análise antropológica (nomeadamente a partir da diversidade dos ossos identificados), o dado mais significativo são os traços do ritual do ocre vermelho, ainda legível nos ossos longos dos dois primeiros indivíduos a ser sepultados na gruta, datados da primeira metade do 4.º milénio.

Quanto à gruta artificial S. Pedro do Estoril 2, com ritos funerários que se aproximam de Porto Covo, o menos que se pode dizer é que contrasta, pela escassez de informação disponível, com os dados registados para gruta 1 de S. Pedro do Estoril. O pouco que sabemos enumera-se, infeliz- mente, com demasiada rapidez para a complexidade dos problemas.

Sobre a antropologia, das conclusões recentemente avançadas por Ana Maria Silva, ressaltam: 1. número mínimo de 51 indivíduos, 41 adultos e 12 subadultos (Silva, 2005, p. 29);

2. presentes «…todos os grupos etários nos não adultos, excepto o dos 1-4 anos (idem); 3. 12 mulheres e oito homens;

4. uma trepanação em adulto jovem, com sobrevivência entre 4 meses e 3 anos.

Mas estes dados têm naturalmente que ver com aspectos de número da população aí deposi- tada e com paleopatologia (e, menos, com os aspectos específicos do ritual fúnebre). Para chegar- mos a uma imagem mais concreta, temos que «escavar» no Relatório Original sobre a necrópole de S. Pedro do Estoril (e, por sorte, trata-se dos raros publicados naquela época e mesmo em deze- nas de anos antes e depois…) e procurar informação.

Sobre a situação da gruta, as deposições e os ritos funerários, seleccionei cinco passagens na monografia original (Leisner, Paço e Ribeiro, 1964):

1. «…o quadro cultural que surge dos relatórios e dos materiais revela uma cultura diferente daquela apresentada pela primeira gruta, criando problemas não apenas locais, mas de impor- tância para a pré-história do País.», p. 17;

2. «Nesta gruta o número das inumações era muito inferior ao da gruta 1. Identificaram-se 20 crânios, que ocupavam cerca de dois terços da circunferência da câmara. Havia montes de ossadas, às vezes isoladas, todos junto da parede. Como consta da Est. B, os crânios encontra- ram-se, na maior parte, afastados 0,30 m-0,60 m da parede, enquanto as ossadas do corpo, sobretudo as dos membros inferiores, estavam no espaço entre o respectivo crânio e a parede. Esta disposição dos restos do esqueleto prova que os cadáveres foram postos de cócoras, sen- tados e que, na decomposição dos mesmos, os crânios teriam caído para a frente sobre o chão, onde a maior parte deles foram encontrados.», p. 18;

3. «… as ossadas duma criança (LVI) muito nova, que tinha os ossos todos num monte, mas inteiros e em todas as direcções, incluindo o vertical. Estavam entrecruzados com o maxilar inferior, por exemplo, a cavalgar um fémur, donde parece poder inferir-se que, ou foram mexi- dos já ossos, ou que o corpo fora depositado «em monte». Junto a esses ossos encontraram-se pedaços de carvão e cinzas, mas não havia vestígios de incineração de ossos.», p. 18;

001_204.indd 169

VICTOR S. GONÇALVES A UTILIZAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA GRUTA DE PORTO COVO (CASCAIS). UMA REVISÃO E ALGUMAS NOVIDADES

170

4. «10.° DIA DA ESCAVAÇÃO (l de Agosto)

Perto do fundo encontraram-se vestígios de ossadas. Tendo-se passado a escavação mais minuciosa e quanto possível cuidadosa, apareceu um crânio e depois várias ossadas. Foram retiradas neste dia e no seguinte. O aglomerado de ossos está assente no fundo da escavação e tem pelo meio e pela parte imediatamente superior grande número de seixos e de cara- cóis espiraliformes e helicoidais. Os ossos estão geralmente cobertos por uma argila amarela consistente e ainda maleável. O conjunto dá a impressão de que os cadáveres foram simples- mente depositados na cavidade sem terem sido cobertos ou apenas por ligeira camada de argila e de terem estado muito tempo expostos aos agentes atmosféricos, devendo a gruta ter tido vegetação e ter sido às vezes cheia de água das chuvas que deslocou a maior parte dos elementos ósseos.», p. 19;

5. «Entre 3,20 m e 4,20 m da parede até 0,80 m para o interior está um grupo de ossadas, apre- sentando a cabeça meio esmagada e com a face para a parede (LIX) e a seguir algumas costelas, à direita ossos dos membros superiores e da bacia, à esquerda, prolongando-se até à parede, ossos dos membros inferiores, cabeça de fémur perto da parede e joelhos para o interior, com as respectivas rótulas. A posição inicial, embora muito alterada, parece ter sido a de decúbito direito com as pernas e os braços recolhidos sobre o peito e o ventre. Dois ossos — uma tíbia e um úmero — estavam paralelos 0,02 m o no sentido do raio da /20 gruta e com a extremidade

superior e a cabeça a 0,l0 m da parede. Encostada a estas extremidades, ligeiramente oblíqua, e com o gume voltado a NW, estava a enxó N, 2 a 3,30 m e o machado N.° 3 a 4,10 m e 0,20 m da parede, rodeado de vértebras dorsais e a extremidade de outra tíbia e ossos da bacia. Esta tíbia não parece pertencer ao mesmo indivíduo.», p. 19-20.

Podemos extrair desta informação em bruto alguns elementos de grande interesse, que ela contém, e ainda outros, por omissão:

1. o número de inumações na gruta 2 de S. Pedro do Estoril, considerado muito inferior ao da Gruta 1, foi lido de uma forma diferenciada pelos autores da primeira monografia e por Ana Maria Silva. De acordo com o texto original, foram identificados 20 crânios, o que poderia indi- car um número mínimo de 20 indivíduos. Para Ana Maria Silva, que lidou com uma colecção já mutilada, o nmi seria de 51. Este último número, naturalmente mais fiável, peca mesmo por defeito, se confirmado o extravio de várias caixas de ossos;

2. a disposição de alguns «restos do esqueleto» indicou a Leisner, Paço e Ribeiro que os corpos teriam sido colocados sentados, junto às paredes da câmara, tendo a decomposição implicado a queda dos crânios (e eventualmente, dos artefactos que teriam nas mãos);

3. a deposição funerária de uma criança (LVI) é particularmente interessante pela informação registada pelos autores (supra, ponto 3). Surpreendeu-os o facto de os ossos se encontrarem «… todos num monte, mas inteiros e em todas as direcções, incluindo o vertical». Sem o saberem, estavam a descrever uma das típicas deposições «em estrela», decorrentes da decomposição

001_204.indd 170

A UTILIZAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA GRUTA DE PORTO COVO (CASCAIS). UMA REVISÃO E ALGUMAS NOVIDADES VICTOR S. GONÇALVES 171

de um corpo dentro de um saco fechado. Quando o saco se decompôs, os ossos abriram natu- ralmente, segundo o seu peso e a gravidade, em leque ou estrela. A precisão do registo de Leis- ner, Paço e Ribeiro permitem assim identificar a única situação deste tipo encontrada numa gruta artificial;

4. uma das informações mais curiosas registadas pelos escavadores da gruta reside naquele que teria sido eventualmente o modo de efectuar as primeiras deposições funerárias. Uma delas (LIX) parece corresponder a uma posição do cadáver em «decúbito direito com as pernas e os braços recolhidos sob o peito e o ventre».

Um dos rituais, certamente tardio dentro da gruta vizinha, S. Pedro do Estoril-1, tem que ver com as deposições associadas a cerâmicas campaniformes, ponto que nos interessa particular- mente pela existência, em Porto Covo, de uma taça com pé e de um vaso campaniforme, ambos lisos.

Possuímos para a gruta 1 de S. Pedro do Estoril uma informação extraordinária, e praticamente única na época, em Portugal: a sequência de níveis, ainda que artificiais, registados na leitura do enchimento da gruta. As particularidades deste registo, que já tive oportunidade de sublinhar (Gonçalves, 2005, p. 117, Fig. 07.27), têm que ser encaradas com grande prudência, uma vez as per- turbações constantes numa necrópole colectiva produzirem efeitos devastadores nas sequências estratigráficas. Produzem, aliás, um efeito que podíamos chamar «síndrome do urso».

Com efeito, como já André Leroi-Gourhan alertou para o Paleolítico, ao prepararem o seu leito de hibernação, os ursos afastam tudo o que lhes perturbaria o sono, ou o tornaria mais desconfor- tável, para a periferia de um círculo onde irão dormir no Inverno. Na Fig. 3-2., a primeira coisa que se observa é o alinhamento mais antigo de artefactos, entre os quais vasos canelados, junto às paredes. As deposições campaniformes, de que nos ocuparemos de seguida, encontram-se locali- zadas ao meio da câmara, num espaço escavado em níveis anteriores e que foi reorganizado para a utilização funerária com campaniformes. Na verdade, aqui, os ursos são bem humanos e pro- curam ganhar espaço para os seus mortos…afastando os outros para a periferia ou não tocando nela, por estar já ocupada.

Considerando assim, com flexibilidade, as intermutações possíveis entre níveis artificiais con- tíguos registados pelos autores, podemos encontrar duas diferentes deposições campaniformes, a primeira registando uma associação entre a taça campaniforme com pé decorada 51 e o vaso campaniforme liso 52. A esta deposição corresponde, muito provavelmente, um ou os dois pun- ções de cobre (57 e 62), a fila de botões 68 a 68j e, certamente, a espiral de ouro 61. É esta a tipifica- ção do «enterramento do casaco».

Outro conjunto funerário associaria a taça com pé decorada 70, a espiral de ouro 82 e o botão tipo carrinho de linha 83. A não pertencer ao enterramento do casaco, o punção de cobre 62 inte- grar-se-ia neste conjunto, o que me parece o mais provável.

A fusão das deposições centradas na Câmara, de conjuntos de níveis contíguos, ajudaria a compreender melhor algumas situações deposicionais complexas, mas que desenvolvem uma

001_204.indd 171

VICTOR S. GONÇALVES A UTILIZAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA GRUTA DE PORTO COVO (CASCAIS). UMA REVISÃO E ALGUMAS NOVIDADES

172

FIG. 3-2. As prováveis associações das duas taças campaniformes com pé, decoradas, de S. Pedro do Estoril 1 (sobre as plantas de distribuição de Leisner, Paço e Ribeiro, remontadas). Uma delas, a 51, está claramente conectada ao vaso campaniforme liso 52. Ambas, na minha interpretação, pertencem ao «enterramento do casaco», tal como um dos (ou mesmo todos os) anéis-espiral de ouro.

001_204.indd 172

A UTILIZAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA GRUTA DE PORTO COVO (CASCAIS). UMA REVISÃO E ALGUMAS NOVIDADES VICTOR S. GONÇALVES 173

lógica própria compreensível, como se disse, devido a se tratar de uma necrópole colectiva utili- zada provavelmente durante mil anos.

O registo das condições deposicionais referentes ao fundo da gruta levanta também um inte- resse particular, porque contém fenómenos registados pela positiva, isto é, por existirem, e outros que não foram observados, o que não quer dizer que não tenham existido. É esse o fenómeno do ocre vermelho e da associação machado-enxó.

O ocre vermelho registado nos ossos de Porto Covo é um registo positivo, porque é obser- vável e passível de descrição. O ocre vermelho, não registado na gruta 1 de S. Pedro do Estoril, onde se poderia encontrar nos níveis inferiores, mas não necessariamente nos campaniformes, onde a prática parece estar já abandonada, pode ter sido lavado pelos fenómenos descritos pelos autores: «… os cadáveres foram simplesmente depositados na cavidade sem terem sido cobertos ou apenas por ligeira camada de argila e de terem estado muito tempo expostos aos agentes atmosféricos, devendo a gruta ter tido vegetação e ter sido às vezes cheia de água das chuvas…».

A questão da associação machados-enxós foi pela primeira vez registada na Anta 1 do Poço da Gateira (Leisner e Leisner, 1951). Cada cadáver teria, numa das mãos, um machado, e na outra, uma enxó, permutável com uma goiva. Chamei a atenção (Gonçalves, 1999, p. 41 a 47) para o facto de este ritual ter uma carga simbólica considerável para a fixação das antigas sociedades campo- nesas, e não se limitar a esta anta alentejana. Verifica-se em monumentos bem distantes, entre os quais a gruta 2 de S. Pedro do Estoril (ver Fig. 3-4, para a gruta 2 de S. Pedro do Estoril, e 3-5 para Poço da Gateira 1). E, agora, muito provavelmente, em Porto Covo. Trata-se de um ritual perten- cente a um complexo mágico-religioso anterior à emergência das placas de xisto gravadas ou a um momento do mesmo complexo mágico-religioso em que elas não teriam ainda aparecido? Não o sabemos.

13.3. Enxós e machados: