• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – O SER JOVEM: CONTEXTUALIZAÇÃO

2.2 SER JOVEM AO LONGO DOS TEMPOS

2.2.1 O que é ser jovem?

Neste item, interessa compreender a juventude na contemporaneidade com base no processo dos diferentes períodos históricos – conjuntura histórico-social – que foram decisivos para a humanidade. Sobre a gênese histórica do termo juventude, temos que

el término “juventud” apareció como una categoría emergente en la Gran Bretaña de la pos- guerra: una de las más apabullantes y visibles manifestaciones del cambio social en este periodo. El término “Juventud” permitió un enfoque para los reportes oficiales, legislaciones e intervenciones oficiales. Significó un problema para los guardianes Morales de la sociedad (algo que “tenemos que resolver”). Pero por encima de todo esto, la “juventud” jugó un papel importante, como piedra angular en la construcción de entendimiento, interpretación y una casi explicación acerca de ese periodo (CLARKE et al., 200814, p. 271-272).

No trecho anterior, os autores destacam algumas definições sobre como compreendem o conceito de juventude. Dentre os temas que investigam, encontra-se a “cultura juvenil”; segundo eles, cultura é o nível em que diferentes grupos sociais desenvolvem seus distintos padrões de vida e dão forma e expressão à experiência de vida material e social. “La ‘cultura’ es la práctica que comprende y objetiva la vida del grupo de una forma significativa. ‘En tanto los individuos expresen su vida, eso serán’ (CLARKE et al., 2008, p. 273).

Nessa direção entende-se que cultura implica uma relação de classes que conflui na luta de classes,

sin embargo, ya que la naturaleza de esta lucha por la cultura no puede ser reducida a una simple oposición, es crucial reemplazar la noción de “cultura” […] una redefinición que haga más

14 Texto original escrito em 1975.

claro el hecho de que la cultura siempre está en relación directa de dominación (y subordinación) con alguien más, por lo que de cierto modo, es una lucha con otro (CLARKE et al., 2008, p. 275).

A cultura se expressa e corresponde historicamente à forma como as relações sociais de determinado grupo estruturam-se e acontecem, isto é, o conteúdo de como se entendem as experiências e interpretações das formações desses grupos. O ser humano desenvolve-se por meio dos padrões sociais, culturais e históricos de cada sociedade.

Umas das obras que trata dessa relação entre ser jovem e conjuntura histórico-social é a História dos Jovens, organizada em dois volumes, pelos historiadores Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt (1996). Nessa obra, há textos que possibilitam compreender que ser jovem não é um conceito estático, mas que, conforme o contexto histórico-social, ser jovem está em constante movimento e altera-se de acordo com os interesses sociais e culturais de determinada época. Os autores afirmam que a juventude não pode ser enquadrada unicamente em um número, mas salientam que os jovens vivem em um constante movimento, e suas percepções de vida – ser jovem – modificam-se de acordo com os interesses sociais e culturais de determinada época. Nas palavras desses autores, o jovem

se situa no interior das margens móveis entre a dependência infantil e a autonomia da idade adulta, naquele período de pura mudança e de inquietude em que se realizam as promessas da adolescência, entre a imaturidade sexual e a maturidade, entre a formação e o pleno florescimento das faculdades mentais, entre a falta e a aquisição de autoridade e de poder. Nesse sentido, nenhum limite fisiológico basta para identificar analiticamente uma fase da vida que se pode explicar melhor pela determinação cultural das sociedades humanas, segundo o modo pelo qual tratam de identificar, de atribuir ordem e sentido a algo que parece tipicamente transitório, vale dizer caótico e desordenado. Essa “época da vida” não pode ser delimitada com clareza por quantificações demográficas nem por definições de tipo jurídico, e é por isso que nos parece substancialmente inútil tentar identificar e

estabelecer, como fizeram outros, limites muito nítidos (LEVI; SCHMITT, 1996, p. 7-8).

Consideramos que, no decorrer do processo histórico, as sociedades assumiram configurações diversas, características que levaram a possibilidade de o ser humano desenvolver-se parcialmente, como também momentos de autodestruição. Lembramos que a juventude assume, assim, um caráter diverso, conforme a demanda da sociabilidade em que vive exige. Salientam Levi e Schmitt (1996, p. 9) que,

numa sociedade “fria” ou estruturalmente estática, determinados processos jurídicos e simbólicos tenderão a sublinhar predominantemente os elementos de continuidade e de reprodução dos papéis atribuídos à juventude. Por outro lado, uma sociedade “quente”, mais predisposta a reconhecer o valor da mudança, será levada a admitir com maior facilidade o caráter necessariamente conflitante da transição de uma idade para outra e da transmissão do conjunto de prescrições entre as gerações.

Seguindo o mesmo pensamento, Bourdieu (1983, p. 113) enfatiza, em uma entrevista,15 que, “[...] a juventude e a velhice não são dados, mas construídos socialmente na luta entre os jovens e os velhos”, e as relações entre a idade social e a idade biológica são muito complexas.

[...] a idade é um dado biológico socialmente manipulado e manipulável; e que o fato de falar dos jovens como se fossem uma unidade social, um grupo constituído, dotado de interesses comuns, e relacionar estes interesses a uma idade definida biologicamente já constitui uma manipulação evidente (BOURDIEU, 1983, p. 113).

E continua o autor falando sobre como o sociólogo necessita compreender a “juventude”:

15 Entrevista a Anne-Marie Métailié, publicada em Les Jeunes ET Le premier

O reflexo profissional do sociólogo é lembrar que as divisões entre as idades são arbitrárias. É o paradoxo de Pareto dizendo que não se sabe em que idade começa a velhice, como não se sabe onde começa a riqueza. De fato, a fronteira entre a juventude e a velhice é um objeto de disputas em todas as sociedades (BOURDIEU, 1983, p. 112).

Em determinadas circunstâncias históricas, a juventude assume certos aspectos e características que lhe são exigidas pela sociedade em que nasceu, e por serem históricas podem modificar-se. O que torna o sujeito apto a terminar em outra sociedade econômica, social e culturalmente diferente daquela em que nasceu. Segundo Heller (2008, p. 11), as ‘circunstâncias’ em que “os homens formulam finalidades, são as relações e situações sócio-humanas, as próprias relações e situações humanas mediatizadas pelas coisas [...] a ‘circunstância’ é a unidade de forças produtivas, estrutura social e formas de pensamento”, a juventude corresponde à fase em que determinadas “circunstâncias” permitem ou bloqueiam seu desenvolvimento psíquico-social. A juventude refere-se ao momento no qual a sociabilidade em que faz parte constrói valores a serem seguidos, independentemente se positivos ou negativos. Para entender o que significa o valor, explicitamos que, conforme Heller (2008, p. 15), um valor compreende

tudo aquilo que faz parte do ser genérico do homem e contribui, direta ou mediatamente, para a explicação desse ser genético. [...] pode-se considerar valor tudo aquilo que, em qualquer das esferas e em relação com a situação de cada momento, contribua para o enriquecimento daqueles componentes essenciais; e pode-se considerar desvalor tudo o que direta ou indiretamente rebaixe ou inverta o nível alcançado no desenvolvimento de um determinado componente essencial. O valor, portanto, é uma categoria ontológico-social; como tal, é algo objetivo; mas não tem objetividade natural (apenas pressupostos ou condições, naturais) e sim objetividade social. É independente das avaliações dos indivíduos, mas não da atividade dos homens, pois é expressão e resultante de relações e situações sociais.

O valor, e em especial no caso da juventude, torna-se uma categoria fundamental, pois possibilita indagar qual a base geradora do quadro de valores em cada período histórico. O que é considerado um valor positivo ou negativo para o ser jovem na Grécia Antiga? Na Idade Média? No início da Revolução Industrial? Ou para os jovens no século XXI? De acordo com Levi e Schmitt (1996, p. 12),

a sociedade plasma uma imagem dos jovens, atribui-lhes caracteres e papéis, trata de impor- lhes regras e valores e constata com angústia os elementos de desagregação associados a esse período de mudança, os elementos de conflito e as resistências inseridos nos processos de integração e reprodução social.

Nesse sentido, é possível entender que, em cada época histórica com relação ao ser jovem, certas características sociais determinam e propiciam tendências de como se configura o caráter do ser jovem: “A juventude pode ser o momento das tentativas sem futuros, das possibilidades de alternâncias entre os êxitos e fracassos. Momentos de crises, individuais e coletivas, ‘não vamos encontrar sempre os jovens na linha de frente das revoltas e revoluções?’” (LEVI; SCHMITT, 1996, p. 12). O entregar-se a uma “causa” torna proporções e conteúdos significativos na história; em certas épocas, concilia-se com as demandas econômicas, sociais e culturais, que favorecem o desenvolvimento do processo social ou, em outras épocas, que travam.

Na Grécia Antiga, o ser jovem que estava disposto a entregar-se a uma “causa”16 estava ligado diretamente com a formação humana ampla, que possibilitava ao jovem o fortalecimento entre as faixas etárias e classes, que poderiam contribuir para o desenvolvimento da cidade ou da sua destruição. A educação, desde a infância, contribui para tornar o jovem cidadão útil para escolher de forma ética e moral o melhor para sua polis. A base dessa formação, conforme destaca Schnapp (1996, p. 19), era a paideia:

16 Na entrega a uma “causa”, é precisamente esta que desempenha o papel

determinante mais importante, mas, para ser corretamente entendida, ela jamais poderá ser concebida em termos apenas formais. O aspecto não formal externa- se nisto: “se e em que medida uma entrega é capaz de provocar a elevação do homem acima de sua particularidade e de inflamar uma paixão duradoura” (LUKÁCS, 2013, p. 783).

A coluna vertebral da vida em sociedade é a

paidéia, a educação, a distinção que permite o

acesso dos jovens a um saber partilhado sem o qual a cidade não poderia existir. [...] A paidéia não busca somente adaptar o cidadão à cidade. Ela deve contribuir para revelar qualidades humanas presentes em estado virtual em todos os futuros cidadãos, mas que precisam ser descobertas e desenvolvidas por meio de treinamentos específicos. A paidéia identifica-se com um comportamento global, com aptidões psicológicas e morais que não se limitam unicamente à aprendizagem de certo número de técnicas militares.

Em muitos momentos do processo histórico da humanidade, o indivíduo demonstra por meio de certas atividades qual papel social assume em determinada comunidade, nação, conforme o código de valores da sociedade. Em sociedades em que a atividade militar tinha relevância para a formação humana, o ser jovem que se doa à pátria tem certa honradez, o morrer pela nação “não é algo tão difícil de ser aceito e mesmo desejado, contanto que seja grandiosa e bela” (NIZIA, 1996, p. 164), sendo essa a característica do jovem que vivenciou o feudalismo durante o século XI e XII.

Para compreender esses momentos que perpassam o ser jovem no processo histórico da humanidade, e de acordo com Heller (2008, p. 17),

basta pensar nos valores morais mais arcaicos e, ao mesmo tempo, mais persistentes, como a honradez, a justiça, a valentia, para ter certeza de que tais valores foram sempre – como normas, usos ou ideias – meios de elevação da particularidade ao genericamente humano; as variações de seus conteúdos dependeram em grande medida do tipo de comunidade a que tinha de elevar-se o indivíduo a partir de sua particularidade.

Tudo depende do contexto social em que o jovem encontra-se inserido. Qual o conjunto de valores que essa sociedade preza: “o valor17

se refere a tudo o que produz a explicitação da essência humana ou a condição para esta explicitação” (HELLER, 2008, p. 20). Nesse momento, consideramos por valores o desenvolvimento das forças produtivas e suas explicitações: o aumento da quantidade de valores de uso e, consequentemente, a diminuição do tempo socialmente necessário para a obtenção dos produtos imediatos para sobrevivência. Conforme Lukács (2013, p. 107),

[...] podemos considerar o valor de uso como uma forma objetiva de objetividade social. Sua socialidade está fundada no trabalho: a imensa maioria dos valores de uso surge a partir do trabalho, mediante a transformação dos objetos, das circunstâncias, da atividade etc. dos objetos naturais, e esse processo, enquanto afastamento das barreiras naturais, com o desenvolvimento do trabalho, com a sua socialização, se desdobra sempre mais, tanto em extensão como em profundidade.

O desenvolvimento das forças produtivas é a condição necessária para a explicitação universal da essência humana. Nenhum valor conquistado pela humanidade perde-se por completo, mas sempre ressurge e só pode sucumbir com a própria humanidade no transcorrer de sua história.

Desse modo, como entender o papel da história para apreender o conhecimento a propósito do ser humano ao longo dos tempos no que concerne ao conjunto de valores que são elaborados em cada período histórico? A história como substância18 da humanidade considera que a sociedade é um complexo determinado, com um método de produção, que apresenta classes, camadas, formas mentais e alternativas determinadas. De acordo com Heller (2008, p. 26-27),

[...] os homens jamais escolhem valores, assim como jamais escolhem o bem ou a felicidade

18 “A substância é aquilo que, na contínua mudança das coisas, mudando ela

mesma, pode conservar-se em sua continuidade. No entanto, esse dinâmico conservar-se não está necessariamente ligado a uma “eternidade”. As substâncias podem surgir e perecer, sem que com isso deixem de ser substâncias – desde que se mantenham dinamicamente durante o tempo da sua existência.” (LUKÁCS, 2013, p. 122).

escolhem sempre ideias concretas, finalidades concretas alternativas concretas. [...] seus juízos estão ligados à sua imagem de mundo.

O sentido da história corresponde ao estabelecimento de possibilidades do desenvolvimento dos valores, vinculando-se a base na possibilidade do homem em produzir sua própria essência, elevando-se acima da mera vida animal.

Voltando ao tema da obrigação do valor moral, entendemos que, nos diferentes momentos da história, ela demonstra a importância do compromisso pessoal, da individualidade e das consequências na escolha entre uma determinada alternativa, que pode resultar para além de sua mera vida cotidiana. Quando essa decisão está mais perto do certo, o motivo moral manifesta-se, representando valores universais. O caminho desse comportamento é a decisão, a concentração de todas as forças na execução da escolha e a vinculação consciente com a situação presenciada e a clareza de suas consequências (HELLER, 2008).

No que tange às alternativas, Lukács (2013, p. 123) esclarece que

[...] são fundamentos insuprimíveis do tipo de práxis humano-social e somente de modo abstrato, nunca realmente, podem ser separadas da decisão individual. No entanto, o significado de tal resolução de alternativas para o ser social depende do valor, ou melhor, do complexo respectivo das possibilidades reais de reagir praticamente ante a problematicidade de um hic et nunc histórico- social.

Em relação às escolhas e o ser jovem, segundo Pastoureau (1996), no contexto medieval, por exemplo, o jovem, em sua grande maioria, era percebido como não pronto para fazer escolhas, conforme aquele momento histórico considerava como “correto” de acordo com seu conjunto de valores morais. O autor contextualiza o entregar-se a uma “causa” no medievo como correspondente à rebeldia, mesmo que, em alguns casos isolados, essa atitude se relacionasse à possibilidade de contribuir de forma significativa tanto para si como para todo o grupo. Estudando a icnografia da época e os escritos sobre jovem, o autor destaca que

a iconografia medieval não só mostra pouco o que é um corpo jovem, como raramente ilustra a

função ativa da juventude no seio da sociedade. Quase sempre confere a ela um papel passivo, representando-a de maneira estereotipada, estática, pouco diversificada. Já o mesmo não se dá com o discurso dos textos, por mais repetitivo e tópico que seja. Em geral, a juventude é mostrada aí como turbulenta, ruidosa, perigosa. Faz desordens, não respeita nada, transgride a ordem social e a ordem moral. Os jovens desprezam os valores estabelecidos e as pessoas idosas, consideradas “caquéticas”. São insolentes e briguentos, creem saber tudo, entregam-se as loucuras de todo tipo, gastam irrefletidamente, vivem na luxúria e no pecado. É preciso dar-lhes lições, cortar seu orgulho, orientar seus corpos para exercícios úteis, ensinar-lhes a desprezar a vida e, sobretudo, casá-los jovens para evitar a fornicação e o adultério (PASTOUREAU, 1996, p. 259).

No entendimento do autor, nessa contextualização, entende-se o jovem do medievo como aquele que não se acha com condições necessárias para realizar escolhas. Heller (2008, p. 109) colabora com esse pensamento afirmando que

[...] uma comunidade cujo conteúdo axiológico seja basicamente negativo jamais desenvolverá a individualidade, visto que tampouco desenvolve o valor no indivíduo, nem mesmo quando esse se sente bem em tal comunidade, quando acredita ter encontrado nela o espaço adequado para a explicitação de suas capacidades. Quando muito, o que se pode configurar numa comunidade de conteúdo axiológico negativo é a particularidade pessoal, não a capacidade de tornar-se autêntico indivíduo.

Quando a sociabilidade na qual o indivíduo está inserido compromete o desenvolvimento de conteúdo axiológico positivo, as relações sociais podem estar comprometidas e obstaculizadas. Um dos posicionamentos a se tomar é encontrar meios para mudar tal situação de forma significativa. Entende-se por forma significativa ou valor positivo as relações, os produtos, as ações e as ideias sociais que

permitem ao ser humano o pleno desenvolvimento das possibilidades de objetivação para organizar universalmente sua liberdade social, que possibilita ao homem tornar-se

indivíduo na medida em que produz uma síntese em seu eu, em que transforma conscientemente os objetivos e aspirações sociais em objetivos e aspirações particulares de si mesmo e em que, desse modo, “socializa” sua particularidade (HELLER, 2008, p. 108).

A liberdade social de socializar a particularidade encontra-se cada vez mais comprometida e constitui-se conforme o contexto histórico de determinada época. E em sua grande maioria o entregar-se a uma “causa” corresponde a buscar meios de atender aos interesses individuais e não a resistência às condições sociais de uma forma a abarcar os interesses da coletividade.

Até aqui exemplificamos a realidade social do jovem nas sociedades antigas e feudal. Entendemos que a sociedade industrial assume outros desdobramentos, em que configura a vida do jovem para atender às “causas” concretizadas pela necessidade da venda da força de trabalho para garantir a sobrevivência de si próprio, como também auxiliar nas necessidades de toda a família. Na continuidade deste estudo, na próxima seção, apresentamos uma abordagem de como se constitui a vida do jovem nos primórdios da Revolução Industrial.