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Concluída a precedente ordem de conceitos, abre-se diante de nós outra vi- são, numa ordem de conceitos afins e consequentes, que o leitor encontrará em germe, primeiramente em A Nova Civilização do Terceiro Milênio, Cap. X – “O Problema do Mal”, e Cap. XIII – “Problemas Últimos”, e depois, no volu- me Problemas do Futuro, Cap. XVe XVI – “Deus e Universo”.

No capítulo anterior, havíamos explorado, sem desenvolvê-lo, este tema: “A criatura é livre, podendo, pois, agir contra o Sistema”. Aprofundemos aqui, como antes não pudemos fazê-lo, essa tese, desenvolvendo-a e analisando-lhe todas as consequências.

Como ocorreu essa monstruosa revolta de algumas células do grande orga- nismo-universo, as quais, ao invés de funcionar harmoniosamente nele, puse- ram-se contra ele, rebelando-se? Onde se encontra a primeira raiz dessa anar- quia na ordem? Importante questão que se vincula ao problema da gênese do mal, da sua presença no mundo e da sua solução final.

Para compreender, observemos a estrutura do Sistema. Ela se baseia em al- guns princípios fundamentais como o egocentrismo e a liberdade. A criatura, parte integrante do Sistema, foi constituída como um esquema menor do es- quema maior, cujo centro é Deus, de acordo com o princípio já mencionado dos esquemas de tipo único. Porém, essa dádiva de Deus, por quem a criatura fora feita à Sua imagem e semelhança, constituía um poder muito perigoso se não fosse bem usado, pois continha em germe a possibilidade de um transvia- mento, possibilidade que o ser, exatamente pelos princípios do Sistema, deve- ria enfrentar com as suas forças. E as consequências, quaisquer que fossem, deviam ser suas, pois significa responsabilidade em um sistema de ordem e justiça, a consequência do princípio de liberdade.

A quem objetar que um sistema perfeito não deve conter a possibilidade de erro, deve-se contestar que essa possibilidade, que não é absolutamente neces- sidade, está implícita nos princípios supracitados, como sua consequência ne- cessária, de modo que, para suprimi-la, seria imperioso suprimir os princípios que dão causa, cujo valor não se discute. É natural que, onde exista um “eu” livre, seja também possível o mau uso da liberdade. E nem por isso o valor desta decresce. De outra forma, não nos encontraríamos em um sistema de liberdade, mas de determinismo, no qual as criaturas não passariam de autô- matos. Ora, Deus não criou seres dessa espécie, mas sim criaturas partícipes

das suas próprias qualidades. Dada a estrutura do Sistema, gera-se uma cadeia de férrea lógica, que conduz dos princípios a essas consequências. A criatura deveria, pois, necessariamente encontrar-se ante a encruzilhada da escolha.

O ser, portanto, dada a sua estrutura e a do sistema em que existia, deveria achar-se diante da possibilidade do erro. Em outros termos, o ser passava por uma prova, por um exame, de cujo resultado dependeria a sua futura posição, por ele livremente escolhida. Ora, que o Sistema contivesse a possibilidade de um erro não significa absolutamente que ele tivesse sido construído errado ou fosse defeituoso. Tanto é verdade, que ele, como veremos, de fato não se arru- inou pelo erro cometido; pelo contrário, por ser perfeito, tinha capacidade de autorregeneração. O Sistema estava acima do erro nele possível e fora consti- tuído para permanecer íntegro, inabalável, para qualquer acontecimento. Por isso podia permitir em seu seio uma possível violação e desordem, sobretudo porque essa possibilidade tinha a função de aprovar o ser, dando-lhe, segundo o princípio de justiça, caso superasse a prova, o pleno direito de aquisição da sua posição de filho de Deus somente depois de havê-lo merecido. O Criador exigia da criatura uma livre aceitação do Sistema, um espontâneo reconheci- mento das recíprocas posições nele, para então poder conceder ao ser uma livre coparticipação em Sua obra, como o Sistema requer, o que seria impossí- vel com uma criatura escrava ou um autômato.

A prova da livre escolha não foi, pois, um capricho, um acaso ou um erro do Construtor, mas fez parte integrante da lógica do Sistema, como necessária consequência dos princípios que o constituem. A estrutura do edifício de con- ceitos e forças do Sistema, a natureza do Criador e a da criatura, os fins a atin- gir além da prova, tudo isto conduzia à necessidade de que a criatura devesse encontrar-se só e livre na encruzilhada da escolha. A possibilidade de erro estava implícita no Sistema, não como uma imperfeição, prelúdio de fracasso, mas como um elemento definido e desejado para determinados fins, como sua força, e não como sua fraqueza. Veremos, efetivamente, que esses fins são igualmente atingidos também por outra via e que a obra da criação permanece igualmente como um triunfo no plano de Deus.

Os dois princípios acima aludidos, egocentrismo e liberdade, comuns tam- bém às criaturas, faziam delas tantos menores “eu sou”, semelhantes a Deus, como tantos deuses menores em função de Deus. Deus quis a criatura assim, feita à Sua imagem e semelhança. Nem o ser Dele saído poderia ser de nature- za diversa da Sua. Em um sistema de esquema de tipo único, a criatura não

podia deixar de ser um “eu sou”, centro autônomo e livre, como é o Criador. Então, estando não só a estrutura do Sistema mas também a natureza da criatu- ra baseadas no princípio da liberdade, tudo quanto dissesse respeito à criatura não podia ter curso sem o seu consenso.

Ademais, existia um terceiro princípio: o amor, fundamento do universo espiritual, mercê do qual Deus não é egocêntrico senão para irradiar em amor. Assim sendo, o sistema de Deus não pode basear-se na coação, assim como, em virtude do princípio de liberdade, não pode basear-se no determinismo, mas apenas na adesão espontânea. Deus, por ser amor, não pode querer a cria- tura forçadamente prisioneira do Seu amor. Ele limita-se a atraí-la. Eis uma nova característica do Sistema, que não pode admitir da parte da criatura senão uma correspondência de caráter espontâneo, sem a qual não há amor. Não é possível gravitar-se forçadamente, em direção a Deus, por amor. Assim, todo o Sistema, também por esse principio, impunha a livre escolha, qual passagem obrigatória para valorização do ser, que devia, antes de ser aceito, conquistar plenamente esse direito, demonstrando livremente haver compreendido, acei- tado e querido corresponder ao amor de Deus. Mesmo sob esse aspecto, a pro- va corresponde à perfeita lógica, pois que o amor, para ser tal, não pode deixar de ser espontâneo e recíproco. Estar o Sistema fundamentado no amor é outro fato a implicar que ele deve basear-se, também, na liberdade. Liberdade e amor são conexos. Este pressupõe aquela. Um sistema que não se fundamen- tasse na liberdade não o seria no amor. Os princípios que regem o universo são estreitamente correlatos. Todos eles se podem reduzir a um só, do qual todos estes derivam: o amor. Foi por amor que Deus quis a criatura egocêntrica, feita à Sua imagem e semelhança, partícipe das Suas próprias qualidades. Foi por amor que Deus quis a criatura livre, a fim de que ela livremente compreendes- se e retribuísse esse amor.

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Entendidas a necessidade, a lógica e a utilidade da prova, observemos como se comporta o ser neste momento supremo.

Eis a criatura, substancialmente espírito, centelha de Deus, apenas destaca- da do seio do Pai, que a gerou. Ela fita o Centro, do qual derivou por ato de amor, a que deve a sua existência. A estrutura do Sistema impõe uma resposta sua a esse ato, a correspondência de um recíproco ato com que essa criatura, por sua livre aceitação, confirme ou renegue como queira, permaneça no Sis- tema ou dele se desligue, ponha-se dentro ou fora dele, agindo livremente e

definindo assim a sua posição. O Criador respeita tanto a liberdade que Ele deu à criatura, fazendo-a à Sua imagem e semelhança, que submete a Sua obra de Criador a essa criatura, como ocorre no consentimento necessário de duas partes num contrato bilateral. Somente quando a livre criatura tiver dito: “Sim”, a criação estará completa, aperfeiçoada até esse momento, em que a criatura é quase chamada, com seu consentimento, a colaborar. Parece enorme, absurda, tanta bondade. Mas essa é a estrutura do Sistema; assim quer o amor de Deus.

Eis o ser diante de Deus. Apenas criado, ele ainda não falou. Deve dizer agora a sua primeira palavra, que Deus lhe pede em resposta ao Seu ato cria- dor, a palavra decisiva. Deus lhe fala primeiramente: “Olha, ó criatura, o que há diante de ti. Eu sou o Pai que te criou. Quis fazer-te da minha própria subs- tância, um ‘eu sou’, centro, livre como ‘Eu Sou’. Fiz-te grande com a minha grandeza, poderoso com o meu poder, sábio com a minha sabedoria. Fiz assim, espontaneamente, por um ato de amor para contigo, minha criatura. A este meu ato falta somente um último retoque para ser perfeito, e ele deve partir de ti. Espero-o de ti, que o farás com plena liberdade. Ofereço-te a existência co- mo um grande pacto de amizade. Ele é baseado no amor com que te criei e a que deves o teu ser. Podes aceitar ou não este meu amor. Todo pacto é bilate- ral, toda aceitação de amor deve ser espontânea. É absurda uma imposta cor- respondência de amor. Escolhe. Vê o que Eu já fiz por ti. Eu te precedi com o exemplo. Tu me vês. Olha e decide. Qualquer pressão minha fará de ti uma criatura escrava, e Eu te quis livre, porque deves assemelhar-te a mim. Para que Eu pudesse amar-te como quero, devias ser semelhante a mim. Não se pode pedir amor a um escravo, mas somente obediência imposta, o que está fora do meu sistema e seria a sua inversão. Vem pois, a mim, corresponde ao meu amor, que te chama e te atrai. Confirma a minha obra com a tua aceitação. Por tua livre escolha, consente, entra e coordena-te no meu sistema, do qual Eu sou centro. Subordina o teu “eu sou” menor ao “Eu Sou”, o Uno-Deus, supre- mo vértice que rege o todo. Reconhece a ordem da qual Eu sou o chefe. Pro- mete obediência à Lei, que exprime o meu pensamento e vontade. Por amor te peço, pois que és meu filho, que me retribuas o amor com que te gerei”.

Após essas palavras, por um instante ficou suspensa a respiração do univer- so, enquanto as falanges dos espíritos criados oscilavam em cósmicas ondula- ções. O ser olha e pensa. Ele sente o poder que lhe vem do Pai, uma imensida- de que o torna semelhante a Deus. É livre, como um “eu sou” autônomo, se-

nhor do seu sistema, das suas forças e equilíbrios interiores. A sua própria es- trutura, permeada de divina grandeza, impele-o a repetir em sentido autônomo, separatista, o egocentrismo que ele continha do “Eu Sou” máximo: Deus.

Mas do outro lado há uma força oposta, antiegocêntrica, tendente a neutra- lizar a primeira: o amor. Ele se manifesta como silenciosa atração que se im- põe por bondade. Quem compreendeu esse apelo, verdadeiramente compreen- deu Deus.

As duas forças, assim diversas, movem as falanges dos espíritos, que as examinam e pesam. Belo é o amor, mas acarreta uma renúncia cheia de deve- res, uma renúncia à plenitude total do “eu sou”; implica obediência, o reco- nhecimento de uma posição subordinada. Eis o perigo tentador: exagerar, em seu juízo, a própria semelhança com Deus e admitir uma pretensão de identi- dade. Ao invés de seguir o caminho do amor, coordenando-se com obediência na ordem, tomar a via oposta. Desejar coordenar o próprio “eu sou”, reforçar sua autonomia, fazendo-se isoladamente centro do Sistema com sua própria lei. Imitar Deus somente para superá-Lo. Responder ao doce apelo de amor com um desafio: “Não Deus! Eu, criatura, sou maior do que Tu. Eu sou Deus, não Tu!”.

Então, muitos “deuses” menores, feitos de substância divina, livremente decidiram tornar-se “deuses” maiores, iguais a Deus. A escolha foi feita por eles, e o universo, abalado até aos fundamentos, que estão no espírito, estre- meceu, e parte dele desmoronou, involuindo na matéria. Mas não foi assim para todos os seres. A balança em que foram colocados os dois impulsos, para uma outra multidão de espíritos se inclinou, ao invés, para o lado amor, oposto ao da rebelião por orgulho.

Eles reconheceram a superioridade de Deus e se fundiram na Sua ordem, tornando-se Seus colaboradores, livremente aceitando-a e compreendendo-a. Os primeiros não quiseram reconhecer a Sua supremacia; destacaram-se da Sua ordem e se transformaram em demolidores. Não quiseram aceitá-la e cor- responder. Seu chefe foi Lúcifer. Precipitaram-se, assim, para fora do Sistema, em posição invertida, que lhes será a característica de toda a existência.

É certo que a queda foi devida à falta de conhecimento das consequências da revolta, mas também é certo que a criatura não poderia ser onisciente, igual a Deus. Porém, se ela ignorava, pode-se objetar, então, como lhe pode ser im- putada a culpa de haver caído? Deus deveria tê-la dotado do conhecimento suficiente para compreender antecipadamente as consequências da desobedi-

ência, de modo a não incidir nela. A tal objeção pode-se contrapor que a cria- tura assim teria seguido Deus unicamente no seu egoístico interesse, a fim de furtar-se a um dano, e não por amor. Ora, um ato de aceitação tão fundamental no Sistema, não poderia basear-se num interesse nascido do egoísmo, isto é, em um princípio antípoda àquele que rege todo o Sistema, como é o amor. Ele deveria resultar de uma espontânea adesão por amor, ao compreender a bon- dade do Criador. Como é fundamental no Sistema o princípio do amor, prova- o o fato de o próprio Deus, no seu aspecto imanente, ter seguido o sistema desmoronado para reconstruí-lo, jamais abandonando a criatura, por mais in- justa e rebelde que fosse. E Deus não lhe pedia senão uma prova de amor! Os espíritos obedientes a deram, ainda que, em conhecimento, sendo iguais aos espíritos caídos.

Tiveram, então, início no ser decaído duas vias opostas, que o distinguem. De um lado, o orgulho, o mal, a dor, as trevas, o caos e, consequentemente, a criação e vida na matéria. Do outro, a obediência, o bem, a luz, a ordem e a vida perfeita do puro espírito. A queda é a involução, da qual se sobe redimido pelo esforço da evolução, absorvendo o mal em dor, edificando-se pelo sofri- mento com a experiência da vida, assim desmaterializando-se e espiritualizan- do-se na ascensão ao encontro de Deus, que não abandonou o ser decaído, mas apenas lhe disse: “Destruíste o esplêndido edifício. Contudo continuas a ser meu filho. Reconstruirás, porém, tudo com o teu esforço”.

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Usamos neste capítulo a expressão “queda dos anjos” porque tradicional e de mais fácil compreensão. Todavia, é bom esclarecer ser ela uma expressão antropomórfica, que reduz o fenômeno às dimensões inferiores da matéria. Ainda que acanhado, o antropomorfismo constitui uma necessidade, porque, embora contenha o defeito de desfigurar o real aspecto do fenômeno, tem o valor de aproximá-lo de nosso mundo, tão diferente. Cumpre-nos, pois, aqui realçar que a expressão “queda dos anjos” representa uma redução da realida- de, na medida limitada da psicologia humana. Na verdade, o fenômeno ocor- reu em planos de existência tão elevados, que para nós se situam no supercon- cebível; dimensões onde as nossas representações de espaço e de tempo não têm mais sentido. A imagem, pois, que tivemos de escolher representa uma mutilação, e não uma expressão da realidade.

Se devêssemos explicar a um homem inculto um conceito abstrato, um pro- cesso matemático, um desenvolvimento filosófico ou coisas semelhantes, serí-

amos constrangidos, se quiséssemos nos fazer entender, a apresentar tudo re- vestido de formas materiais, a usar expressões bem concretas, para nos ade- quar à psicologia desse homem, a ponto de os conceitos originais ficarem de- formados, tornando-se quase irreconhecíveis.

Mais verdadeiro é esse fato relativamente à “queda dos anjos”, em face da grande altura em que se deu o fenômeno e sua distância de nós. Era, porém, necessário adaptá-lo à mente humana, caso se quisesse dar uma expressão ao fenômeno, denominando-o “queda”. Mais adiante será explicado o seu signifi- cado de desmoronamento de dimensões a partir de um ponto que, estando situ- ado em planos altíssimos, na sua substância foge completamente à nossa com- preensão.