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1 CIÊNCIA CULTURAL, LINGUAGEM, REALIDADE, DIREITO, ATOS DE FALA E

1.4 A QUESTÃO DO TEMPO DO DIREITO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES NECESSÁRIAS

O modo por que se elabora um sistema temporal complexo é, talvez, o que demonstre as construções linguísticas do real instauradas pela linguagem111.

Queremos com isso dizer que o tempo linguístico varia conforme a língua de cada grupo social. O tempo permeia a linguagem e por consequência a cultura.

Existe um específico tempo da língua diverso do chamado tempo físico112 conhecido como tempo crônico, assim explicado por ÉMILE BENVENISTE. Para este autor, o tempo crônico é o tempo dos acontecimentos; é a nossa própria vida “enquanto sequência de acontecimentos”113. Ele resplandece no calendário, por exemplo.

O tempo físico, por outro lado, ainda segundo ÉMILE BENVENISTE 114, “[...] é um contínuo uniforme, infinito, linear, segmentável à vontade”. Por meio do tempo crônico incisões linguísticas podem ser feitas no tempo físico de forma que marque as passagens importantes ao ser humano. O descobrimento do Brasil, a independência do Brasil, a data de um aniversário são exemplo de tempos crônicos a incidirem sobre o tempo real para estipulação de marcos socializados. Eis a linguagem a criar os momentos tidos por significativos ao homem.

Foi também esse mesmo autor francês115 quem demonstrou haver vínculo umbilical entre o tempo e os atos de fala.

Para este trabalho esse ponto é decisivo, na medida em que o Direito é constituído por atos de fala, e sua temporalização transparece em seu ser, por intermédio da enunciação e do enunciado. Daí afirmar o linguista referenciado116: “É pela língua que se manifesta a experiência humana do tempo, e o tempo linguístico manifesta- se irredutível igualmente ao tempo crônico e ao tempo físico”.

111 BENVENISTE, Émile. A linguagem e a Experiência Humana. In: ___. Problemas de Linguística

Geral II. Tradução Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1989. p. 70.

112 Ibid., p. 71. 113 Ibid., p. 71. 114 Ibid., p. 71. 115 Ibid., p. 74. 116 Ibid., p. 74.

A ligação dessas premissas com o Direito se dá, porquanto o tempo do Direito é marcado pelo seu discurso (enunciação, enunciação-enunciado e enunciado- enunciado). O tempo físico é fugaz e, somente por meio da linguagem, o Direito o capta e o traz para seu campo. Há tempo na Constituição. Há tempo nas normas. Há tempo em todo o ordenamento jurídico. Com o discurso jurídico, o Direito marca o presente, o passado e o futuro para o direito. Segundo EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI117: “[...] o Direito projeta-se para o futuro, mas colhe no passado as condutas que jurisdiciza no presente”.

Em termos da análise do discurso: o Direito projeta-se para o futuro, mas colhe no passado (enunciado-enunciado) as condutas que jurisdiciza no presente (enunciação-enunciada). A este PAULO DE BARROS CARVALHO118 denominou de tempo do fato “[...], instante no qual o enunciado denotativo, perfeitamente integrado como expressão dotada de sentido, ingressa no ordenamento do direito posto”. E, àquele, tempo no fato “[...] ocasião a que alude o enunciado factual, dando conta da ocorrência concreta de um evento”.

No Direito, o tempo é, assim, criação linguística. É o próprio Direito que estipula quando o tempo se dá em seu interior. A essa criação do tempo TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM119 dá o nome de relação Direito-tempo. O tempo está no jurídico e o jurídico está no tempo. O tempo, como ensina FRANÇOIS OST120: [...], se constrói. Temporaliza-se. [...], já não continua a ser exterior às coisas, como um contentor formal e vazio, mas que participa da sua própria natureza”. E continua o autor121: “[...] o direito afecta diretamente a temporalização do tempo, ao passo que, em compensação, o tempo determina a força instituinte do direito.”

No momento, o fundamental é termos em mente que o Direito é temporalizado. Tempo e Direito são inerentes um ao outro. Este sem aquele se desfaz. Tudo nele

117 DE SANTI, Eurico Marcos Diniz. Decadência e prescrição no direito tributário. 4. ed. São

Paulo: Saraiva, 2011, p. 32.

118 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência tributária,

1999. p. 122-123.

119 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Revogação em matéria tributária, 2005, p. 84. 120

OST. François. O tempo do direito. Tradução Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. p. 13.

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se situa no tempo. Como bem verificou JUAN LLAMBIAS DE AZEVEDO122 “[...] la temporalidad es un elemento constitutivo suyo [do direito], pues hemos visto que tiene una vida, que se hace y se deshace, es decir, deviene.”. Mais: importante que seja consignado, outrossim, que é por meio da enunciação que se determina o presente, o passado e o futuro no Direito.

Sim, porque é ela que cria atos de fala no sistema. E todo ato de fala faz referência ao tempo, seja ao tempo do Direito, seja ao tempo no Direito. TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM 123 firma este pormenor: “Tempo da enunciação, tempo na enunciação-enunciada e tempo no enunciado-enunciado, eis o eixo de movimentação do tempo dentro do sistema do direito”.

Mais: o Direito institucionaliza seu próprio tempo, mas dele depende, como ponto referencial e intrínseco, para poder institucionalizar o próprio tempo. Queremos com isso dizer que a institucionalização do tempo pelo Direito não admite criações sem referenciais ao próprio Ordenamento Jurídico. Não se admitem construções carregadas sem sentido deôntico.

Na relação Direito e tempo são necessários átimos temporais marcados e bem definidos para operar-se. Por exemplo: (a) tributo instituído no tempo X passa a ter vigência no tempo Y e tem sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal em Z; (b) a coisa julgada tem prazo de 2 (dois) anos para ser rescindida; (c) José matou João em determinado tempo X; (d) há prazo de 5 (cinco) anos prescricional para repetir o crédito tributário.

Nota-se, assim, que há necessidade de marcos temporais definidos para o Direito instituir o tempo; é preciso, portanto, haver sentido deôntico nessa instituição do tempo pelo Direito. Toda vez que não houver respeito ao sentido deôntico do tempo, haverá afronta ao princípio da segurança jurídica, como será explicado no item

122 LLAMBIAS DE AZEVEDO. Juan. Eidética y aporética del derecho y outros estudios de filosofía

del derecho, 2. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1958. p. 95.

seguinte. Interessante lição teceu EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI124 em relação a este pormenor:

[...] a legalidade não pode impor-se como um ideal sem limites. Não se pode desvelar o verdadeiro sentido da lei, porque ainda que seja lei, a lei é antes palavra, que para fazer sentido tem de passar pelo presente do tempo. A legalidade só “é” em função do tempo: um tempo significa uma legalidade; outro tempo pode significar outra legalidade.

Não podemos perder de vista, ademais, que o tempo para o Direito também é fundamental quando se verifica que o ordenamento jurídico é uma sequência temporal de sistemas jurídicos125. Daí afirmar EUGÊNIO BULYGIN126: “[...] la

expresíon ‘orden jurídico’ será siempre usada para referirse a una secuencia de sistemas jurídicos”. Esta particularidade, todavia, será melhor analisada em capítulo próprio desta dissertação.

1.5 A SEGURANÇA JURÍDICA COMO CARACTERÍSTICA FUNDAMENTAL DO