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CENÁRIOS POSSÍVEIS

3 CONSTRUÇÃO DE ESTADO E FORMAÇÃO DO CHIFRE DA ÁFRICA

3.4 A QUESTÃO DA ERITREIA

Em 1952, em consonância com a decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), de 195093, a Eritreia foi formalmente entregue à Etiópia como uma unidade federativa, devendo submeter-se à soberania etíope, ainda que mantivesse sua

92 O Norte do Sudão é habitado por população mulçumana, enquanto o Sul por cristãos e animistas. Porém, o conflito entre Norte e Sul não pode e não deve ser resumida em uma mera disputa étnico religiosa. Existem interesses políticos e econômicos importantes por detrás do conflito (JOHNSON, D. H, 2016).

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Quarenta e seis membros da ONU votaram contra e dez países (incluindo a URSS) votaram a favor da independência completa da Eritreia (SCHMIDT, 2013; SELASSIE, 1980).

autonomia em questões domésticas94. Como resultado, começaram a surgir os primeiros movimentos nacionalistas na região, se opondo à decisão da AGNU e demandando a independência (BEREKETEAB, 2007; HENZE, 1991; LUCKHAM; BEKELE, 1984a). O governo etíope proibiu todas as formas de organização política e os partidos nacionalistas foram banidos no território. Como resposta, em 1958, influenciado pelo Partido Comunista Sudanês (SCP), foi fundado, por refugiados eritreus no Sudão, o Movimento de Libertação da Eritreia (ELM), o qual, em um primeiro momento, buscou meios pacíficos para alcançar a independência. No ano seguinte, com a instalação de células clandestinas em território Eritreu, o ELM recebeu apoio de estudantes, trabalhadores e intelectuais, e foi responsável por organizar diversas manifestações, demonstrações e greves em Asmara e outros centros urbanos. Em 1960, o incremento da violência do governo contra o ELM marcou uma tentativa de transição das mobilizações pacíficas e ações de não desobediência civil para a luta armada (POOL, 1998; SELASSIE, 1980).

Contudo, a criação de um novo grupo insurgente, a Frente de Libertação da Eritreia (ELF), por um grupo de eritreus exilados no Cairo (liderado por Idris Mohammed Adam e Ibrahim Sultan Ali) e com objetivo declarado de obter a independência do território, impôs sérias limitações ao ELM. O antagonismo entre os dois grupos, somado às repressões por parte do governo, levou o desmantelamento do ELM (BEREKETEAB, 2007; SCHMIDT, 2013; SELASSIE, 1980).

A ELF era um movimento baseado na identidade islâmica95 e planejou a oposição política e a luta armada. Considerando a Eritreia como parte integral de seu império e vital para seus interesses, em função de sua posição estratégica no Mar Vermelho (destaque para os importantes portos de Massawa e Assab), em novembro 1962, a Etiópia revogou a autonomia da região, a qual foi formalmente incorporada ao país como uma das suas catorze regiões (vide figura 4) (POOL, 1980; TAREKE, 2009; SCHMIDT, 2013).

Como resultado, teve início a luta de libertação nacional da Eritreia, a partir das ações armadas do Exército de Libertação da Eritreia (ELA) – braço armado da ELF-

94 O governo regional da Eritreia teria um poder legislativo, executivo e judicial no domínio dos assuntos domésticos, enquanto as questões relacionadas à política externa, defesa, finanças e comércio exterior (inclusive portos) estariam sob a competência do governo federal etíope. Além disso, a resolução da AGNU previa a cidadania comum e o estabelecimento de um Conselho Federal Imperial com representantes eritreus e etíopes (CLAPHAM, 2017; SCHWAB, 1985).

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A população da Eritreia é dividida entre Muçulmanos Sunitas (56%) e Cristãos Ortodoxos (46%) (POOL. 1998).

contra as forças do governo localizadas na região oeste do país, que responderam com o incremento da violência. Seguindo a Estratégia militar adotada pela Frente de Libertação Nacional Argelina (FLNA), para expandir sua capacidade militar e recrutar combatentes dentre os cidadãos o mais facilmente possível, o ELF estabeleceu o sistema de zonas (Wilaya). De acordo com essa estratégia, um “exército de zona” seria composto principalmente por recrutas da própria região, que atuariam com a intenção de liberar suas regiões, pois acreditava-se que assim as pessoas estariam mais dispostas a participar da luta pela libertação96 (BEREKETEAB, 2007; POOL, 1998).

Figura 4 - Regiões administrativas do Império Etíope (1962)

Fonte: Ofcansky; Berry (1993).

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Além disso, a estratégia era vista pelas lideranças como um instrumento capaz de diminuir a competição e a rivalidade dentro da ELF e fomentar a cooperação e harmonia.

Nesse contexto, depois da conferência de Cartum, em 1965, que convocou as lideranças do campo (Comando Revolucionário) e do exterior (Conselho Superior) para fins de reorganização, foi acordada uma nova estratégia organizacional para o exército de libertação. Assim, o exército foi primeiro a ser dividido em quatro zonas (que depois se tornaram cinco), representando as nove províncias da Eritreia98, as quais eram coordenadas por um Conselho Superior (SC) estabelecido no exterior. Além disso, existia o Comando Revolucionário, responsável por fazer o elo entre os comandos das zonas e o SC (BEREKETEAB, 2007; POOL, 1998).

Na prática, no entanto, cada zona acabou estabelecendo seu próprio comando e as decisões econômicas, administrativas e militares eram tomadas independentemente do Comando Revolucionário. O resultado dessa estratégia, portanto, foi extremamente negativo para a coesão interna da ELF, principalmente porque as zonas passaram a competir entre si. Além disso, existiam ainda sérios problemas devido à falta de um programa político claro, de uma liderança política capaz e disciplinada e de uma estrutura organizacional eficiente e definida (BEREKETEAB, 2007).

De acordo com Pool (1998), o sistema de zona elevava o espectro da desunião eritrina, reforçava os poderes de patronagem dos líderes externos em determinadas zonas e minava o raciocínio básico de qualquer luta armada - a vitória militar. Nesse sentido, a baixa coordenação e cooperação entre as zonas contribuíram para as ofensivas do exército imperial contra o ELF, permitindo ataques às zonas separadamente. Além disso, o governo etíope, aproveitando-se da divisão religiosa interna, recrutou eritreus cristãos para lutar contra a ELF, composta majoritariamente por muçulmanos e apoiada por países árabes (BEREKETEAB, 2015; POOL, 1998).

Com o retorno dos jovens combatentes que haviam sido enviados para treinamento militar nos países árabes progressistas, na China e em Cuba, foi criado o Movimento de Retificação. Logo, teve início um debate interno para analisar e corrigir os erros cometidos no decorrer da luta. Os líderes mais jovens defendiam uma reforma interna do movimento com a abolição do sistema de zonas e a adoção de um exército unificado (TAREKE, 2000). O primeiro passo foi a realização da Conferência de Anseba, em 1968, que contou com a presença dos comandantes das zonas 3, 4 e 5. Como resultado, as três zonas (3, 4 e 5) formaram a Unidade Tripartite. No ano seguinte, na Conferência de Adobha, as zonas 1 e 2 se juntaram para formar a Unidade

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A saber: Zona 1 (Barka e Gash), Zona 2 (Sahel e Senhit), Zona 3 (Akkele Guzai e Serae), Zona 4 (Semhar e Dankalia) e Zona 5 (Hamasen) (BEREKETEAB, 2007).

Tripartite. No final da década, no entanto, uma série de dissidências contribuiu para o enfraquecimento do grupo a partir do início dos anos 1970 (BEREKETEAB, 2007; POOL, 1998).

Todavia, as desestabilizações da primeira fase da guerra, os choques interpessoais e as diferenças ideológicas e organizacionais provocaram debilidades na ELF, contribuindo para sua divisão em duas facções em 1970: a ELF - Comando Revolucionário (ELF-RC), composta pelos líderes fundadores da ELF – Força de Libertação Popular (ELF-PLF), formada majoritariamente por uma geração mais jovem99, presidida por Isaias Afewerki e Ramandan Nur. No ano seguinte, a ELF-PLF foi renomeada de Frente de Libertação Popular da Eritreia (EPLF), assumiu a ideologia marxista-leninista e, até 1975, angariou apoio de URSS, Cuba, Alemanha Oriental e Iêmen do Sul, permitindo que o grupo tomasse a frente da luta de libertação com apoio popular (HALLIDAY; MOLINEUX, 1981; SCHWAB, 1985).

Em 1970, foram criados mais três grupos, PLF I, PLF II e Grupo Obele, a partir de dissidências da ELF100. Após uma série de conversações os três grupos firmaram um acordo e estabeleceram a Força Popular de Libertação Eritreia (PLF) que, apesar de preservar sua independência organizacional, possuía uma estrutura de liderança centralizada (YOUNG, 1996).

Em função da grave crise interna, a ELF convocou seu Primeiro Congresso Nacional, em 1971. Ao final do Congresso, foi publicada uma declaração com as decisões tomadas, dentre as quais estava a exigência para que todos os grupos dissidentes (PLF I e Grupo de Obele) reintegrassem a ELF e, caso se recusassem a fazê- lo, a força seria utilizada. A PLF I imediatamente denunciou a decisão e, após uma reunião realizada em novembro de 1971, declarou que não reconhecia o Congresso. Como resultado, o Comando Revolucionário da ELF declarou guerra à PLF I (BEREKETEAB, 2015; POOL, 1998).

Em relação ao PLF II, no entanto, houve uma tentativa de diálogos pacíficos. Além disso, após a declaração de guerra à PLF I, o Comando Revolucionário tentou convencer a PLF II a se afastar da PLF I, pois as operações militares não eram dirigidas

99 Diferentemente da ELF que desejava a autodeterminação da Eritreia, a EPLF tinha como objetivo o estabelecimento de uma democracia popular com uma economia nacional planificada, nacionalização de todas as terras e indústrias, integração da nacionalidade eritreia e apoiar todos os movimentos revolucionários em África (SCHWAB, 1985).

100 Enquanto a PLF I era formada majoritariamente por mulçumanos da província de Semhar, a PLF II era composta por cristãos. O Gupo Obele era formado por combatentes da região de Barka (BEREKETEAB, 2007).

contra eles. Contudo, as lideranças da PLF II não estavam convencidas, ao contrário, interpretaram o apelo como uma tática da ELF para liquidar as diferentes facções, uma por uma (BEREKETEAB, 2007; POOL, 1998).

Nesse sentido, as três facções da ELF, após passarem por um período de transição, se consolidaram em uma organização que gradualmente se tornava uma força importante no contexto da luta de libertação da Eritreia. Contudo, em 1972, houve a divisão do movimento com a saída do Grupo Obele e da Missão Estrangeira, os quais formaram a ELF-PLF. Nesse contexto, a PLF I e II renomearam o grupo de Frente Popular de Libertação da Eritreia (EPLF).

Em 1974, as hostilidades entre os grupos foram cessadas e a guerra civil na região foi encerrada. Para Bereketeab (2007), quatro fatores principais contribuíram para o fim da guerra. Primeiro, a consciência da liderança da ELF que não poderia concluir a guerra em seu benefício; segundo, a queda de Haile Salassié, criou expectativas de uma solução definitiva para o problema da Eritreia; terceiro, a grande pressão popular sobre os grupos para o encerramento do conflito, principalmente a partir dos comitês populares; e quarto, a própria insatisfação interna dentro da ELF em relação a continuação da guerra. Após o fim da guerra civil tiveram início as conversações entre os dois grupos. Nesse mesmo período, houve também um incremento no número de combatentes, sobretudo de jovens, tanto na ELF, quanto na EPLF.

Ao longo da década de 1960, a ELF recebeu apoio militar, financeiro e treinamento de países árabes, sobretudo da Síria, do Iraque e do Iêmen do Sul. Após o golpe militar que levou o Coronel Gaafar Niemeri ao poder no Sudão em 1969, o país se transformou em um dos maiores aliados externos do grupo. A China ofereceu armamentos e treinamentos militares à ELF até 1972, quando o governo etíope reconheceu Pequim como o legitimo representante do povo chinês (SCHMIDT, 2013).

A despeito dos problemas internos, as ações da ELF e de seu braço armado (como bloqueio de rodovias e ferrovias de acesso aos portos de Masswa e Assab), ao longo da década de 1960, tiveram impacto direto na economia etíope, ficando o país dependente da infraestrutura portuária da Somalilândia Francesa (atual Djibuti) para exportação e importação dos bens101. Além disso, na metade da década de 1960, cerca

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Desde 1917, quando foi concluída a construção da ferrovia Adis Abeba – porto do Djibuti (pelos franceses), o protetorado francês passou a ser uma alternativa para as exportações e importações dos

de 50% dos contingentes do Exército Imperial Etíope (aprox. 20.000) estavam estacionados ou lutando na Eritreia (HENZE, 1991; SCHWAB, 1985).

Além da insurgência na Eritreia, a partir de 1967, diversas rebeliões políticas passaram a eclodir ea minaram a base de sustentação da aristocracia feudal. Dentre elas, a rebelião de Gojjam (1967-8)102 foi a mais significativa devido ao seu impacto na política nacional e na tomada de consciência dos militares sobre sua importância na sustentação e sobrevivência do regime. Nesse contexto, a rebelião teve um papel central no declínio da legitimidade política do imperador perante os militares. Schwab (1985) e Tareke (2009) argumentam que, a rebelião de Gojjam, a insurgência na província da Eritreia, somadas à tentativa de golpe de 1960, demonstravam as contradições inerentes à classe governante e sua falta de capacidade para lidar com a oposição articulada.

Nesse mesmo período, os estudantes universitários também começaram a se politizar. Embora desde início da década de 1960 um número crescente deles estivesse envolvido em atividades políticas, somente, a partir de 1967, eles passaram exercer pressão pela reforma agrária e políticas. Apesar de serem, em sua maioria, reformistas, os estudantes universitários representavam uma conexão entre os três grupos: os jovens oficiais militares, que faziam oposição ao sistema feudal, possuíam armas e não eram diretamente ligados à aristocracia; o proletariado urbano e; os camponeses (SCHWAB, 1985; VISENTINI, 2012).

Pode-se afirmar, portanto, que o descontentamento da população frente à inabilidade do regime em efetuar reformas modernizantes em concomitância ao surgimento de novas classes sociais e ao aumento da consciência política engendrou a queda do governo. Corroborando com esse argumento, Tareke (2009) sustenta que a década entre o levante militar e a crise revolucionária testemunhou um crescente rompimento entre o estado absolutista e a sociedade. Para o autor, a expansão do sistema educacional, o lento (porém constante) crescimento do setor capitalista da economia, as crescentes desigualdades entre os grupos sociais e entre as cidades e as vilas, as atividades de extorsão do Estado nas áreas rurais e a crise agrária, contribuíram para minar a base feudal sobre a qual o absolutismo se sustentava (TAREKE, 2009).

bens da Etiópia. Com a eclosão da guerra de libertação da Eritreia cerca de 60% do comércio exterior etíope era realizado pelo porto de Djibuti (SCHWAB, 1985).

102 Os manifestantes se opunham a um programa de reforma agrária lançada pelo regime em 1967. Os rebeldes utilizaram táticas políticas e militares. Em resposta, o imperador enviou cerca de mil soldados à região para conter a rebelião (SCHWAB, 1985).

4 ASPECTOS ESTRUTURAIS DO SISTEMA REGIONAL DO CHIFRE DA