PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Maria Lucia da Cunha Waldow
Estratégias respiratórias e seus efeitos na qualidade da
voz cantada: um estudo acústico e perceptivo
Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem
Maria Lucia da Cunha Waldow
Estratégias respiratórias e seus efeitos na qualidade da
voz cantada: um estudo acústico e perceptivo
Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, sob orientação da Profª. Drª. Zuleica Camargo.
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
FICHA CATALOGRÁFICA
Waldow, Maria Lucia da Cunha
Estratégias respiratórias e seus efeitos na qualidade da voz cantada: um estudo acústico e perceptivo, 2015.
108p.: il.; 30 cm
Dissertação de Mestrado apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre. Área de Concentração: Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem.
Orientador: Camargo, Zuleica
Maria Lucia da Cunha Waldow
Estratégias respiratórias e seus efeitos na qualidade da voz cantada: um estudo acústico e perceptivo
Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, sob orientação da Profª. Drª. Zuleica Camargo.
Aprovada em: ____ / ____ / ______
Banca Examinadora
Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição: _____________________________ Assinatura: ___________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição: _____________________________ Assinatura: ___________________
AGRADECIMENTO ESPECIAL
AGRADECIMENTOS
Este trabalho só aconteceu graças à colaboração e ao apoio de muitas pessoas que se envolveram com o projeto e contribuíram para seu desenvolvimento e realização.
Agradeço, com todo o meu amor, aos meus amados Horácio e Babu, família escolhida, por todo afeto, por toda a inspiração e toda a força!
Para Fabíola, todo meu amor, admiração e gratidão sempre, minha irmã querida. Sem você, não teria conseguido seguir, meu porto seguro!
Para Mônica Castro e Francisca Monteiro, meus profundos agradecimentos pela escuta, apoio, torcida, carinho e colo nas horas difíceis!
Para Ching Wong Ann e Célia Strauss, meu obrigada pelo suporte, ensinamentos e ajuda logística para enfrentar os desafios do projeto no contexto do cotidiano.
Agradeço o apoio e carinho dos meus queridos Adriana Prior, Rogério Nascimento e Sylvia Vitalle.
Agradeço à Profª. Drª. Sílvia Pinho por ter partilhado tantos conhecimentos em seus cursos e por ter me ensinado a importância do conhecimento da fisiologia da voz para o estudo, a performance e o ensino do canto.
Agradeço ao Prof. Dr. Celso Carvalho e equipe, em especial, aos pesquisadores Desiderio Cano e Renata Claudim por toda atenção e ensinamentos preciosos sobre respiração e possibilidades de pesquisa e avaliação do comportamento respiratório, no laboratório e ambulatório de fisioterapia do Instituto Central do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Agradeço as contribuições e reflexões propostas pela Profª. Drª Gláucia Salomão durante a qualificação, importantes motivações e esclarecimentos para a finalização deste estudo.
Agradeço ao Prof. Dr. Luiz Carlos Rusilo por todo suporte e contribuição essencial nas questões estatísticas deste trabalho.
Para a doutoranda Nathalia Reis, meus agradecimentos por todo o suporte técnico, ensinamentos, companheirismo e generosidade.
Agradeço ao Prof. Dr. Enio Lopes por toda a contribuição, envolvimento e apoio na fase de definição do experimento e das coletas de dados.
Agradeço à Profª. Drª. Lilian Kunh pelos ensinamentos do PRAAT, etiquetagem e colaboração nas coletas.
Agradeço à doutoranda Andrea Baldi por todo suporte, apoio, conversas, colo acadêmico e aprendizado, além de toda ajuda com a Plataforma Brasil e durante as coletas.
Agradeço todas as risadas, cafés e ajudas providenciais da mestranda Layla Penha nas versões do resumo para o inglês e no companheirismo durante as disciplinas do curso.
Agradeço à mestranda Gabriela Luiza Daneluci por seu coleguismo e por sempre partilhar informações importantes.
Agradeço às estagiárias do LIAAC pela ajuda na finalização da etiquetagem dos arquivos.
Agradeço ao Luiz Hirano e ao CEM pelo apoio e pela torcida constante ao longo de todo o curso de mestrado.
Agradeço, de todo o coração, aos meus alunos pela renovação de perspectivas, alegrias e amor pelo canto.
Agradeço as contribuições de Ingrid Galleazzo.
Agradeço Mariana Waldow, Vinícius Waldow e Tiaraju Aronovich pelas ajudas com traduções, computadores, PowerPoint e localização de artigos. Agradeço ao Luís Eduardo Waldow por seu carinho.
Agradeço aos meus pais pela possibilidade da existência e do estudo.
Agradeço a generosidade e o apoio de todos aqueles que me auxiliaram com questões técnicas, metodológicas e criativas durante o projeto.
A lista é grande e aumenta a cada dia, fato que renova minha motivação para a pesquisa, para o canto e a música e para continuar seguindo, mesmo em períodos de extremo desafio.
RESUMO
Waldow, M. L. C. Estratégias respiratórias e seus efeitos na qualidade da voz cantada: um estudo acústico e perceptivo. [Dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015.
A qualidade vocal constitui um elemento fundamental da expressão do canto. Estratégias respiratórias utilizadas durante a produção da voz cantada podem promover inúmeras mobilizações pneumofonoarticulatórias e, desta forma, demonstram-se relevantes para a função vocal como um todo e para a produção e variação da qualidade vocal. O objetivo desta pesquisa foi o de investigar os efeitos de estratégias respiratórias na qualidade da voz cantada, em indivíduos saudáveis e sem treinamento profissional. Participaram do estudo quatro sopranos com idades entre 25 e 35 anos. Os procedimentos de coleta foram realizados por meio da avaliação da estratégia respiratória utilizada pelos sujeitos, realizada por juiz credenciado no método GDS (Godelieve Dennys-Struyf – Method), e registro de amostras em formato de áudio. O corpus foi composto por um trecho de canção e uma vocalização, realizadas a partir das estratégias respiratórias clavicular e costodiafragmática abdominal, em forte e fraca intensidades. As amostras de áudio foram submetidas à análise perceptivo-auditiva (julgamentos de similaridade, afinação, agradabilidade, intensidade e tensão), por juízes com experiência na área de canto, e à análise acústica (medidas de f0, intensidade, declínio espectral e espectro de longo termo, extraídas a partir do script ExpressionEvaluator no
software PRAAT). Os dados foram analisados por meio de análise estatística de natureza multivariada. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da PUC-SP sob o número de 782.680. Os resultados indicaram a diferenciação das medidas acústicas para as estratégias respiratórias, especialmente em termos da média e do desvio-padrão de declínio espectral. Na etapa perceptiva, estas diferenças acústicas, produzidas a partir de cada estratégia respiratória, foram detectadas pelos juízes. Correlações entre as esferas acústica e perceptiva foram demonstradas na análise integrada, destacando-se a influência da estratégia respiratória no julgamento da agradabilidade da voz e do padrão de afinação, assim como a relação entre as medidas relativas à tensão laríngea (média e desvio-padrão de declínio espectral) e a percepção das diferenças de qualidade vocal.
ABSTRACT
Waldow, M. L. C. Respiratory strategies and their effects on voice quality in singing: an acoustic and perceptual study. [Dissertation]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015.
Voice quality is a key element in singing. Respiratory strategies used during the production of singing may promote several pnemophonoarticulatory movements and, thus, are relevant for vocal function as a whole, as well as for production and variation of vocal quality. The objective of this study was to investigate the effects of respiratory strategies on voice quality in singing in healthy individuals without professional training. The subjects of the study were four sopranos, aged between 25 and 35 years old. Collection procedures included an assessment of the respiratory strategy used by the subjects, conducted by a GDS Method – accredited judge (Godelieve Dennys-Struyf Muscular Chains Method), and recording the samples in audio format. The corpus comprised an extract of a song and a vocalization, performed from clavicular and abdominal costal diaphragmatic respiratory strategies, in strong and weak intensities. Audio samples were submitted to perceptual analysis, conducted by judges with experience in the area of singing on similarity, tuning, pleasantness, intensity and tension. An acoustic analysis (measures of f0, intensity, spectral slope and long-term spectrum) was conducted in PRAAT software using
ExpressionEvaluator script. Data were submitted to multivariate statistical analysis. Project approved by PUC-SP Ethics and Research Committee under number 782.680. Results indicate different acoustic measures depending on respiratory strategies, particularly in terms of average and standard deviation spectral slope. In the perceptual analysis, judges were able to detect the differences produced by each respiratory strategy. Correlations between the acoustic and perceptual areas were shown in an integrated analysis, highlighting the influence of the respiratory strategy in judging voice pleasantness and tuning pattern, as well as the relationship between measures relative to laryngeal tension (average and standard deviation spectral slope) and perception of voice quality differences.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Matriz de confusão para amostra de validação cruzada da análise discriminante para estimação das tarefas trechos de canção (inicial e final) e vocalizações (oitava e sustentação de grave) a partir das medidas acústicas. ... 66 Tabela 2 – Matriz de confusão para amostra de validação cruzada da análise
discriminante para estimação das estratégias respiratórias (alta e baixa) a partir das medidas acústicas extraídas de amostras de trechos de canção (inicial e final) e vocalizações (oitava e grave). ... 71 Tabela 3 – Matriz de confusão para amostra validação cruzada da análise
discriminante para estimação das estratégias respiratórias (alta e baixa) a partir das medidas acústicas extraídas de amostras de trechos de canção inicial (sem agudo final sustentado). ... 72 Tabela 4 – Matriz de confusão para amostra validação cruzada da análise
discriminante para estimação das estratégias respiratórias (alta e baixa) a partir das medidas acústicas extraídas de amostras de trechos de canção final (sustentação de agudo). ... 73 Tabela 5 – Matriz de confusão para amostra validação cruzada da análise
discriminante para estimação das estratégias respiratórias (alta e baixa) a partir das medidas acústicas extraídas de amostras de vocalização (oitava). ... 74 Tabela 6 – Matriz de confusão para amostra validação cruzada da análise
discriminante para estimação das estratégias respiratórias (alta e baixa) a partir das medidas acústicas extraídas de amostras de vocalização (sustentação de grave). ... 75 Tabela 7 – Matriz de confusão para amostra de validação cruzada da análise
Tabela 8 – Matriz de confusão para amostra de validação cruzada da análise discriminante para estimação de intensidade a partir das medidas acústicas das amostras de trechos de canção (parte inicial e final) e vocalizações (oitava e sustentação de grave). ... 78 Tabela 9 – Síntese de variáveis relevantes (em %) da análise discriminante das
respostas às questões 1 a 5. ... 80 Tabela 10 – Níveis de correlação (em %) das respostas às questões 1 a 5 da
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Tradução dos termos da Figura 1. ... 27
Quadro 2 – Tradução dos termos da Figura 3. ... 34
Quadro 3 – Tradução dos termos da Figura 5. ... 38
Quadro 4 – Tradução dos termos da Figura 6. ... 47
Quadro 5 – Características dos sujeitos do grupo estudado quanto a idade, formação musical, experiência em canto coral e características biofísicas. ... 50
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Aparelho fonador: trato vocal e vias aéreas (traqueia, brônquios e pulmões). ... 27 Figura 2 – Imagem ilustrativa da ligação biomecânica entre a musculatura
respiratória e o volume pulmonar. ... 32 Figura 3 – Cartilagens e respectivos músculos intrínsecos da laringe. ... 33 Figura 4 – Imagem esquemática: pressão subglótica vibração das pregas
vocais... 35 Figura 5 – Representação esquemática da produção vocal. ... 38 Figura 6 – Imagem esquemática do Modelo fonte-filtro para a produção das
vogais – Teoria acústica da produção da fala – estruturas fisiológicas e representações do espectro da fonte glótica, da filtragem supraglótica (transferência) e da saída (outputvocal). ... 46 Figura 7 – Set de gravação, cantora realizando estratégia de respiração
clavicular (respiração alta). ... 54 Figura 8 – Set de gravação, cantora realizando estratégia de respiração
costodiafragmática abdominal (respiração baixa). ... 54 Figura 9 – Imagem da partitura de referência da tarefa trecho de canção:
partitura adaptada de trecho da canção renascentista “Pase el Agua” (compositor anônimo), com sustentação da nota Fá 4 no final. ... 58 Figura 10 – Imagem da partitura de referência para tarefa vocalização de oitava
em [a], com sustentação inicial da nota Dó 3, solicitada durante a coleta de dados. ... 58 Figura 11 – Imagem de tela do software PRAAT com trecho de arquivo e
Figura 12 – Imagem da partitura correspondente a etiquetagem da tarefa trecho de canção – trecho de canção inicial (parte sem sustentação de agudo) e trecho de canção final (sustentação agudo final). ... 62 Figura 13 – Imagem de tela do software PRAAT com trecho de arquivo e
exemplo do padrão de etiquetagem utilizado para separação e organização das amostras do exercício de vocalização de oitava com sustentação de grave inicial. ... 63 Figura 14 – Imagem da partitura correspondente a etiquetagem da vocalização
(sustentação de grave inicial e oitava). ... 63 Figura 15 – Gráfico de centroides da análise discriminante das tarefas trechos
de canção (inicial e final) e vocalizações (oitava e sustentação de grave) a partir das medidas acústicas. ... 66 Figura 16 – Gráfico de centroides da análise discriminante de estratégia
respiratória a partir de medidas acústicas extraídas das amostras de trechos de canção (inicial e final) e vocalizações (oitava e sustentação de grave)... 72 Figura 17 – Gráfico de centroides da análise discriminante de estratégia
respiratória a partir de medidas acústicas das amostras de trechos de canção inicial (sem agudo final sustentado). ... 73 Figura 18 – Gráfico de centroides da análise discriminante de estratégia
respiratória a partir de medidas acústicas para estratégia respiratória das amostras de trechos de trechos de canção final (sustentação de agudo final). ... 74 Figura 19 – Gráfico de centroides da análise discriminante de estratégia
respiratória a partir de medidas acústicas para estratégia respiratória das amostras de trechos de vocalização (oitava). ... 75 Figura 20 – Gráfico de centroides da análise discriminante de estratégia
respiratória a partir de medidas acústicas para estratégia respiratória das amostras de trechos de vocalização (sustentação de grave). ... 76 Figura 21 – Gráfico de centroides da análise discriminante de cantoras, a partir
de canção (parte inicial e final) e vocalizações (oitava e sustentação de grave)... 77 Figura 22 – Gráfico de centroides da análise discriminante da intensidade, a
partir de medidas acústicas para estratégia respiratória das amostras de de trechos de canção (parte inicial e final) e vocalizações (oitava e sustentação de grave). ... 78 Figura 23 – Dendograma da análise aglomerativa hierárquica de cluster –
SUMÁRIO
1. Introdução ... 18
2. Objetivo ... 25
3. Revisão de Literatura ... 26
3.1.Mecanismos básicos subjacentes ao canto... 26
3.2. Questões pedagógicas do canto ... 38
3.3. Fundamentação teórica para estudos acústicos e perceptivos da qualidade da voz cantada ... 44
3.4.Instrumentos de investigação da qualidade vocal ... 47
4. Metodologia ... 49
4.1.Descrição dos sujeitos ... 49
4.2. Procedimentos de coleta de dados ... 51
4.3. Procedimentos de análise dos dados ... 59
4.3.1. Análise das estratégias respiratórias ... 60
4.3.2. Análise das amostras de áudio... 61
4.3.2.1.Análise acústica por meio do script Expression Evaluator (BARBOSA, 2009) ... 61
4.3.2.1.1. Análise estatística dos dados acústicos ... 65
4.3.2.2.Análise perceptivo-auditiva ... 67
4.3.2.2.1. Análise estatística dos dados perceptivos ... 70
4.3.3. Análise integrada de dados ... 70
5. Resultados ... 71
5.1. Dados de análise acústica ... 71
5.1.2. Análise discriminante das cantoras ... 76
5.1.3. Análise discriminante da intensidade ... 78
5.1.4. Análise aglomerativa hierárquica de cluster ... 79
5.2.Dados de análise perceptiva ... 80
5.2.1. Análise de confiabilidade intra e interjuízes ... 80
5.2.2. Análise discriminante para as respostas das questões 1 a 5 ... 80
5.3.Dados de análise integrada: acústicos e perceptivos ... 81
5.3.1. Análise de correlação canônica ... 81
6. Discussão ... 82
7. Conclusões ... 93
8. Referências ... 94
Anexo 1 – Autorização para uso do scriptExpressionEvaluator... 101
Anexo 2 – Autorização para uso de imagem ... 102
Apêndice 1 – Roteiro de perguntas para inclusão ou exclusão de sujeitos de pesquisa ... 103
Apêndice 2 – Termo de consentimento livre e esclarecido ... 104
Apêndice 3 – Tutorial para coleta de dados ... 106
Apêndice 4 – Roteiro para realização de tarefas nas coletas para a pesquisa ... 107
1. INTRODUÇÃO
Um dos desafios do ensino e aprimoramento técnico do canto reside no fato
de que a maior parte dos mecanismos de controle da produção vocal não é passível
de observação direta.
Assim, a busca pela integração dos recursos perceptivos e metafóricos
tradicionalmente utilizados no ensino do canto às informações geradas pelas
pesquisas científicas na área de voz faz-se cada vez mais presente. Tal fato não
deixa de ser também uma consequência das atuais demandas do ensino e da
performance da voz cantada (APPELMAN,1986; COELHO, 1994; SCARPEL,
PINHO, 2001; CORDEIRO, PINHO, CAMARGO, 2007; MELLO, 2008; PINHO,
KORN, PONTES, 2014).
A expressão e a comunicação na fala e no canto são possíveis, em parte,
pela possibilidade de controle dos mecanismos do aparelho fonador. Fala e canto
são funções adaptadas que envolvem e mobilizam estruturas dos aparelhos
respiratório e digestório, e solicitam do corpo a organização e coordenação de
diversos e sofisticados ajustes (MATEUS et al, 2005; FERREIRA, 2012; PINHO,
KORN, PONTES, 2014). Tais ajustes mobilizam a coordenação de conjuntos de
estruturas (MELLO, 2008; MELLO, ANDRADA E SILVA, 2009). Dessa forma,
percebemos que as atividades do canto e da fala envolvem mecanismos
associados: neurolinguísticos, aerodinâmicos, fonatórios, articulatórios, acústicos e
auditivos (ABERCROMBIE, 1967; SUNDBERG, 1987; CAMARGO, 2002; PINHO,
KORN, PONTES, 2014).
Essas atividades são, portanto, extremamente elaboradas, frutos da
adaptação e do desenvolvimento do corpo pela evolução, em prol da necessidade
de comunicação e expressão humanas.
Aspectos da dinâmica vocal produzidos pela variação da altura, da
intensidade e da duração são propriedades prosódicas e podem ser modificados por
meio do controle dos mecanismos do aparelho fonador. Além desses aspectos da
musculares de longo termo que podem ocorrer simultaneamente nos níveis laríngeo
(ajustes fonatórios), supralaríngeo (ajustes articulatórios) e de tensão muscular
(ajustes de tensão laríngea e supralaríngea). A qualidade vocal significa, portanto, a
complexa resultante de características multidimensionais da voz de cada falante ou
cantor (LAVER, 1980; BJORKNER, 2006; PINHO, KORN, PONTES, 2014). O
controle das variações da qualidade vocal e dos aspectos da dinâmica vocal são
mecanismos da produção da voz utilizados para expressar emoções e atitudes na
fala e no canto (BEHLAU, PONTES, 2001; CAMARGO, 2002; MADUREIRA, 2004;
SALOMÃO, 2008; GUSMÃO et al, 2010).
A qualidade vocal, dentre estes recursos de controle e variação da expressão
da voz, é um dos elementos de grande interesse nas pesquisas sobre a produção da
voz humana e representa uma das questões centrais no treinamento e na
construção da proficiência no canto (SUDBERG, 1987; BJORKNER, 2006). Assim
como na fala, diferentes qualidades vocais são utilizadas durante a voz cantada e,
como supracitado, acontecem pela integração de múltiplos fatores em função da
demanda expressiva e técnica da performance musical (ADLER, 1965; APPELMAN,
1986; SCARPEL, PINHO, 2001; BJORKNER, 2006; PETER PINHO, 2007;
SALOMÃO, 2008).
A coordenação desses fatores, enquanto demanda multifacetada do canto,
impõe ao corpo e, especialmente ao aparelho fonador, uma exigência
significativamente maior e mais refinada que a imposta pela fala cotidiana. São os
mesmos órgãos pneumofonoarticulatórios1 acionados, mas, na maior parte dos
cantos que se pretendam artísticos nos moldes ocidentais, os ajustes precisam ser
produzidos a partir de planejamento e de escolhas técnicas, a fim de alcançar
determinado resultado expressivo e musical (CELLETTI, 1996; BJORKNER, 2006;
PETER, PINHO, 2007; MELLO, ANDRADA E SILVA, 2008; SALOMÃO, 2008;
PINHO et al, 2014). Ou seja, há uma clara necessidade de construção de controle
da resultante vocal e, portanto, de conhecimento dos mecanismos subjacentes a
esta produção, assim como a consciência sobre a interferência da variação de seus
elementos no resultado qualitativo da voz.
Recursos pedagógicos proprioceptivos, assim como a experimentação
corporal, respiratória e vocal durante os treinamentos da voz cantada, já
contribuem com subsídios de autopercepção e elaboração de sensações ligadas
ao comportamento da voz enquanto instrumento (APPELMAN, 1986; FERREIRA,
1988; CELETTI, 1996; COELHO, 1994; COSTA, ANDRADA E SILVA, 1998;
PACHECO, 2006). Mas a falta de consenso na área do canto a respeito da
descrição, da conceituação e do treinamento adequado das estruturas envolvidas
reforça a importância de agregar informações advindas de estudos experimentais
em voz para os procedimentos pedagógicos.
Esse tipo de abordagem de ensino resulta em méritos importantes para o
desenvolvimento vocal e musical. Entretanto, a construção técnica gerada por um
maior conhecimento do funcionamento e das possibilidades de controle do
instrumento vocal promove condições para o aprimoramento destas ferramentas
pedagógicas. Um exemplo do acréscimo desse tipo de enfoque é o próprio
refinamento da percepção em si, proporcionado pelo olhar mais abrangente sobre o
produto vocal final da voz cantada. Com essa soma de perspectivas, há a
possibilidade de associar a percepção sensorial da qualidade vocal do canto com
seus possíveis correlatos fisiológicos, aerodinâmicos e acústicos. Tal integração na
condução do treinamento vocal redimensiona o recurso perceptivo que passa a não
só fornecer sensações metafóricas sobre o som, mas oferece pistas sobre os ajustes
corporais relacionados na produção vocal.
Apesar da falta de consensos pedagógicos e conceituais na área do canto, a
respiração sempre foi apontada por respeitadas escolas e metodologias como um
dos pilares técnicos da voz cantada (MARCHESI, 1970; APPELMAN, 1986;
CELETTI, 1996; COELHO, 1994; THOMASSON, 2003; BJORKNER, 2006;
PACHECO, 2006; GAVA JÚNIOR et al, 2010). A respiração também é citada como
um dos elementos básicos da comunicação, expressão e produção vocal
(MASSINI-CAGLIARI, (MASSINI-CAGLIARI, 2001; SILVA, 2002; MADUREIRA, 2004). Dessa forma, o
papel ocupado pela respiração na produção da voz e a dificuldade de consenso a
os efeitos acústicos e perceptivos que diferentes estratégias respiratórias podem
promover sobre a qualidade da voz cantada.
Sem dúvida, o canto é resultado de múltiplos fatores e não somente da
respiração, mas, talvez, o papel da respiração como personagem central das
questões vocais tenha uma resposta na própria funcionalidade do corpo enquanto
instrumento do canto.
A produção vocal, tanto na fala quanto no canto, é possível a partir de vários
comportamentos respiratórios (SUNDBERG, 1992; THOMASSON, 2003; STARK,
2008). De qualquer forma, é perceptível que cada manobra de respiração utilizada,
dentro de um contexto de canto, pode resultar em qualidades vocais diversas.
Assim, podemos deduzir que cada escolha respiratória pode promover interações
variadas das estruturas envolvidas na produção da voz e, possivelmente, diferentes
recursos de controle dos mecanismos vocais (SUNDBERG, 1987; COSTA,
ANDRADA E SILVA, 1998; GAVA JÚNIOR et al, 2010). Observa-se também que,
embora exista certa independência entre vários aspectos da relação entre sopro,
fonação e emissão, há um limite de realização de compensações nas esferas
glóticas e supraglóticas para atenuar, “corrigir” ou até mesmo tentar anular
determinadas consequências das estratégias respiratórias no canto resultante
(SUNDBERG, 1992; PINTO, 2012).
Alguns pesquisadores e professores da atualidade confirmam a importância
da respiração na performance do canto, mas apresentam questionamentos sobre o
papel e o espaço que esse parâmetro ocupa dentro da trajetória da pedagogia e das
técnicas de treinamento para a voz cantada. Para estes, a respiração no canto é
relevante quando realizada em conjunto com outros recursos de controle vocal.
Exercícios específicos para a dinâmica inspiratória e expiratória, fora do contexto da
prática em si, são considerados essenciais no processo inicial do aprendizado. Tais
autores argumentam que a respiração deve ser exercitada, preferencialmente, em
situações em que esteja associada a outros mecanismos do aparelho fonador
(VENNARD, 1967; STARK, 2008).
Em vista das várias abordagens técnicas e pedagógicas pesquisadas, assim
como das características fisiológicas e perceptivas que permeiam a voz cantada,
relevante pensar a questão respiratória e a escolha da estratégia de respiração
como ação organizadora do corpo, durante a atividade do canto. Outra questão
levantada refere-se a em que medida é possível reconhecer acusticamente e
perceptivamente os efeitos de diferentes comportamentos respiratórios na qualidade
da voz cantada. Ou seja, seria possível esboçar uma reflexão sobre a questão
respiratória, pensando-a como um vetor, um fator-chave capaz de coordenar ajustes
pneumofonoarticulatórios a partir dos subsídios e índices de informações oferecidos
pela qualidade vocal produzida no canto?
Um fator que sinaliza a favor da respiração como um vetor capaz de promover
diferentes interações das estruturas do aparelho fonador e condições diversas de
fonação é a própria natureza da sua função na cadeia de eventos subjacentes à
emissão do canto: o papel de provimento da energia aerodinâmica que inicializa o
processo de geração da energia acústica que será transformada em voz
(SUNDBERG, 1987; PINHO, 1998; SALOMÃO, 2008).
Como mencionado, é por meio do suprimento aerodinâmico que os eventos
relacionados à produção vocal são iniciados. Ou seja, é a existência deste
suprimento aéreo e sua associação aos componentes mioelásticos que criam as
condições para o processo fonatório e garantem a emissão na fala e no canto.
Durante a produção da voz, a laringe é responsável pela modificação do fluxo de ar
que sai dos pulmões, sendo a resistência das pregas vocais que gera o aumento da
pressão subglótica. Essa interação é responsável por desencadear uma complexa
dinâmica entre os elementos das forças aerodinâmicas e mioelásticas (VAN DEN
BERG, 1958; SUNDBERG, 1987; CUKIER, 2006; SALOMÃO, 2008).
Verifica-se, então, que tal dinâmica depende diretamente do fluxo aéreo que
sai dos pulmões. O início desse processo está diretamente ligado à geração do fluxo
de ar e à pressão subglótica adequada. E há o pressuposto de que o fluxo de ar e a
pressão subglótica exercem influência nas condições de vibração das pregas vocais.
Tais aspectos fazem-nos refletir a respeito das interações e dos ajustes corporais
que podem ser estimulados, a partir de estratégias respiratórias diversas, no
momento de origem da primeira informação acústica que resultará na voz. Ou seja,
nas mudanças apresentadas pelo canto e pela fala em seus produtos finais e seus
das variadas interações entre respiração e fonação (APPELMAN, 1986; LAVER,
1980; PINHO, 1998; SALOMÃO, 2008). Esse aspecto da dinâmica vocal e de
associações das instâncias mioelásticas e aerodinâmicas será retomado mais
detalhadamente na revisão de literatura.
Além destas considerações, é importante ressaltar que a própria conformação
mecânica dos órgãos que compõem a estrutura comum aos aparelhos respiratório e
fonador atua como catalisadora de interações. O fenômeno conhecido como
“tracheal pull”, traduzido como “tração da traqueia”,2 por exemplo, pode ser
considerado como um destes efeitos ocasionados pela atuação direta entre órgãos
que estão ligados mecanicamente e são dotados de versatilidade funcional
(SUNDBERG et al, 1989; SUNDBERG, 1992; VILKMAN et al, 1996; IWARSSON,
SUNDBERG, 1998; IWARSSON, 2001). Esta característica da fonação, a integração
de um conjunto de estruturas que se coordenam, sugere a interferência mútua dos
órgãos que se mobilizam para a produção da voz.
Tais particularidades e as solicitações específicas do corpo e do aparelho
fonador durante o canto podem encontrar na fonética, em suas vertentes perceptiva,
acústica e articulatória, respaldo e referencial teórico capaz de aprofundar o
conhecimento sobre os complexos sistemas e mecanismos da voz. Como ciência
dedicada ao estudo da produção e percepção dos sons produzidos pelo aparelho
fonador, a fonética oferece a possibilidade de análise tanto da fala quanto do canto
sob perspectiva científica, oferecendo instrumental que torna possível este tipo de
abordagem multidisciplinar e integrada (LAVER, 1980; LAVER, 2000; CASSOL et al,
2001; CAMARGO, 2002).
O respaldo em teorias e modelos que permitam o estudo das características e
interações de produção e percepção são particularmente interessantes para os
estudos da voz cantada, pois oferecem a possibilidade de exploração destas
relações sob o prisma qualitativo e não só quantitativo dos fenômenos envolvidos.
Nesse sentido, esta pesquisa buscará fundamentos na teoria acústica de produção
da fala (FANT, 1970), em que se destacam os princípios do modelo linear da fonte e
do filtro. Tal teoria considera as ações dos elementos glóticos e supraglóticos do
aparelho fonador, permitindo a investigação e descrição da produção vocal por meio
de correlações perceptivas, fisiológicas e acústicas destas instâncias. Além disso,
possibilita o estudo destas esferas separadamente em suas específicas ações e
interações (FOURCIN, ABBERTON, 1999; CAMARGO, 2002; VIEIRA, 2004).
Assim, a partir da perspectiva fonética e seu recurso analítico, consideramos
as questões expostas nesta introdução acerca da voz cantada e o papel da
respiração para sua realização e definimos, como principal objetivo da presente
pesquisa, a investigação dos efeitos de diferentes estratégias respiratórias sobre a
qualidade da voz cantada. Para efeito de uma delimitação das variáveis que foram
envolvidas nesta pesquisa, o grupo estudado foi constituído por indivíduos
saudáveis, de mesma classificação vocal, com condições anatomofisiológicas
equivalentes e sem treinamento profissional para o canto.
Neste estudo, portanto, buscamos caracterizar os efeitos das estratégias
respiratórias clavicular e costodiafragmática abdominal, relacionando os dados das
amostras de áudio obtidas, a partir de cada estratégia, com suas características
acústicas e perceptivas. Também procuramos esboçar as possíveis consequências
das diferentes estratégias respiratórias na qualidade vocal durante o canto, em
consonância com as questões teóricas e metodológicas da linha de pesquisa
Linguagem e Patologias da Linguagem e do Grupo de Pesquisa de Estudos sobre a
2. OBJETIVO
O objetivo desta pesquisa foi o de investigar os efeitos acústicos e
perceptivos de diferentes estratégias respiratórias na qualidade da voz cantada em
3. REVISÃO DE LITERATURA
Neste tópico, serão apresentadas uma descrição básica das principais
estruturas e mecanismos acionados para a produção do canto, uma abordagem
sobre algumas questões pedagógicas em relação às manobras e aos treinamentos
respiratórios para a voz cantada, bem como a explanação acerca da fundamentação
teórica desta pesquisa e das técnicas de investigação sobre qualidade vocal
envolvidas neste estudo.
3.1. Mecanismos básicos subjacentes ao canto
O canto, assim como a fala, depende da adaptação e da mobilização de
complexas e múltiplas estruturas periféricas, especialmente aquelas dos aparelhos
respiratório e digestório. Assim, sob esta perspectiva, é possível dizer que as vias
aerodigestivas superiores, envolvidas nesta atividade adaptativa, compõem o
aparelho fonador humano. O aparelho fonador é formado, portanto, pelo trato vocal
(delimitado pelos lábios e pregas vocais) e pelas vias aéreas inferiores (traqueia,
brônquios e pulmões), conforme apresentado pela Figura 1 (WARD, 1988; PINHO,
1998; CAMARGO et al, 2004; RUA, 2006; PINHO, KORN, PONTES, 2014).
Podemos observar que, além de estruturas periféricas, o complexo
anatomofisiológico acionado para o canto mobiliza mecanismos neurolinguísticos,
aerodinâmicos, fonatórios, acústicos e auditivos. As estruturas envolvidas no canto
desempenham mais de uma função: dependendo do momento, atuam na
respiração, na deglutição ou na fonação. Todas essas funções são complexas e,
mesmo assim, o corpo é capaz de coordenar sua alternância em pequenas frações
Figura 1 – Aparelho fonador: trato vocal e vias aéreas (traqueia, brônquios e pulmões). Fonte: <http://www.voiceproblem.org/anatomy/learning.asp>.
TRADUÇÃO DOS TERMOS DA FIGURA 1:
Brain: cérebro
Nasal Cavity: cavidade nasal
Soft palate: palato mole
Oral cavity: cavidade oral
Lips: lábios
Tongue: língua
Vocal folds: pregas vocais
Pharinx or throat: faringe ou garganta
Epiglotis: epiglote
Larynx or voice box: laringe ou caixa da voz
Trachea or windpipe: traqueia
Chest walls and muscles: caixa torácica e músculos
Lungs: pulmões
Diaphram: diafragma
Abdominal muscles: músculos abdominais
TRADUÇÃO DOS TERMOS DA FIGURA 1:
Resonating e Modifying System: ressonância e sistema de modificação
Resonators X Articulators: ressoadores X articuladores
Vocal tract: trato vocal
Vibratory system: sistema vibratório
Air pressure system: sistema de pressão de ar
Diante dessas interações e estruturas multifuncionais coordenadas, as
relações entre respiração e fonação apresentam grande complexidade e constituem
desafio para o conhecimento e a compreensão da produção da voz cantada e sua
qualidade, como veremos a seguir.
Thomasson (2003) descreve que o sistema respiratório é constituído pelo
sistema pulmonar, que engloba as vias respiratórias e os pulmões, pela caixa
torácica, pelo abdômen e pelo músculo diafragma. As cavidades nasal, oral e
faríngea constituem as vias aéreas superiores e estão separadas das vias aéreas
inferiores pela laringe. Abaixo desta há ainda a traqueia, os brônquios, os
bronquíolos e os alvéolos, onde ocorrem as trocas gasosas, função primordial do
sistema (WARD, 1988, PINHO, 1998; CUKIER, 2006; RUA, 2006). Tais trocas
gasosas são chamadas de homeostase e são vitais para o corpo. Para que a
homeostase possa acontecer, é preciso que o ar chegue até os alvéolos no
movimento de inspiração e que seja expelido no movimento de expiração (WARD,
1988; THOMASSON, 2003). Este movimento ventilatório, assim como a fonação,
depende da ação de forças musculares, forças elásticas e forças gravitacionais que
atuam durante a respiração (SUNDBERG, 1992; FELTRIM, 1994; CUKIER, 2006;
PINHO, KORN, PONTES, 2014).
Além do papel fundamental na homeostase, as duas fases da respiração
(inspiração e expiração) também são essenciais na atividade fonatória. Em cada
uma delas, ocorre uma sinergia entre as ações das forças musculares, elásticas e
gravitacionais, que interagem promovendo as condições para a produção vocal.
Na inspiração, as forças musculares dos intercostais externos e a contração
do diafragma são acionadas (forças musculares inspiratórias) e as forças elásticas
atuam permitindo a variação de volume da caixa torácica. Essa associação de
mecanismos promove a ampliação do volume de ar dentro dos pulmões e a
suspensão das costelas. Durante o movimento inspiratório, acontece a abdução das
pregas vocais para que o ar possa entrar nos pulmões, momento no qual temos a
ação dos músculos cricoaritenóideos posteriores, consequência da ativação dos
motoneurônios laríngeos e dos movimentos respiratórios de inspiração: contração do
(APPELMAN, 1986; SUNDBERG, 1992; IWARSSON et al, 1998; BJORKNER, 2006;
CUKIER, 2006; PARREIRA et al, 2010).
Para que a fonação aconteça, é necessária a existência de pressão aérea
alta dos pulmões, sobrepressão de ar capaz de colocar as pregas vocais em
movimento, denominada pressão subglótica (SUNDBERG, 1992; CUKIER, 2006;
SEARA et al, 2011).
A expiração também demanda forças variadas agindo em sincronia. Forças
musculares expiratórias são exercidas pelos músculos intercostais internos e pelos
músculos da parede abdominal, e as forças elásticas da caixa torácica permitem sua
variação de tamanho e o esvaziamento dos pulmões. Na expiração (repouso), o
espaço glótico é estreitado. Para a produção da voz, além do relaxamento da
musculatura envolvida na inspiração, é possível observar a contração da
musculatura intercostal interna em demandas vocais maiores, como o canto
(SUNDBERG, 1992; PINHO, 1998; CUKIER, 2006).
As forças gravitacionais interferem em ambas as fases descritas da
respiração (SUNDBERG, 1987; BJORKNER, 2006).
Além das funções de ventilação, regulação da quantidade de água do
aparelho respiratório e resfriamento corporal, o sistema respiratório é o
responsável por gerar e controlar a pressão subglótica necessária para a fonação.
Podemos dizer que, tanto no canto, como em qualquer demanda fonatória, a
possibilidade de controle voluntário dessa função é um aspecto diferenciador de
outras atribuições do sistema. Tal fato contrasta com a expiração silenciosa, por
exemplo, quando os músculos envolvidos agem automaticamente para a posição
de relaxamento e repouso (WARD, 1988; BJORKNER, 2006; THOMASSON,
SUNDEBERG, 2001; PINHO, KORN, PONTES, 2014). Embora possa ocorrer por
mecanismos reflexos ou involuntários, a fonação pode estar associada também a
mecanismos voluntários que acontecem de acordo com as necessidades de
comunicação e expressão dos indivíduos por meio da voz. Esse contraste entre a
respiração utilizada para a ventilação do corpo e a respiração utilizada para a
produção da voz nos permite perceber que há a possibilidade de diferenças entre
comportamentos e características das estratégias respiratórias acionadas pelo
cada solicitação do corpo. Algumas, como já dito, são reguladas de forma
automática e outras podem ser fruto de escolhas de uma determinada estratégia
como acontece no canto, por exemplo (SUNDBERG, 1987; WARD, 1988; THORPE
et al, 2001; PINHO, KORN, PONTES, 2014).
Em geral, o comportamento respiratório recebe as seguintes nomenclaturas:
- Quanto ao modo: oral, nasal ou oro-nasal (mista). Corresponde ao
predomínio respiratório revelado pelo indivíduo durante as situações de repouso,
fora dos momentos de fonação.
- Quanto ao tipo: clavicular (ou costal superior), diafragmática (inferior) e
costodiafragmática abdominal (associação da inferior com a expansão e sustentação
dos intercostais).
Os tipos e modos respiratórios, assim como os volumes e as capacidades
respiratórias variam de acordo com características de gênero, idade e altura
(PINHO, 1998; THOMASSON, 2003; CUKIER, 2006).
Para a fonação, em geral, é preconizado como ideal o padrão respiratório
costodiafragmático abdominal. Este padrão respiratório promove a anteriorização do
osso esterno, a abertura das costelas, a ampliação da cavidade torácica na fase de
inalação, a redução de tensão nos ombros e na pressão subglótica, além do
abaixamento do músculo diafragma e consequente expansão abdominal. Tal
abordagem respiratória permite maior controle vocal, se comparada com a
respiração clavicular ou costal superior. Também denominada como respiração alta,
a respiração clavicular não promove a ampliação corporal, que acontece no outro
tipo de respiração, a costodiafragmática abdominal. Ao contrário, na respiração alta,
acontece a diminuição da dimensão do aparato respiratório e o tensionamento de
diversas estruturas do corpo (APPELMAN, 1986; SUNDBERG, 1992; FERREIRA,
PONTES, 1994; IWARSSON et al, 1998; PETER et al, 2001; THOMASSON, 2003;
CUKIER, 2006; PINHO, KORN, PONTES, 2014).
Estas diferenças e contrastes entre comportamentos respiratórios nos
demonstram que o sistema pode ser treinado e ter as suas ações inspiratórias e
expiratórias planejadas, de acordo com a demanda de fonação a ser enfrentada.
Além disso, pode-se perceber que a movimentação corporal diferenciada entre as
entre cantores e falantes, tornando-se importante ferramenta de avaliação
perceptiva do comportamento respiratório. A possibilidade de constatação dessas
diferenças é necessária para o treinamento vocal, sendo o tipo respiratório
empregado um aspecto relevante para o produto vocal final e um agente modificador
das condições de fonação. Como sua ação interfere nos recursos corporais
responsáveis pela dinâmica e qualidade da voz, é essencial ter a informação acerca
dos ajustes associados a determinadas pistas corporais, como a expansão
abdominal (ligada ao abaixamento e à contração diafragmática decorrente da
respiração costodiafragmática abdominal) ou a elevação dos ombros e a redução da
caixa torácica (consequência da respiração clavicular superior) (APPELMAN, 1986;
SUNDBERG, 1987; DINVILLE, 1993; COELHO, 1994; PINHO, 1998; COSTA, 2001;
MELLO, 2008).
Portanto, fatores como o tipo e o modo respiratório constituem possíveis
agentes modificadores das condições de fonação. Assim, podemos dizer que as
estratégias respiratórias adotadas representam influência nas interações das
estruturas e dos recursos corporais responsáveis pela dinâmica e pela qualidade da
voz cantada, podendo ser percebidas, entre outros recursos, por meio da
perceptivo-visual (APPELMAN, 1986; SUNDBERG, 1987; DINVILLE, 1993).
Diante desta estrutura e das capacidades do aparelho fonador, percebe-se
que a complexa interação entre respiração e fonação é estabelecida não só pelo
papel de suprimento de energia para a movimentação das pregas vocais. Tal ligação
ocorre efetivamente no aspecto biomecânico também. Há uma conexão física entre
diversas estruturas componentes.
As pregas vocais, responsáveis pela produção do primeiro sinal sonoro que
irá se transformar na voz humana, estão situadas dentro da laringe, um tubo
cartilaginoso alongado que, por sua vez, está ligada à traqueia, que está ligada aos
pulmões. O diafragma possui fibras musculares em suas extremidades inferiores
inseridas no contorno da parte inferior da caixa torácica.
Assim, quando o volume de ar nos pulmões aumenta na inspiração e o
diafragma desce, ocorre um abaixamento da traqueia e esta também traciona a
laringe para baixo (Figura 2). Para esse evento, o volume do ar inspirado é um dos
de ar inspirado está associado a um abaixamento mais significativo da laringe. Tal
evento é denominado de “tracheal pull” ou tração da traqueia (SUNDBERG 1992;
THOMASSON 2003; BJORKNER, 2006; CRUZ, 2006; CORDEIRO, PINHO,
CAMARGO, 2007).
Tais interações do aparelho fonador ainda não foram completamente
esclarecidas, mas, segundo estudos, interferem e, por vezes, definem as
configurações laríngeas e supralaríngeas durante a produção vocal no canto
(SUNDBERG, 1992; IWARSSON, SUNDBERG, 1998; IWARSSON, 2001;
BJORKNER, 2006).
Figura 2 – Imagem ilustrativa da ligação biomecânica entre a musculatura respiratória e o volume pulmonar.
Fonte: <http://2.bp.blogspot.com/-hFuPMJUvQrk/TfkF7F9CehI/AAAAAAAAAis/jIXzN9srB4A/s1600 /yoga-respira%25C3%25A7%25C3%25A3o%252Bdiafragmatica.jpg>.
Para melhor entender as possíveis consequências fonatórias do fenômeno
“tracheal pull” (tração da traqueia) e o efeito em cadeia que pode ocorrer entre os
órgãos que compõem o aparelho fonador, é importante realizar uma descrição da
laringe e das pregas vocais (SUNDBERG, 1992, IWARSSON, SUNDBERG, 1998;
IWARSSON, 2001, PETER et al, 2001; BJORKNER, 2006).
A laringe localiza-se no pescoço e é um tubo alongado, composto por
interior, ficam as pregas vocais (duas estruturas formadas por músculo e mucosa,
em posição horizontal). Apesar de se apresentar sustentada por membranas,
ligamentos e músculos ligados ao osso hioide, a laringe pode movimentar-se
verticalmente quando tracionada. Extremamente complexa em sua estrutura e
funções, desempenha vários papéis de vital importância fisiológica: respiração,
proteção dos pulmões, apoio para realização de movimentos de força com membros
superiores e fonação. Segundo Pinho, Korn e Pontes (2014), algumas dessas
atividades são reflexas e involuntárias, como o selamento dos pulmões; e outras
podem acontecer voluntariamente, como o início da respiração (embora a respiração
tenha mecanismos de regulação involuntários também) ou a própria fonação
(ADLER, 1965; APPELMAN, 1986; LAVER, 1980; SUNDBERG, 1987; WARD, 1988;
DINVILLE, 1993; SALOMÃO, 2008; PINHO, KORN, PONTES, 2014).
TRADUÇÃO DOS TERMOS DA FIGURA 3:
Adam’s Apple: proeminência laríngea
Vocal ligaments: ligamentos vocais
Thyroid cartilage: cartilagem tireoide
Arytenoid cartilage: cartilagem aritenoide
Interarytenoid muscle: músculo interaritenóideo
Posterior cricoarytenoid muscle: músculo cricoaritenóideo posterior
Lateral cricoarytenoid muscle: músculo cricoaritenóideo lateral
Cricoid cartilage: cartilagem cricoide
Trachea: traqueia
Quadro 2 – Tradução dos termos da Figura 3.
Na fonação, a laringe é responsável por modificar o fluxo de ar que sai dos
pulmões, o qual encontra as pregas vocais aduzidas. A resistência das pregas
vocais a esse fluxo gera o aumento da pressão subglótica. No momento em que a
pressão subglótica gerada vence a resistência oferecida pelas pregas vocais em
adução, elas se afastam e, imediatamente, diversas forças agem em conjunto,
promovendo um novo fechamento glótico. Entre essas forças, as de maior
relevância são a elasticidade das pregas vocais (regulada pela musculatura
intrínseca da laringe) e o efeito de Bernoulli (a relação entre a velocidade do fluxo
de ar e o estreitamento glótico, que resulta no efeito similar ao de sucção das
pregas vocais). Assim que o ar passa pela glote (espaço entre as pregas vocais), a
pressão subglótica diminui e a força que está abduzindo as pregas vocais também
é reduzida, ocorrendo a reaproximação delas. Há novamente uma sinergia de
fatores: conservação da força adutora intrínseca da laringe, elasticidade dos
tecidos e a ação do efeito de Bernoulli. Quando o fechamento glótico se completa,
a pressão subglótica volta a aumentar e a fonação recomeça (VAN DEN BERG,
1958; LADEFOGED, 1973; PINHO, 1998; SUNDBERG, 1987; PINHO, KORN,
PONTES, 2014).
Ou seja, neste processo, acontece a conversão da energia aerodinâmica em
energia acústica, o que demonstra que a fonação acontece pela associação de dois
componentes: um aerodinâmico e um mioelástico (VAN DEN BERG, 1958;
APPELMAN, 1986; LAVER, 1980; SUNDBERG, 1987; PINHO, 1998; CUKIER, 2006;
Alguns parâmetros fisiológicos estão relacionados à modificação do fluxo
aéreo expiratório em som laríngeo. São eles: a pressão subglótica e as forças de
adução das pregas vocais, assim como sua extensão, massa e rigidez. Os músculos
intrínsecos da laringe, segundo Pinho, Korn e Pontes (2014), controlam a frequência
e a intensidade da voz por promoverem tensão das pregas vocais, modificações da
massa vibrante e variações na pressão aérea subglótica (Figura 4), evidenciando a
interação das forças aerodinâmicas, aéreas e as musculares supracitadas (VAN
DEN BERG, 1958; TITZE, 1980; LAVER, 1980; SUNDBERG, 1987; THOMASSON,
2003; CUKIER, 2006; SALOMÃO, 2008; PINHO, KORN, PONTES, 2014). Pinho,
Korn e Pontes (2014) ainda observam que a atividade neuromuscular é fundamental
para o controle da massa, tensão e elasticidade das pregas vocais (componente
mioelástico), mas, a partir daí, o fenômeno vibratório ocorre essencialmente pela
ação das forças aerodinâmicas relativas ao fluxo aéreo.
Figura 4 – Imagem esquemática: pressão subglótica vibração das pregas vocais. Fonte: <http://www.voiceproblem.org/pdfs/anatomy.pdf>.
Por interferir no comprimento, na massa e na espessura das pregas vocais,
pode-se dizer que tanto no canto, quanto na fala, a pressão subglótica é ajustada de
acordo com a intensidade vocal e a altura vocal pretendidas (LAVER, 1980;
SUNDBERG, 1987; PINHO 1998; BEHLAU, PONTES, 2001; SALOMÃO, 2008;
Tais parâmetros fisiológicos citados são, portanto, resultantes do tipo de
interação das esferas mioelásticas com o fluxo aéreo transglótico e possuem relação
com o ajuste laríngeo, a intensidade (loudness – percepção da intensidade) e a
frequência (pitch – percepção da frequência). Além disso, nessa interação do fluxo
aéreo transglótico e da vibração das pregas vocais, temos a variação do volume
torácico decorrente das interferências das variações respiratórias no comportamento
laríngeo, o qual representa importante fator para a qualidade vocal. Ou seja, as
configurações pneumofonoarticulatórias geradas por condições aerodinâmicas
diversas parecem resultar em diferentes condições fonatórias e, consequentemente,
variadas qualidades vocais, pois também alteram o ajuste geral do aparelho fonador
e seus mecanismos de ação (APPELMAN, 1986; LAVER, 1980; PINHO 1998;
BEHLAU, PONTES, 2001; THOMASSON, 2003; CUKIER, 2006; SALOMÃO, 2008;
PINHO, KORN, PONTES, 2014).
Prosseguindo à descrição da laringe, ressaltamos que seus músculos
intrínsecos, subdivididos em abdutores, tensores e adutores, são responsáveis,
principalmente, pelos ajustes da fonte glótica:
- Abdutores: CAP (cricoaritenóideos posteriores, músculos pares, com
compartimentos horizontal e vertical).
- Tensores: TA interno (tireoaritenóideos internos, músculos pares, porção vocal
ou compartimento interno, responsável pelo encurtamento) e CT (cricotireóideos,
músculos pares, parte reta e parte oblíqua, responsável pelo alongamento).
- Adutores: AA (aritenóideos, músculo transverso ímpar e músculos oblíquos
pares); CAL: cricoaritenóideos laterais, músculos pares e TA externo
(tireoaritenóideos externos, músculos pares, porção tireomuscular ou
compartimento externo).
E, finalizando esta descrição básica da fisiologia da laringe, observamos a
participação da sua musculatura extrínseca nas funções exercidas pelo órgão. Além de
constituir um elo entre os sistemas respiratório, digestivo, fonatório e articulatório, esta
musculatura também é atuante, exercendo ajuda no desempenho geral da estrutura.
Os músculos extrínsecos são divididos em infra-hióideos (esternotireóideo,
esternoióideo e omoióideo), responsáveis por alterar a forma das cavidades de
(genioióideo, miloióideo e ventre anterior do digástrico), que elevam e tracionam
anteriormente a laringe e os constritores faríngeos (cricofaríngeo e tireofaríngeo),
que influenciam na produção vocal em ação conjunta com os demais. Portanto, a
movimentação da laringe é afetada por sua musculatura extrínseca e esses
músculos também influenciam nas condições glóticas. Durante o canto, a ação de
fixação da laringe é exercida pelo esternotireóideo (PINHO, 1998; HANAYAMA et al,
2007; PETER, PINHO, 2007).
Completando a descrição dos mecanismos atuantes durante as dinâmicas
respiratórias e de sustentação da voz, é relevante citar a participação do conjunto de
músculos que compõem a cinta abdominal. Esses músculos são indispensáveis para
a firmeza das costelas e sua atuação é essencial na fala e no canto em fortes
intensidades, assim como na utilização do ar de reserva (APPELMAN, 1986; PINHO,
1998; MELLO, ANDRADA E SILVA, 2009).
Concluímos esta parte da revisão de literatura, acrescentando alguns
conceitos frequentes e úteis para a reflexão e o estudo da instância respiratória:
- Volume corrente: volume de ar que flui durante a respiração em repouso.
- Capacidade pulmonar total: volume de ar total ao final de uma inspiração
máxima e que compreende a capacidade vital ou quantidade de ar máxima
mobilizável durante a respiração.
- Volume residual: ar que permanece sempre nos pulmões, mesmo após a
expiração máxima.
- Capacidade residual funcional: posição de repouso do sistema, ocorre na
porção expiratória final do volume corrente.
Todas as manobras e produtos vocais, resultantes dos refinados mecanismos
descritos neste breve panorama, possuem suas correspondências perceptivas e
acústicas. Abaixo, na Figura 5, segue a representação das conexões entre as
Figura 5 – Representação esquemática da produção vocal. Fonte: <www.ispl.korea.ac.kr/~wikim/research/speech>.
Quadro 3 – Tradução dos termos da Figura 5.
3.2. Questões pedagógicas do canto
Além dos complexos aspectos e interações anatomofisiológicas envolvidas na
produção da voz expostos no tópico anterior, o estudo e a reflexão acerca do canto
deparam-se com questões pedagógicas particulares. A pesquisa sobre a voz
TRADUÇÃO DOS TERMOS DA FIGURA 5:
Muscle force: força muscular
Lungs: pulmões
Trachea: traqueia
Vocal cords: pregas vocais
Pharyngeal cavity: cavidade faríngea
Tongue hump: curvatura da língua
Velum: véu ou palato mole
Nasal cavity: cavidade nasal
Oral cavity: cavidade oral
Nose output: sinal de saída (nasal)
cantada encontra variações de conceitos, terminologias e abordagens tão amplas
que tal diversidade de termos e ausência de consenso torna-se praticamente uma
característica intrínseca à tradição pedagógica e artística no canto.
Sem dúvida, escolas e diferenças de estilos podem ser caracterizados e
identificados, mas, na prática, há divergência nas expressões utilizadas. Tal fato
ocorre, inclusive, por adeptos de uma mesma escola ou estilo e, por vezes, sobre
um mesmo parâmetro de dinâmica vocal, descrição de qualidade de voz ou, até
mesmo, sobre certa descrição de algum mecanismo fisiológico subjacente à
produção do canto (APPELMAN, 1986; LAVER, 1980; SUNDBERG, 1987; STARK,
2008; MARIZ, 2013).
Essa imprecisão não impede bons resultados de ensino, mas dificulta a
discussão em relação a determinadas instâncias do estudo e da pesquisa do canto
que pressupõe, além de capacidade perceptiva da sonoridade e da condição
corporal do aluno, a possibilidade de compreensão mais objetiva a respeito do
treinamento vocal. Por exemplo, uma mesma metáfora ou exercício pode promover
resultados completamente diversos em dois cantores diferentes. Sem o consenso de
terminologia e sem a construção de uma linguagem comum, inúmeras vezes
acontecem falhas ou limitações na comunicação da informação pedagógica e no
treinamento para a performance. Tal desencontro tende a ser reduzido com a
inclusão de conceitos e termos que possuem correlatos corporais e vocais já
consolidados no meio da pesquisa fonética ou da fisiologia da voz.
Hipócrates recebe os créditos de, ainda no século V a.C., ter apresentado as
primeiras especulações em relação ao papel e à importância dos pulmões, da
traqueia, dos lábios e da língua para a fonação. Entretanto, dentro da tradição do
canto ocidental, seja ele erudito ou popular, a inclusão de determinadas reflexões
associadas à constituição do instrumento vocal sob uma perspectiva científica é
datada do século XIX (GRANGEIRO, 1999; PACHECO, 2006; STARK, 2008;
PINTO, 2012).
Antes desta época, a característica primordial dos tratados e métodos de
ensino do canto era a da proposta prática e instintiva. Os exercícios utilizados
pelos professores durante as aulas seguiam esses mesmos preceitos. O foco
regras estilísticas e cuidados para um “bom cantar” descrito com adjetivos e termos
impressionísticos, com raras associações às questões fisiológicas. Muitas vezes,
os professores davam maior ênfase na orientação em relação ao comportamento
do pupilo. Desta forma, alguns conceitos utilizados até hoje no meio do canto
foram cunhados a partir da demanda musical, expressiva ou comportamental,
desprovidos de uma preocupação com os correlatos fisiológicos (PACHECO, 2004;
STARK, 2008).
A partir do século XVIII, começa a surgir uma preocupação maior em
descrever, em publicações e métodos de ensino, algumas estruturas e
movimentações de partes envolvidas no canto, mas, é com a chegada do século
XIX, que essa tendência ganha força e adeptos (STARK, 2008; PINTO, 2012;
MARIZ, 2013).
Em meio à explosão científica da era positivista, surge uma figura histórica
que é apontada por inúmeros estudiosos como um divisor de águas dentro das
abordagens do ensino do canto: Manuel Garcia II (RADOMSKY, 2005; PACHECO,
2006; SALOMÃO, 2008; STARK, 2008).
Nascido no início do século XIX, Manuel Garcia II (1805-1906) era de uma
família de músicos e teve a curta carreira de cantor interrompida por problemas
vocais. Passou, então, a dedicar-se exclusivamente ao ensino do canto. Colecionou
sucessos nessa empreitada, chegando a conquistar o posto de professor do
renomado conservatório de Paris. Além de somar sucessos em seus treinamentos
com cantores de ópera, Manuel Garcia II dedicou-se a pesquisar a fisiologia dos
mecanismos vocais. Tal fato produziu informações e descobertas que culminaram
no que é descrito por vários pesquisadores como “a grande virada” dentro da
pedagogia da voz cantada (RADOMSKY, 2005; PACHECO, 2006; SALOMÃO, 2008;
STARK, 2008).
Conta-se que ele, já interessado em buscar recursos para a visualização das
pregas vocais, viu o sol refletido nas janelas do Palais Royal e teve a ideia de
comprar um espelho dentário e acoplar ao final de um cabo, a fim de observar suas
laringoscopia indireta (PINTO, 2012).3 Com a evolução dos achados científicos,
aconteceu uma proliferação de tratados que incluíam as descrições fisiológicas da
voz cantada, mas, possivelmente, Manuel Garcia II foi o primeiro professor de canto
a investir na inclusão de informações de fisiologia da voz como estratégia de ensino
de canto e aprimoramento da técnica vocal (RADOMSKY, 2005; STARK, 2008;
PINTO, 2012; MARIZ, 2013).
Independentemente das controvérsias associadas aos seus métodos de
ensino (como as diferentes interpretações sobre sua técnica do golpe de glote),
Manuel Garcia II, mobilizado pela inquietude e pelas curiosidades científicas e
pedagógicas acerca da constituição e do funcionamento do aparelho fonador
enquanto instrumento do canto, acrescenta uma nova consciência aos
ensinamentos da voz cantada que transforma os rumos dos estudos nessa área.
Tal mudança de perspectiva na pedagogia da voz cantada (ocidental), a
partir da apropriação dos achados científicos para estruturação do treinamento
vocal e da formação do cantor, inaugura uma mudança de percepção do corpo e
da voz em relação a este corpo. Nesse momento histórico, há a profusão de
descobertas e descrições fisiológicas que permitem o conhecimento das
associações de várias estruturas do corpo. É neste contexto que Manuel Garcia II
inventa o laringoscópio, agregando aos seus estudos e aulas o recurso de
visualização da instância glótica. Tal recurso viabiliza, mesmo que ainda de forma
rudimentar, a observação das pregas vocais e dos mecanismos da fonação. A
fonte glótica e a geração do primeiro sinal acústico podem ser avaliadas durante o
canto, para melhor compreensão de sua relevância na qualidade vocal final. Assim,
mesmo que a “grande virada” de Manuel Garcia II não tenha sido propriamente um
divisor histórico entre procedimentos de ensino, mudança esta processual,
podemos dizer que ele iniciou uma nova tendência pedagógica que passaria a