• Nenhum resultado encontrado

VAZIO ESTRATÉGICO, MARGINALIZAÇÃO E CRISE DOS ESTADOS (1991-2000)

CENÁRIOS POSSÍVEIS

2 ÁFRICA NO SISTEMA INTERNACIONAL: ESTRUTURA, AGÊNCIA E ‘DEPENDÊNCIA’

2.3 VAZIO ESTRATÉGICO, MARGINALIZAÇÃO E CRISE DOS ESTADOS (1991-2000)

O final da Guerra Fria trouxe mudanças profundas e importantes desafios para o sistema interafricano. A partir dos anos 1990, o continente africano passou por uma “onda de democracia”, na qual os regimes de partido único foram progressivamente substituídos por sistemas multipartidários liberais-democráticos32, os países em guerras civis (Angola e Moçambique) firmaram acordos de paz e o regime do Apartheid foi desmantelado e a África do Sul se democratizou (ADEBAJO, 2013; GORDON, 2013; VISENTINI, 2012a). Este processo de abertura política (“democratização” massiva), em

32 Isso não significa dizer, todavia, que esse processo tenha se dado em todos os países do continente. Em diversos casos, não houve a adoção dos sistemas multipartidários liberal-democráticos, e em alguns outros, apesar da adoção formal, ela não representou uma mudança efetiva, já que muitos dos líderes usavam uma série de artifícios para se manter no poder sob um discurso de democratização (como Mobutu Sese Seko no Zaire, Paul Biya no Camarões e Omar Bongo no Gabão) (AKOKPARI, 1999; HARBESON, 2009).

grande medida, era condicionado pelo contexto econômico vivido pelo continente, já que progressivamente as instituições financeiras internacionais e as potências ocidentais passaram a intensificar o condicionamento de seus empréstimos e programas de ajuda às reformas democratizantes nos países africanos, num processo de adequação do continente à Nova Ordem Mundial (HARBESON, 2009; CALLAGHY, 2009; TAYLOR, 2010).

Contudo, isso não representou a resolução dos vários problemas do continente. Com o encerramento da Guerra Fria, especialmente, após o colapso da URSS, em 1991, o continente africano perdeu grande parte da sua importância estratégica (política e econômica) e, consequentemente, foi abandonado pelas antigas potências atuantes na região, perdendo a sua capacidade de barganha no cenário internacional. Em grande medida, isto se deveu às novas oportunidades de investimentos (mais seguras e rentáveis) para países centrais com a abertura do leste europeu (ADEBAJO, 2013; CALLAGHY, 2009; AKOKPARI, 1999, 2001). Além disso, os países com governos neoliberais na América do Sul (como Brasil, Argentina e Chile), a Rússia pós-soviética e os Tigres Asiáticos (Taiwan, Cingapura, Coreia do Sul e Hong Kong) também se apresentavam para as potências centrais como alternativas mais seguras ao espaço africano para os seus investimentos (CALLAGHY, 2009; TAYLOR; WILLIAMS, 2004). Além disso, também diminuiu a demanda pelos recursos minerais africanos no imediato pós-Guerra Fria, uma vez que os países do leste europeu e a própria Rússia se tornavam importantes fornecedores (CALLAGHY, 2009; CLAPHAM, 1996).

O resultado foi uma progressiva marginalização política e econômica da África no sistema internacional, acompanhada de uma forte debilidade econômica, e de uma crescente instabilidade política. Com isso, ocorreram vários golpes de Estado e a eclosão de diversos conflitos armados pelo continente – concentrados principalmente nas regiões da África Ocidental, Central (região dos Grandes Lagos) e no Chifre da África - originados, em grande parte, por disputas por poder e recursos e pela falência de alguns Estados (AKOKPARI, 1999, 2000; CHAZAN et al., 1999; VISENTINI, 2016). Como resultado desse processo, houve uma crise generalizada das capacidades coercitiva, extrativa e administrativa dos Estados africanos (CASTELLANO, 2016).

Discutindo a respeito, Adekeye Adebajo (2013, p.25), afirma que:

À medida que a Guerra Fria terminou em 1989, as duas superpotências, EUA e URSS, abandonaram autocratas como Mobutu Sese Seko do Zaire, Siad Barre da Somália e Samuel Doe da Libéria, que tinham servido como clientes

confiáveis na Guerra Fria. Como a ajuda externa que sustentava proxies da Guerra Fria no poder foi cortada, suas redes de comércio ficaram sob crescente ameaça de rebeliões armadas, que frequentemente substituíram os golpes militares como principal método para a substituição de regimes. As reformas econômicas impostas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) incentivaram ainda mais o declínio do controle dos autocratas africanos, motins urbanos e instabilidade social acompanhados de cortes em saúde e educação e da remoção de subsídios governamentais em alimentos e combustível. Em um número crescente de estados, governos africanos não podiam mais exercer funções estatais normais de fornecimento de segurança, ordem e serviços sociais aos seus cidadãos, e perderam o controle sobre o monopólio da violência e sobre burocracias estatais. (ADEBAJO, 2013, p. 25, tradução nossa).

Os conflitos armados da década de 1990 na África foram caracterizados, no geral, pela crescente intensidade, pela complexidade e letalidade das operações, e principalmente, pela presença significativa de atores não estatais (BURBACK; FETTWEIS, 2014; CASTELLANO, 2016). Este foi o caso das guerras civis na Libéria (1989-97); em Serra Leoa (1991-2002); na Somália (1988-...), a qual foi intensificada após o colapso do Estado em 1991; no Burundi (1993-2005); do genocídio de 800 mil tutsis em Ruanda, em 1994; da Primeira e da Segunda Guerra Congo (1996-1997; 1998- 2003), também conhecida por “Guerra Mundial Africana” por envolver nove países do continente;33 e da guerra etíope-eritreu (1998-2000) (ARNOLD, 2008; RENO, 2011; WILLIAMS, 2014).

Num primeiro momento, a comunidade internacional através das Nações Unidas colocou em prática uma política de intervenção humanitária para construção dos Estados no continente34. Contudo, os fracassos na Somália (UNOSOM II – em 1993), em Ruanda (UNAMIR - em 1994) e na Bósnia (UNMIBH – em 1994), levantaram inúmeros questionamentos a respeito da capacidade de atuação da ONU em ambientes complexos, da necessidade de estabelecimento de uma nova doutrina e de uma estrutura de inteligência própria e da possibilidade de delegar essas tarefas para outras organizações. Nesse contexto, o que se viu foi a diminuição do número de operações de paz da ONU para o continente africano na segunda metade da década de 1990 (de 7 em 1993 para 3 missões em 1999). O CSNU só voltou a autorizar novas missões de paz

33

Burundi, Ruanda, Uganda, Angola, Zimbábue, Namíbia, Chade, Sudão e R.D.Congo.

34 Foram criadas no período a Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola II e III (UNAVEM II e III), Missão das Nações Unidas para Moçambique (ONUMOZ), Operação das Nações Unidas na Somália I e II (UNOSOM I e II), Missão de Observação das Nações Unidas Uganda-Ruanda (UNOMUR), Missão de Observação das Nações Unidas na Libéria (UNOMIL), Missão de Assistência das Nações Unidas em Ruanda (UNAMIR), Grupo de Observação das Nações Unidas na Faixa de Aouzou (UNASOG), Missão de Observação das Nações Unidas em Angola (MONUA), Missão de Observação das Nações Unidas em Serra Leoa (UNOMSIL) e a Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUC) (UN, 2018; WIHARTA, 2014).

para o continente no início dos anos 200035, após a publicação do Relatório Brahimi36 (CARDOSO; OLIVEIRA, 2016; MALAN, 2002; MELVIN, 2019c; SCHMIDT, 2018).

Além disso, as potências centrais, sobretudo os EUA, deixaram de se envolver diretamente em operações de paz no continente. Foram criados, nesse contexto, diversos programas, como a ACRI (African Crisis Response Initiative)37, a Iniciativa Multilateral

35 No período 2000-2018 foram estabelecidas 12 operações de manutenção da paz da ONU na África (de caráter multidimensionais e com mandatos robustos), integradas majoritariamente por atores africanos: a Missão das Nações Unidas para a Etiópia e a Eritréia (UNMEE), a Missão das Nações Unidas na Libéria (UNMIL), a Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim (UNOCI), a Operação das Nações Unidas no Burundi (ONUB), a Missão das Nações Unidas no Sudão (UNMIS), Missão das Nações Unidas e da União Africana em Darfur (UNAMID), a Missão das Nações Unidas na República Centro-Africana e no Chade (MINURCAT), a Missão das Nações Unidas para Estabilização na República Democrática do Congo (MONUSCO), a Força Interina de Segurança das Nações Unidas para Abyei (UNISFA), a Missão das Nações Unidas na República do Sudão do Sul (UNMISS), a Missão das Nações Unidas de Estabilização Multidimensional Integrada no Mali (MINUSMA) e a Missão das Nações Unidas na República Centro-Africana (MINUSCA) (UN, 2018; WIHARTA, 2014).

36 É possível agrupar em três categorias as principais recomendações feitas pelo relatório: a) doutrina e

estratégia – o Relatório Brahimi endossou o maior uso de missões de observação nas áreas de grande

tensão, além de recomendar a liberalização do uso da força pelos peacekeepers em operações de paz complexas, se necessário, para manter a segurança essencial para o desenvolvimento das missões. Ademais, a necessidade de mecanismos legais para implantar administrações interinas de transição, bem como, de código criminal interino durante as operações; b) capacidade de operação- o relatório reforçou a necessidade de criação de forças tarefas integradas para as missões que facilitariam a tomada comum de decisões e planejamento conjunto entre Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO) e outros agentes e especialistas envolvidos, assim como a reorganização e revitalização do staff envolvido nas forças de paz, sobretudo do Departamento de Assuntos Políticos (DPA), inclusive, com maior integração entre os dois setores; e c) rapidez e efetividade de

implementação – foram produzidas algumas sugestões que deveriam ser seguidas, na implantação

das missões, com finalidade de ajudar os negociadores, planejadores, tropas e os demais grupos envolvidos cujo o objetivo era o sucesso da missão. Além disso, o relatório recomendou o estabelecimento de prazo de no máximo 30 dias após a concessão do mandato para implementação das missões tradicionais e no máximo até 90 dias para as operações complexas. Outro ponto destacado é a formação de novas lideranças - o relatório instou o DPKO a reestruturar o sistema de formação das lideranças e de recrutamento e reserva de tropas, dividindo-as por nivelamento. É neste contexto que surgiu as operações de paz de terceira geração (2000-), complexas, multidimensionais e integrada, cujos mandatos também são amparados no capítulo VII da carta da ONU – “todos os meios

necessários” para manter a paz. Cabe ressaltar, que nem todas as recomendações desse relatório foram

acatadas, uma vez que a decisão final sempre levou em consideração os órgãos da ONU, sobretudo, a Secretaria Geral e o CSNU. Este é o caso, por exemplo, da sugestão da mudança na doutrina nas equipes responsáveis pelo código de leis e postura das missões, refutada pelo secretário geral. Por outro lado, alguns pontos foram parcialmente aceitos ou carecem de rapidez para sua execução (DURCH et al., 2003).

37 A ACRI foi criada em 1997 pelo governo estadunidense com objetivo de treinar militares e oficiais africanos para participarem das missões de paz no continente e a nível global. Em 2002, a ACRI foi transformada na ACOTA (African Contingency Operations Training and Assistance) que passou a capacitar as forças armadas africanas para operações em ambientes complexos (hostis). Em 2005, a ACOTA foi incorporada à GPOI (Global Peace Operations Initiative), um programa de US$ 660 milhões lançado pelos EUA em 2004 com objetivo de treinar 75.000 forças de paz a nível global até 2010. (HENTZ, 2004; SCHMIDT, 2018; SKÖNS, 2014). Além desses programas, o governo dos Estados Unidos contratou diversas Companhias Militares de Segurança Privada (PMSCs) para treinar exércitos africanos (COPSON, 2007; HENTZ, 2004).

de Cooperação (P-3 Initiative)38, o RECAMP (Renforcement des Capacitis Africaines

de Maintien de la Paix)39 e o APTSP (African Peace-Keeping Training Support

Programme)40, com objetivo de treinar as forças armadas dos países africanos nos níveis tático, operacional e estratégico para conduzirem as operações de manutenção da paz no continente. Esses programas se traduziram, portanto, na formação de militares, policiais e civis de diversos Estados africanos e no apoio logístico e financeiro às organizações regionais africanas envolvidas em operações de paz (MALAN, 2001; SCHMDIT, 2018; SKÖNS, 2014; TOURAY, 2005).

Cientes do “abandono” da África e do desinteresse das potências centrais em atuar em prol da manutenção da paz e estabilidade do continente e face às demandas por uma atuação mais assertiva da OUA, as lideranças africanas passaram a buscar soluções internas para os problemas do continente – soluções africanas para os problemas

africanos41 – através da institucionalização de uma série de mecanismos de aquiescência (prevenção, monitoramento, intervenção, resolução de conflitos) e meios que visam à estabilização da África e à promoção do desenvolvimento econômico

38

A P-3 Initiative foi lançada em 1996 pelos governos dos EUA, França e Reino Unido visando harmonizar os seus programas de apoio à construção de capacidades nos países africanos. No ano seguinte, foi realizado no âmbito do programa, em cooperação com a ECOWAS, o Exercício Blue Pelicano em Guidimakha, Mauritânia (BERNARDINO, 2008; MESSAY, 2003).

39

O RECAMP foi lançado em 1997, num contexto de redefinição da política africana da França, com objetivo oficial de desenvolver capacidades africanas para operações de paz. O programa assentava em três pilares principais: a) formação individual de militares africanos no domínio da manutenção da paz, tanto em instituições francesas como em escolas militares sediadas no continente; b) treinamento de unidades, através de exercícios de militares conjuntos, em ciclos com duração média de dois anos e; c) equipamento de contingentes engajadas em operações de paz a partir de estoques preposicionadas nas bases francesa em Dacar, Djibuti e Libreville. Foram construídos dois centros de formação de oficiais no âmbito do RECAMP – Ecole de Maintien de la Paix (EMP) no Mali e o Centre de

Perfectionnement des Techniques aux Maintien de l'Ordre (CPTMO) em Camarões. Em 2007, no

entanto, a RECAMP foi transformada no programa da União Europeia para o Reforço das Capacidades Africanas de Manutenção da Paz (EUROCAMP) (BERNARDINO, 2008; BROMLEY, 2014; BOULANIN. 2014; SIRADAĞ, 2014).

40

O APTSP foi criado pelo Reino Unido em 1996 também com o objetivo de oferecer treinamentos às forças africanas para as missões de paz na África. Esse programa, de dimensões relativamente modestas, foi substituído em 2001 por uma iniciativa mais ampla e de caráter multidimensional – o

Africa Conflict Prevention Pool (ACPP) – que buscava fortalecer a capacidade dos países africanos

para as operações de manutenção da paz, colaborar nas áreas de Reforma do Setor de Segurança (RSS) e de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR). Em 2008, o ACPP foi incorporado ao Global Conflict Prevention Pool (GCPP), o qual foi renomeado de Conflict Pool (GP) (PERLO- FREMAN, 2014; WILLIAMS, 2004).

40 A partir dos anos 2000, no entanto, houve um aumento de intervenções militares e operações de paz externas no continente tanto no âmbito multilateral, como as lideradas pela União Europeia na RDC (Operation Artemis/EUFOR RDC), no Chade e na República Centro Africana (EUFOR Tchad/RCA) e pela OTAN na Líbia; quanto unilateral, como as intervenções francesas no Chade (Opération

Epervier) na Costa do Marfim (Opération Licorne), na RCA (Opération Boali) e no Mali

recentemente (BROMLEY, 2014; BOULANIN. 2014).

41 Schmidt (2018) salienta que, embora os presidentes Clinton, Bush e Obama tenham elogiado a noção de “soluções africanas para os problemas africanos”, na prática usaram forças africanas para implementar soluções estadunidenses e proteger os interesses do Pentágono.

integrado (ADEBAJO, 2013; RUIZ-GIMENEZ, 2011). Assim, em 1993, sob liderança do Secretário-Geral, Salim Ahmed Salim, a OUA criou um mecanismo de prevenção e resolução de conflitos no continente42, que não teve muito impacto na segurança da região. Além disso, a regionalização dos conflitos armados na África em termos de transbordamentos para a sub-região demandou repostas concretas de atores sub- regionais. Nesse contexto, as organizações sub-regionais, que foram criadas com objetivos estritamente econômicos, foram reformadas e adotaram uma nova agenda regional de cooperação, que passou a incluir questões de segurança e defesa, com objetivo de responder de forma mais satisfatória aos desafios políticos e de segurança que se apresentavam (CARDOSO, OLIVEIRA, 2016; MELVIN, 2019c).

Com base no que dispõe o Capítulo VIII, artigos 52 e 53 da Carta da ONU, estas organizações sub-regionais africanas assumiram a responsabilidade primária na manutenção de paz e segurança nas suas regiões43. Assim, na África Ocidental, a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS) criou em 1990 o Grupo de Monitoramento da Comunidade (ECOMOG) para intervir nas guerras civis na Libéria, Serra Leoa e na Guiné Bissau ao longo da década e, em 1999, foi instituído o Mecanismo para Prevenção e Resolução de Conflitos, Manutenção da Paz e Segurança, responsável pelas questões de segurança da Comunidade44. Na África Austral, em 1994, a Conferência de Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral (SADCC) foi transformada em Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) e, em 1996, foi criado o Órgão para Cooperação em Política, Defesa e Segurança da Comunidade (OPDS), baseado num conceito amplo de segurança. A SADC foi responsável pelas intervenções militares na Segunda Guerra Civil na R.D. do Congo e na crise política no Reino de Lesoto na década de 1990. Na África Central, a Comunidade Econômica dos Estados da África Central (ECCA) institucionalizou, em

42 Em 1996, a OUA adotou pela primeira vez sanções contra um regime saído de um golpe de Estado. As sanções econômicas foram adotadas contra o regime que se instalou no Burundi após o golpe que levou o Major Pierre Buyoya ao poder em julho de 1996. As sanções, no entanto, encontraram forte oposição por parte da União Europeia (UE) e dos EUA, que acreditavam firmemente no trabalho dos líderes moderados, como, na sua visão, Buyoya. Isto minou os esforços regionais e resultou na promulgação de uma constituição de transição em 1998, legitimando assim o golpe (BADMUS, 2015).

43 Embora a Carta da ONU abra caminho para que as organizações regionais participem da resolução pacífica de disputas, mantém o Conselho de Segurança como o principal órgão para a imposição de resoluções (HERZ, 2006). Isto é, as ações coercitivas realizadas pelas organizações sub-regionais requerem autorização prévia do CSONU.

44 Entre as instituições criadas pelo mecanismo destacam-se, nesse contexto, o Conselho de Mediação e Segurança (MSC), a Rede de Alerta e Resposta Rápidos (ECOWARN), o Conselho de Anciãos, a Comissão de Defesa e Segurança (DSC) e a Força de Emergência da ECOWAS (ESF) (CARDOSO; OLIVEIRA, 2015).

2002, o Conselho de Paz e Segurança da África Central (COPAX) e a Força Multinacional da África Central (FOMAC). No Chifre da África, apesar de a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD) não possuir uma força militar de intervenção, a organização mediou com sucesso a Segunda Guerra Civil Sudanesa (1983-2005) e auxiliou na criação de um governo de transição na Somália em 2005 (ADEBAJO, 2008; BADMUS, 2015; FRANCIS, 2006).

Em grande medida, estas instabilidades verificadas na África, a partir do início dos anos 1990, estavam inseridas em – e eram resultados de – um processo de reconfiguração das relações de poder dentro dos – e entre os – países do continente e de formação dos Estados nacionais africanos (VISENTINI, 2013a). O resultado disso foi a “segunda década perdida” para o continente.

Ao longo da década, lentamente, diversos elementos desse processo foram sendo definidos e, ainda que novas disputas e instabilidades tenham surgido, o continente, como um todo, passou a dar sinais de estabilização. Por um lado, atores importantes no continente conseguiram suplantar algumas dificuldades do passado, seja através da superação de fases de instabilidade interna (como a Nigéria, a partir de 1999), de uma busca ativa de “normalização” das relações com a comunidade internacional (como a Líbia, a partir do início da década) ou da consolidação de um papel de liderança regional (como a África do Sul, a partir do fim do Apartheid), se firmando como relevantes atores na diplomacia continental (ADEBAJO, 2013; VISENTINI, 2010).

Por outro, o continente passou a apresentar médias anuais de crescimento do PIB (e do PIB per capita) positivas a partir de meados da década, e praticamente não sofreu os impactos da crise asiática do final dos anos 199045 (CALLAGHY, 2009). Em grande medida, esse desempenho econômico positivo estava diretamente ligado à presença e interação crescentes de parceiros como a China, que à época, além de passar por um processo de desenvolvimento social importante (com a retirada de grandes parcelas da população da situação de pobreza), se tornava importante exportadora de produtos industrializados, tendo aumentado sensivelmente sua demanda por matérias-primas, energia e mercados consumidores (VISENTINI, 2013a).

45

De acordo com Thomas Callaghy (2009), foi justamente a marginalização do continente no cenário internacional – especialmente em termos econômicos, contando, por exemplo, com baixíssimos investimentos externos diretos e com uma interligação precária com a economia mundial – que fez com que a África, com exceção da África do Sul, não fosse duramente impactada pela crise asiática do final dos anos 1990.

Esse contexto, marcado pela diminuição de interesses dos atores extrarregionais pelo continente africano gerou uma janela de oportunidade, permitindo aos atores africanos se reorganizarem em bases mais autônomas e criando novas estruturas e práticas para lidar com os desafios sociopolíticos e de desenvolvimento enfrentados pelo continente (VISENTINI, 2013a). O início dos anos 2000, dessa forma, trazia consigo novas perspectivas para os países africanos e para as relações interafricanas.

Assim, com a ascensão de líderes reformistas, especialmente, nos países que estavam no centro da ordem continental no período, o sistema interafricano passou por profundas reformas e reorganizações ao final da década, cujo objetivo era dar respostas mais eficazes aos problemas continentais (OLIVEIRA, BARBOSA, CARDOSO, 2014). Nesse sentido, a ascensão de Thabo Mbeki na África do Sul, e de Olesegun Obasanjo na Nigéria, em 1999, somadas às manobras engendradas por Muammar Kadafi para retirar a Líbia do isolamento internacional46promovido pelo Ocidente e construir uma base de suporte que possibilitasse uma alternativa estratégica ao Oriente Médio (LANDSBERG, 2010; MAKINDA; OKUMU, 2008; TIEKU, 2004), imprimiu-se uma nova dinâmica nas relações interafricanas a partir dos anos 2000, como se verá adiante.