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Nesta perspectiva, Carmo (1993) trata preliminarmente da vinculação da qualidade de vida à questão ecológica, observando nessa temática a questão recorrente da deterioração da qualidade de vida e ressaltando o valor que tal discussão representa na atualidade, podendo, por um lado, levar à formação de uma “consciência ecológica” ou então à saturação do assunto junto à opinião pública.

Nessa linha de abordagem surgem questões relevantes que realçam o problema da qualidade de vida, uma vez que a ecologia ultrapassou a (mera) circunscrição da natureza, passando a incluir as relações humanas e a apresentar questões que vão da economia à política e da sociologia à ética social.

O problema poria em destaque a organização da própria sociedade, “[...] com seus aspectos gritantes de desigualdade social e crescimento econômico a qualquer custo” (CARMO, 1993, p. 11), de modo tal que a única maneira de discutir amplamente a ecologia só se daria caso fossem ameaçados os interesses da classe economicamente dominante, por um lado, e por outro, devido às inquietações e dúvidas relacionadas aos níveis alarmantes de poluição e de degradação ambiental, incluindo as grandes concentrações urbanas e os efeitos decorrentes para a própria sobrevivência da espécie humana e de outras formas de vida. Com base em tal premissa, Carmo (1993) desenvolve o tema pelo ângulo da urbanização e da saúde, em face

das relações “quase imediatas” possíveis de estabelecer entre aquelas e o conceito de qualidade de vida, apoiando-se na Sociologia Urbana - incluindo considerações de alguns autores da Escola de Chicago -, e na Ecologia Humana, para tanto caracterizando os fundamentos em que estas disciplinas se organizaram.

Com relação à Sociologia Urbana, é ressaltada sua fundamentação teórica assentada

[...] na necessidade de enfrentar certos problemas ‘práticos’ urgentes [...] ligados ao expressivo crescimento das grandes cidades que acompanhou a industrialização e o desenvolvimento capitalista, especialmente nos Estados Unidos, num momento marcado pela imigração em massa de europeus, nos fins do séc. XIX e início do séc. XX (CARMO, 1993, p. 17).

Assim, para a Escola de Chicago (CARMO, 1993), a metrópole é entendida como o melhor local para estudar a humanidade, pois é onde fica demonstrado que os seus problemas, como marginalidade, criminalidade, corrupção, etc., resultam da sua organização específica e não da incapacidade individual dos migrantes. Park, considerado o maior expoente da Escola de Chicago, considerava a cidade não apenas nos seus aspectos físicos e mecânicos, mas, sobretudo, como “[...] um produto da natureza e particularmente da natureza humana” (CARMO, 1993, p. 18), de modo que a cidade apresenta-se envolvida pelos processos vitais das pessoas que aí vivem, de modo que a melhor forma de compreender sua organização levaria em conta seus aspectos geográficos, ecológicos e econômicos. Assim a cidade, entendida de modo orgânico, poderia ser conceituada pelo “[...] fenômeno da multiplicação de ocupações e profissões em sua relação com o meio físico” (CARMO, 1993, p. 18), devendo seu estudo derivar da análise da organização física do meio, complementada pelo estudo das suas ocupações e da sua cultura.

Por outro lado Park (CARMO, 1993) define a Ecologia Humana como “[...] a ciência que estuda as forças que atuam dentro dos limites de uma área qualquer de habitação humana (que pode ser uma área urbana), forças estas que tendem a ocasionar um agrupamento típico e ordenado da população e suas instituições” (CARMO, 1993, p. 19), cabendo-lhe caracterizar esses fatores e descrever os agrupamentos típicos de pessoas e instituições resultantes da ação conjunta de tais forças.

espaciais e temporais dos seres humanos e as influências que sofrem pelas forças seletivas, distribuidoras e acomodativas do meio. Nesse caso a “posição” (entendida como a relação de lugar entre uma determinada comunidade e outras, como também a localização dos componentes internos de uma comunidade) no tempo e no espaço constitui o interesse fundamental da disciplina. Desse modo, a concepção de ecologia, apesar de conservar seu sentido original, passou a ampliar seu campo de atuação, incluindo o homem e considerando a cidade como componente ambiental.

A partir dessa linha, são apresentadas as caracterizações da qualidade de vida com base em diversos autores, encontrando-se as várias abordagens muitas vezes entrelaçadas, dada a sua complexidade. Optou-se neste caso por uma seleção dessas abordagens em termos de sua relevância para os objetivos aqui propostos, de modo a destacar os trabalhos citados por (CARMO, 1993): Georg Simmel, com sua crítica à “filosofia do dinheiro”; René Dubos, baseado na crítica da utilização da tecnologia; Andrews e Withey, com a consideração da percepção do bem-estar (well-being) como um componente central da qualidade de vida; Michel Foucault, tratando da “medicina urbana” e dos aspectos de dominação das camadas dominantes sobre os pobres; Dupuy, tratando dos acomodamentos do capitalismo e da possibilidade da construção de uma nova lógica social; e, finalmente, Roche, tratando das relações entre meio ambiente e desenvolvimento e enfatizando a dimensão cultural da qualidade de vida.

Georg Simmel (CARMO, 1993) foi um pensador de grande influência na Escola de Chicago, desenvolvendo seus trabalhos com base na crítica à “filosofia do dinheiro”, ou seja, na valorização excessiva dos aspectos materiais da vida e apoiando-se na psicologia de massa para investigar o “significado íntimo” da vida moderna e seus produtos, buscando compreender a maneira “[...] como a personalidade se acomoda nos ajustamentos às forças externas” (SIMMEL, 1973, apud CARMO, 1993, p. 20), por influência da atuação da metrópole. Ele compreende que a metrópole apresenta uma infinidade de estímulos que atuam na pessoa conduzindo-a como numa corrente, em que a pessoa é deixada levar, sendo que tal atitude “blasé” constitui uma reação psíquica dos seus moradores aos constantes estímulos a que são expostos, os quais agitam “[...] os nervos até seu ponto de mais forte reatividade, e faz, com que os nervos cessem completamente de reagir” (CARMO, 1993, p. 21).

Também Dubos (CARMO, 1993), no final dos anos 60 e início dos 70, desenvolve uma abordagem em que considera a qualidade de vida entrelaçada a um conjunto de estímulos, neste caso provenientes da própria Terra e da vida que ela abriga, uma vez que a natureza humana é “[...] plasmada biológica e mentalmente pela natureza exterior” (DUBOS, 1972, apud CARMO, 1993, p. 22), de modo que as relações de exploração econômica da biosfera apenas para o enriquecimento acarretarão não somente a sua degradação, mas também a desvalorização da vida humana, apontando, nesse sentido, para a necessidade de correção de tal situação.

A crítica de Dubos não é voltada para tecnologia em si, mas para a sua apropriação e para a qualidade dos resultados que ela gera. Nesse sentido é colocada a compreensão de que a prosperidade e o conforto não asseguram necessariamente a saúde e a felicidade, e também que alguns aspectos do progresso material, como poluição, aumento de estímulos sensoriais, erosão dos serviços públicos, perda da intimidade pessoal ou aumento da arregimentação social, prejudicam a qualidade de vida. A qualidade de vida passa, então, a ser tratada em contraponto à materialidade, sendo usada para denominar aqueles fatores (ou componentes) de caráter imaterial, como a felicidade ou a saúde. Coloca-se ainda a necessidade de melhorar a relação do homem com a “Terra” (compreendida como conjunto de todos os seres vivos) para modificar a “[...] situação de apatia, de ‘desencantamento’, pela qual atravessa a humanidade” (CARMO, 1993, p. 23).

Já nos anos 70, pesquisadores como Andrews e Withey (CARMO, 1993), trabalharam com a percepção do bem-estar (well-being) como um componente fundamental para a experiência pessoal da qualidade de vida, investigando as diferentes percepções do bem-estar e desenvolvendo esforços para medir essas percepções, sugerindo que tais métodos se traduzissem em indicadores sociais. Para eles, a noção da qualidade de vida apresenta um duplo sentido: o mais usual deles referindo-se aos diversos aspectos do meio em que vive um indivíduo, como a habitação, poluição, criminalidade, etc...). Os autores porém consideraram que as pressões sociais por melhoria daqueles aspectos poderiam ocorrer devido a fatores como senso de realização, amor e afeição, percepção de liberdade, etc., de modo que a qualidade de vida poderia ser considerada também como uma experiência individual. Como decorrência surgiu a questão fundamental da medição da qualidade de vida que, para os autores, poderia ser solucionada com o uso dos indicadores sociais, uma vez que “[...] a

qualidade de vida pode incluir a medição de praticamente tudo que interesse a alguém” (CARMO, 1993, p. 24). Além de desenvolver diversas e importantes considerações de natureza metodológica, é também sugerida a conveniência de considerar, na avaliação do bem-estar, um rol de indicadores tanto perceptíveis quanto não-perceptíveis num mesmo nível de relevância.

O aspecto da saúde é desenvolvido por Foucault (CARMO, 1993), que trata do surgimento da medicina social. No seu trabalho aparece a denominação “medicina urbana”, enfatizando a relação entre saúde e urbanização, e demonstrando também que a medicina moderna é uma “medicina social” – na qual ressaltam aspectos de dominação política com o objetivo de estabelecer ou manter a saúde.

A medicina urbana inicia-se na França, no final do século XVIII (CARMO, 1993) e caracteriza-se por tratar das “coisas” relacionadas à cidade, principalmente o ar e a água, destacando a importância dada na época às condições do meio sobre a saúde, daí vindo a noção de salubridade e, juntamente com ela, a noção de higiene pública. Tais noções evocam, a primeira, as condições do meio e dos seus elementos constitutivos atuando de maneira a permitir a melhor saúde possível aos indivíduos, e a segunda, à técnica de manipulação e controle dos elementos materiais do meio com vistas a favorecer (ou prejudicar) a saúde, de modo a subsidiar o urbanismo francês e as mudanças urbanas efetivadas em Paris à época.

Na medicina urbana, Foucault (CARMO, 1993) identifica o “medo urbano”, uma série de medos associados ao crescimento descontrolado das cidades, onde a angústia gerada nas pessoas leva-as a desenvolverem uma atitude de desconfiança e insegurança em face de sua nova situação, com tal atitude traduzindo-se em medo de fábricas, de aglomeração populacional, de edifícios altos, de epidemias urbanas, de esgotos e, principalmente, de cemitérios.

É citada ainda uma terceira etapa da medicina (CARMO, 1993), denominada “[...] medicina dos pobres, da força de trabalho, do operariado”, localizada na Inglaterra em meados do século XIX, responsável pela criação de um “cordão sanitário” entre ricos e pobres, pois, devido à devido às moléstias e epidemias que atingiram a Europa no período, a coabitação entre ricos e pobres num mesmo ambiente urbano tornara-se impossível. Fazem parte da

terceira fase a criação do Health Service – com o qual o governo inglês implantou o controle da vacinação em massa –, o registro e monitoramento de doenças potencialmente endêmicas, incluindo a extirpação dos locais considerados insalubres, a assistência controlada, entre outros, sendo que desdobramentos desta terceira fase tiveram profunda influência nos atuais sistemas médicos, principalmente os dos países mais avançados.

Foucault reconhece na medicina contemporânea três sistemas superpostos e coexistentes, quais sejam, a “medicina assistencial”, destinada aos pobres, a “medicina administrativa”, voltada para os problemas gerais, como vacinação, controle de epidemias, etc., e a “medicina privada”, voltada para os que têm como pagá-la. Também procurou demonstrar o caráter social da medicina contemporânea, ou seja, que a medicina moderna possui um caráter principalmente social, de modo a não ser nem individual, nem determinada exclusivamente pela relação mercantil, mas apresentando um componente de dominação e controle pelas instituições de saúde sobre os indivíduos, tendo como ponto de partida o domínio social sobre o seu corpo biológico.

No que se refere ao sistema econômico e à produção, Carmo (1993) ressalta a contribuição de Dupuy, que coloca o “problema” da qualidade de vida perante a lógica da produção capitalista, apresentando como conseqüência duas opções fundamentais sob o ponto-de-vista da ecologia, quais sejam, “[...] a aceitação do capitalismo ecológico que vem se instaurando ou a possível escolha pela construção de uma nova lógica social, na qual” (CARMO, 1993, P.30) “[...] o livre desenvolvimento de todos seria ao mesmo tempo o fim e a condição do livre desenvolvimento de cada um”1.

Ao tratar do “capitalismo ecológico”, Dupuy (CARMO, 1993) usa como ponto de partida a questão do “desaquecimento” da economia de crescimento capitalista – uma das suas maiores ameaças constatadas por Adam Smith, Ricardo, Marx e Keynes –, e argumenta que “[...] tal ameaça teria sido afastada através da transformação quanto à natureza dos bens produzidos” (CARMO, 1993, p. 30). Neste caso por meio do surgimento, por um lado, de “bens distintivos”, denotadores de elevado status social e, por outro, da constatação de que a duração dos bens de consumo diminuiu, levando ao que o autor aponta como uma “contradição” básica do capitalismo, em que “[...] as condições que permitem o crescimento

da demanda e a ‘realização’ [...] do valor de troca produzido são exatamente as que provocam a perda de eficácia da economia” (CARMO, 1993, p. 31).

O problema proposto por Dupuy destaca, de um lado, a lógica da economia de crescimento ameaçando a base do sistema produtivo, afetando o custo de reprodução da força de trabalho por conta da geração de desperdícios, da degradação do meio ambiente, ampliando a crise ecológica e influindo em outros fatores como congestionamento dos solos e expansão do urbanismo industrial, que trariam implicações diretas na vida dos trabalhadores, como deslocamentos mais longos e custosos e degradação das condições de vida em geral. Por outro lado, há também a questão da possibilidade de escassez de matérias-primas e de recursos naturais fundamentais, como a água e o ar, acarretando para as indústrias o imperativo de ter de proteger cada vez mais o meio ambiente, simplesmente por ter de continuar a funcionar e não por qualquer tipo de ação filantrópica relacionada a preocupação com qualidade de vida. Nesse sentido, a qualidade de vida constitui um freio ao sistema capitalista e tem a capacidade de fazer com que ele se redirecione, uma vez que, transformada em mercadoria, algo vendável, a produção voltar-se-ia então para produzir “bens imateriais” (saúde, cultura, meio ambiente equilibrado, etc..., ou seja, os fatores relacionados a “felicidade”), o que seria possível mediante uma “[...] nova divisão internacional do trabalho” (DUPUY, 1980 apud CARMO, 1993, p. 32), promovendo o redesdobramento da industria na escala mundial, com o envio das industrias pesadas para o Terceiro Mundo.

Dessa forma, o capitalismo ecológico seria resultante tanto da necessidade da reorientação do crescimento dos países desenvolvidos para produções menos destruidoras, quanto da relocação das indústrias em nível internacional, ou seja, teria não como finalidade a promoção da qualidade de vida, mas seria fruto de uma necessidade de caráter técnico. Esta situação, para manter-se estável,

[...] exigiria uma caracterização geral, uma programação planetária da repartição e da utilização dos recursos minerais e energéticos, uma planificação das técnicas e dos preços, em resumo, todos os elementos de um capitalismo não concorrencial de não-crescimento (CARMO, 1993, p. 33)

o que se constitui em argumento “ecofacismo” ou “tecnofacismo”, que são sistemas voltados para criar “[...] um mundo limitado por técnicos e tecnocratas, um Gulag na escala planetária” (DUPUY, 1980 apud CARMO, 1993, p. 33. ).

destacando quatro temas da contestação ecológica: trata-se, no primeiro tema, da sobrevivência da humanidade na escala planetária, no segundo, da crítica do fetichismo das forças produtivas e da crítica da economia, no terceiro, da crítica das ferramentas e do modo de produção industrial, e no quarto, da crítica do Estado e da heteronomia política.

Já a dimensão cultural da qualidade de vida é enfatizada por Roche (CARMO, 1993), considerando a relação entre meio ambiente e desenvolvimento e situando a qualidade de vida em termos da busca, consciente e inconsciente, do cidadão no seu cotidiano, na procura da felicidade pessoal e coletiva, incluindo as correspondências entre as expectativas do grupo social e o nível de satisfação dessas expectativas.

O autor analisa a situação contemporânea em termos da predominância de uma racionalidade “prática” ou “utilitarista”, o que faz com que a qualidade de vida esteja determinada pela “[...] capacidade social ou individual de incrementar os seus benefícios potenciais, independentemente de suas conseqüências reais para a comunidade dos seres humanos” (CARMO, 1993, p. 39), para o que os governos também contribuem com a avaliação de seu desempenho tendo em vista elementos objetivos e quantificáveis e não em função da realização humana e da “felicidade” dos povos.

Roche (CARMO, 1993) ressalta a importância de se incluirem diversas considerações de natureza simbólica no tratamento da questão, “[...] sem perder de vista que as condições objetivas de sobrevivência podem determinar um certo comportamento em relação à realidade ambiental” (CARMO, 1993, p. 40). Para a aferição da qualidade de vida, Roche propõe o emprego de indicadores para avaliar as dimensões cultural, ambiental e tecnológica. Na dimensão cultural, os indicadores visam aferir a felicidade, e, mesmo reconhecendo as dificuldades de uma valorização empírica, são apontados como possíveis indicadores

[...] conceitos de terra, propriedade e pátria, “arraigo territorial”; o sentido dominante das relações humanas, privilegio da família e amizade sobre a produção e a competência: a forte diferenciação dos atributos por sexo; o consenso como instrumento de relação, etc... (CARMO, 1993, p. 40).

Já para a dimensão ambiental, os indicadores permitiriam avaliar as condições existenciais do homem em sociedade, sendo os indicadores classificados como “duros” (verificáveis estatisticamente) e “brandos” (percebidos e valorizados pelo indivíduo). Dentre os

indicadores apontados podem ser citados a

[...] educação e o trabalho como meios para a mobilidade social; as condições do habitat (serviços, espaço, clima, etc.), como níveis de qualificação do meio ambiente ecológico; as condições econômicas (acesso ao consumo e a um nível relativo de conforto); o acesso à instituições intermediárias (partidos políticos, sindicatos, clubes, etc.) como instrumentos de participação social; acesso aos meios de comunicação social como mecanismo de avaliação do “entorno” e instrumento para a tomada de decisões aconômicas e políticas; etc. (CARMO, 1993, p. 40-41).

Ao final, vêm os indicadores de dimensão tecnológica, para medir “[...] o desenvolvimento relativo sob uma ótica utilitarista, a qual com freqüência se transforma em mecanismos de submissão e dominação” (CARMO, 1993, p. 41).