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3. Revisão de Literatura

3.2. Questões pedagógicas do canto

Além dos complexos aspectos e interações anatomofisiológicas envolvidas na produção da voz expostos no tópico anterior, o estudo e a reflexão acerca do canto deparam-se com questões pedagógicas particulares. A pesquisa sobre a voz

TRADUÇÃO DOS TERMOS DA FIGURA 5: Muscle force: força muscular

Lungs: pulmões Trachea: traqueia

Vocal cords: pregas vocais

Pharyngeal cavity: cavidade faríngea Tongue hump: curvatura da língua Velum: véu ou palato mole

Nasal cavity: cavidade nasal Oral cavity: cavidade oral

Nose output: sinal de saída (nasal) Mouth output: sinal de saída (oral)

cantada encontra variações de conceitos, terminologias e abordagens tão amplas que tal diversidade de termos e ausência de consenso torna-se praticamente uma característica intrínseca à tradição pedagógica e artística no canto.

Sem dúvida, escolas e diferenças de estilos podem ser caracterizados e identificados, mas, na prática, há divergência nas expressões utilizadas. Tal fato ocorre, inclusive, por adeptos de uma mesma escola ou estilo e, por vezes, sobre um mesmo parâmetro de dinâmica vocal, descrição de qualidade de voz ou, até mesmo, sobre certa descrição de algum mecanismo fisiológico subjacente à produção do canto (APPELMAN, 1986; LAVER, 1980; SUNDBERG, 1987; STARK, 2008; MARIZ, 2013).

Essa imprecisão não impede bons resultados de ensino, mas dificulta a discussão em relação a determinadas instâncias do estudo e da pesquisa do canto que pressupõe, além de capacidade perceptiva da sonoridade e da condição corporal do aluno, a possibilidade de compreensão mais objetiva a respeito do treinamento vocal. Por exemplo, uma mesma metáfora ou exercício pode promover resultados completamente diversos em dois cantores diferentes. Sem o consenso de terminologia e sem a construção de uma linguagem comum, inúmeras vezes acontecem falhas ou limitações na comunicação da informação pedagógica e no treinamento para a performance. Tal desencontro tende a ser reduzido com a inclusão de conceitos e termos que possuem correlatos corporais e vocais já consolidados no meio da pesquisa fonética ou da fisiologia da voz.

Hipócrates recebe os créditos de, ainda no século V a.C., ter apresentado as primeiras especulações em relação ao papel e à importância dos pulmões, da traqueia, dos lábios e da língua para a fonação. Entretanto, dentro da tradição do canto ocidental, seja ele erudito ou popular, a inclusão de determinadas reflexões associadas à constituição do instrumento vocal sob uma perspectiva científica é datada do século XIX (GRANGEIRO, 1999; PACHECO, 2006; STARK, 2008; PINTO, 2012).

Antes desta época, a característica primordial dos tratados e métodos de ensino do canto era a da proposta prática e instintiva. Os exercícios utilizados pelos professores durante as aulas seguiam esses mesmos preceitos. O foco principal das obras e do treinamento do cantor residia no estabelecimento de

regras estilísticas e cuidados para um “bom cantar” descrito com adjetivos e termos impressionísticos, com raras associações às questões fisiológicas. Muitas vezes, os professores davam maior ênfase na orientação em relação ao comportamento do pupilo. Desta forma, alguns conceitos utilizados até hoje no meio do canto foram cunhados a partir da demanda musical, expressiva ou comportamental, desprovidos de uma preocupação com os correlatos fisiológicos (PACHECO, 2004; STARK, 2008).

A partir do século XVIII, começa a surgir uma preocupação maior em descrever, em publicações e métodos de ensino, algumas estruturas e movimentações de partes envolvidas no canto, mas, é com a chegada do século XIX, que essa tendência ganha força e adeptos (STARK, 2008; PINTO, 2012; MARIZ, 2013).

Em meio à explosão científica da era positivista, surge uma figura histórica que é apontada por inúmeros estudiosos como um divisor de águas dentro das abordagens do ensino do canto: Manuel Garcia II (RADOMSKY, 2005; PACHECO, 2006; SALOMÃO, 2008; STARK, 2008).

Nascido no início do século XIX, Manuel Garcia II (1805-1906) era de uma família de músicos e teve a curta carreira de cantor interrompida por problemas vocais. Passou, então, a dedicar-se exclusivamente ao ensino do canto. Colecionou sucessos nessa empreitada, chegando a conquistar o posto de professor do renomado conservatório de Paris. Além de somar sucessos em seus treinamentos com cantores de ópera, Manuel Garcia II dedicou-se a pesquisar a fisiologia dos mecanismos vocais. Tal fato produziu informações e descobertas que culminaram no que é descrito por vários pesquisadores como “a grande virada” dentro da pedagogia da voz cantada (RADOMSKY, 2005; PACHECO, 2006; SALOMÃO, 2008; STARK, 2008).

Conta-se que ele, já interessado em buscar recursos para a visualização das pregas vocais, viu o sol refletido nas janelas do Palais Royal e teve a ideia de comprar um espelho dentário e acoplar ao final de um cabo, a fim de observar suas próprias pregas vocais e a de seus alunos: era desenvolvida a técnica de

laringoscopia indireta (PINTO, 2012).3 Com a evolução dos achados científicos,

aconteceu uma proliferação de tratados que incluíam as descrições fisiológicas da voz cantada, mas, possivelmente, Manuel Garcia II foi o primeiro professor de canto a investir na inclusão de informações de fisiologia da voz como estratégia de ensino de canto e aprimoramento da técnica vocal (RADOMSKY, 2005; STARK, 2008; PINTO, 2012; MARIZ, 2013).

Independentemente das controvérsias associadas aos seus métodos de ensino (como as diferentes interpretações sobre sua técnica do golpe de glote), Manuel Garcia II, mobilizado pela inquietude e pelas curiosidades científicas e pedagógicas acerca da constituição e do funcionamento do aparelho fonador enquanto instrumento do canto, acrescenta uma nova consciência aos ensinamentos da voz cantada que transforma os rumos dos estudos nessa área.

Tal mudança de perspectiva na pedagogia da voz cantada (ocidental), a partir da apropriação dos achados científicos para estruturação do treinamento vocal e da formação do cantor, inaugura uma mudança de percepção do corpo e da voz em relação a este corpo. Nesse momento histórico, há a profusão de descobertas e descrições fisiológicas que permitem o conhecimento das associações de várias estruturas do corpo. É neste contexto que Manuel Garcia II inventa o laringoscópio, agregando aos seus estudos e aulas o recurso de visualização da instância glótica. Tal recurso viabiliza, mesmo que ainda de forma rudimentar, a observação das pregas vocais e dos mecanismos da fonação. A fonte glótica e a geração do primeiro sinal acústico podem ser avaliadas durante o canto, para melhor compreensão de sua relevância na qualidade vocal final. Assim, mesmo que a “grande virada” de Manuel Garcia II não tenha sido propriamente um divisor histórico entre procedimentos de ensino, mudança esta processual, podemos dizer que ele iniciou uma nova tendência pedagógica que passaria a

3 Philip Bozzini, Benjamin Guy Babington, Ludwig Turck, Czermak, Adelbert von Tobold são outros

nomes associados à história da invenção e do aperfeiçoamento do laringoscópio. Em 1854, há o registro de que Manuel Patricio Rodríguez Garcia alegou ser o primeiro a ver sua própria laringe usando, de forma adaptada, um espelho que era utilizado por dentistas. E, ainda, publicando sua experiência no ano seguinte, obteve da Universidade de Konigsberg um diploma de médico honorário pelo relato de seus estudos. No contexto de nosso trabalho, o que queremos ressaltar é a perspectiva que Manuel Garcia acrescenta em seus procedimentos pedagógicos, a partir da inclusão do aspecto fisiológico da produção vocal em seus ensinamentos (PEREIRA, 2014).

coexistir com os métodos adeptos de descrições exclusivamente metafóricas, impressionísticas ou holísticas.

Sob esse aspecto, tal mudança na pedagogia do canto (ocidental), a partir da inclusão das informações e dos termos advindos de pesquisas científicas, passou a oferecer uma alternativa para a condução dos estudos da voz, por meio da inclusão de um acervo mais objetivo e consensual de termos e descritores dos mecanismos e treinamentos vocais.

Atualmente, mesmo que uma grande parcela de cantores opte por mesclar técnicas, podemos identificar ainda um grande número de escolas de canto vigentes: escola italiana, francesa, alemã, belting, speech-level etc. Cada uma com suas particularidades e, em geral, oferecendo soluções vocais voltadas para um estilo específico de repertório de canto. Mesmo com todos os avanços científicos e técnicas de investigação, percebemos, ao conviver com os termos empregados por estas variadas abordagens, que ainda não há uma terminologia comum neste meio, nem para descrever fenômenos subjacentes a qualquer atividade fonatória, nem para conseguir estabelecer estudos comparativos entre estas linhas de trabalho vocal (SUNDBERG, 1987; BJORKNER, 2006; SALOMÃO, 2008; MARIZ, 2013).

Reforça este aspecto a questão respiratória propriamente dita, para a qual também é possível listar divergências conceituais e descrição de recursos técnicos contrastantes como: apoio, contra-apoio, técnica de “não apoiar”. Alguns destes termos aparentemente contrários são utilizados, inclusive, entre cantores pertencentes a uma mesma escola ou treinados por um mesmo professor (SUNDBERG, 1987; SUNDBERG, 1992, MARIZ, 2013).

Desta forma, entendemos que a investigação que busca uma descrição mais objetiva sobre a qualidade da voz cantada demanda subsídios descritivos de fora do âmbito musical, e do jargão associado ao canto, predominantemente impressionístico e sem situação de consenso. Ou seja, o estudo da qualidade vocal solicita ferramentas conceituais que permitam a identificação e a descrição (sem o juízo de valor) das possibilidades de interações e ajustes do aparelho fonador, assim como dos parâmetros para os diferenciais de

gradiência dos processos envolvidos na produção vocal (LAVER, 1980; SUNDBERG, 1987).

Ainda considerando questões pedagógicas relevantes acerca da voz cantada, podemos citar as possíveis diferenças respiratórias e vocais entre os naipes de canto, os ajustes específicos de cada indivíduo e as diferenças entre os procedimentos corporais utilizados durante o canto solo e o canto coral (SUNDBERG, 1987; GRANGEIRO, 1999; CRUZ, 2006; PACHECO, 2006; BASTOS, FERREIRA, CAMARGO, PINHO, 2007; MELLO, 2008).

Em relação ao conceito de naipe, na música ocidental, um coro misto (de vozes adultas masculinas e femininas) compõe-se de quatro naipes: sopranos (vozes agudas femininas), contraltos (vozes graves femininas), tenores (vozes agudas masculinas) e baixos (vozes graves masculinas). Essa classificação das vozes leva em conta as características vocais do cantor em relação à extensão, região da extensão com maior aproveitamento de volume e resistência, notas de transição dos registros vocais e qualidade vocal (COSTA, 2001; BEHLAU, REHDER, 1997; BASTOS, FERREIRA, CAMARGO, PINHO, 2007).

Além destes quatro naipes, também são descritas outras duas categorias: o mezzo-soprano (voz feminina intermediária entre o contralto e o soprano) e o barítono (voz masculina intermediária entre o baixo e o tenor) (GRANGEIRO, 1999). Ainda sobre essa questão do conceito de naipe e classificações vocais, é importante lembrar que há a classificação vocal de contratenor e de sopranista, atualmente atribuída ao resultado da técnica de falsete utilizada por homens adultos, com voz falada de tenor ou baixo, para cantar partes dos naipes de contralto ou soprano (CRUZ, 2006).

Observando os critérios de classificação das vozes, embora não aconteça uma determinação infalível, é possível perceber que cada naipe tende a uma estrutura corporal e a certas características anatomofisiológicas. Esse fato sugere que aspectos como extensão, região de troca de registros e conforto de emissão também dependem da constituição corporal do instrumento, além da escolha técnica (COSTA, 2001; BEHLAU, REHDER, 2007).

Como já mencionado, não há uma determinação por tais fatores, mas essas tendências de características biomecânicas demonstram que cada naipe

corresponde a um instrumento de canto diferente e, possivelmente, apresenta características respiratórias diversas (SUNDBERG, 1987; BEHLAU, REHDER, 1997; GRANGEIRO, 1999; PACHECO, 2006).

Dentre as singularidades no âmbito do ensino do canto, finalizamos observando que os ajustes individuais, a faixa etária e as solicitações de cada estilo, assim como as diferenças entre o canto solo ou coral, apresentam-se como variáveis relevantes na prática pedagógica e nos estudos da voz cantada. Essas características foram consideradas para definir a delimitação e caracterização do grupo de sujeitos desta pesquisa (SUNDBERG, 1987; BEHLAU, PONTES, 2001; BJORKNER, 2006; PINHO, KORN, PONTES, 2014).

3.3. Fundamentação teórica para estudos acústicos e perceptivos da

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