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O problema epistemológico do distanciamento entre teoria e prática não é algo recente, mas fruto de um processo muito antigo de obscurecimento da razão. Na antiguidade, pensadores da então Grécia Antiga formularam sistemas filosóficos que se tornaram a base para o permanente ataque contra a liberdade e a razão, e pregaram a supressão dos aspectos individuais em favor de um ideal coletivo. De acordo com Horkheimer (2002), a razão subjetiva era considerada uma expressão parcial e limitada de uma racionalidade universal, a razão objetiva. Esse sistema filosófico predominou na cultura ocidental até a modernidade.

E hoje? Atualmente ainda observamos a predominância da razão objetiva sobre a razão subjetiva, que se realizou no decorrer de um longo processo (HORKHEIMER, 2002), mas com outra configuração. Segundo Horkheimer, o avanço do Iluminismo na modernidade dissolveu a ideia de razão objetiva, buscando eliminar os aspectos considerados mitológicos, dogmáticos ou supersticiosos que há muitos serviam de base para sua afirmação. A razão objetiva, fundamentada nesses aspectos, perdeu o endosso necessário à sua aceitação de verdade passando por uma crise em que as próprias ideias de justiça, igualdade, felicidade, tolerância e outros motivos considerados fundamentais ao funcionamento da sociedade, perderam as suas raízes intelectuais. Apesar de algumas dessas ideias ainda gozarem de certo prestígio e permanecerem como objetivos e fins, e estando presentes nas leis supremas de muitos países, não há mais uma força racional autorizada para avaliá-los e ligá-los a uma realidade objetiva.

Porém, o predomínio da razão objetiva continua. Sua crise estendeu-se apenas aos seus aspectos considerados mitológicos e preconceituosos que a sustentavam. O avanço tecnológico da modernidade tornou-se o novo ídolo e se impõe através da crença no progresso comandado pela ciência. Surge, atualmente, uma racionalidade técnica que

transforma a razão em um instrumento de aplicação do conhecimento técnico, um conhecimento previamente disponível objetivado e normatizado. Desde então, os conhecimentos originários de uma razão subjetiva, passam por um processo de coisificação e formalização e acabam desfrutando das mesmas características mitológicas ilusoriamente extintas pela racionalidade iluminista. Ganham força de ídolos à medida que revolucionam as condições da existência humana, proporcionando a superabundância de bens e a diminuição da miséria social.

A Técnica, uma reificação do conhecimento concebido abstratamente, é a razão subjetiva formalizada. Essa idolatria da Técnica caracteriza-se como uma dominação do homem sobre o homem, porque, ao mesmo tempo em que privilegia o grupo que a concebeu, a impõe aos outros grupos alijando-os da sua capacidade de concepção. Continua desumanizando a razão, subtraindo-a o pensamento independente.

Segundos Adorno e Horkheimer, filósofos da Escola de Frankfurt, a dominação do homem pelo homem vem assumindo, na era moderna, novas formas. Antes, a dominação ocorria pela imposição da força física, agora ocorre utilizando-se dos meios de comunicação de massa, das instituições culturais como a escola, a família, e se institui pelo consentimento. De acordo com Horkheimer, não é a tecnologia a grande vilã dessa dominação, mas a maneira como ocorre as inter-relações estabelecidas pelos homens no industrialismo.

Não é a tecnologia nem a autopreservação que devem ser responsabilizadas em si mesmas pelo declínio do indivíduo; não é a produção per se, mas as formas que assume isto é, as inter-relações dos seres humanos dentro do quadro específico do industrialismo. A labuta, a invenção e a pesquisa humanas são uma reação ao desafio da necessidade. Esses padrões se tornam absurdos apenas quando as pessoas transformam o trabalho, a pesquisa e a invenção em ídolos. (HORKHEIMER, 2002, p. 157).

Para Adorno (1996) e Horkheimer (2002), a modernidade se caracteriza pela predominância de uma razão subjetiva formalizada, objetivada nas instituições modernas e justificada pela ideia de progresso. Os aspectos considerados mitológicos e supersticiosos pela razão iluminista cedem lugar à aceitação da existência de uma Técnica, e a eficácia no seu domínio da natureza é a prova de sua verdade. A técnica formalizada e concebida abstratamente transforma-se na Técnica que desautoriza a razão subjetiva e o pensamento independente. A aceitação de um pensamento lógico

31 fetiche, uma entidade mágica que é aceita ao invés de ser intelectualmente aprendida, obliterando assim a própria substância da razão.

Na era industrial, enquanto o conhecimento técnico expandiu o horizonte da atividade e do pensamento humano, a autonomia do homem enquanto indivíduo, o seu poder de imaginação e o seu juízo independente sofreram aparentemente uma redução. O avanço dos recursos técnicos é acompanhado de um processo de desumanização. A sociedade moderna tende a negar os atributos da individualidade (HORKHEIMER, Ibid), e a Escola, em vez de corrigir esses desenvolvimentos, acaba reproduzindo esse sistema. Na Escola, essa concepção do conhecimento prevalece na forma como são trabalhadas as disciplinas, um conhecimento previamente disponível que deve ser “aprendido” pelos alunos. Esse comportamento faz com que alguns alunos percebam esse tratamento, sentindo que aprender é algo entediante e árduo e que só é possível através de muita disciplina e submissão.

Esse tipo de educação, em que o professor também é uma vítima, assim como o médico, o engenheiro e o empresário, é uma educação proveniente do “declínio do indivíduo”. “O declínio da individualidade afeta tanto os grupos sociais mais baixos quanto os mais altos, o trabalhador não menos do que o homem de negócios” (Ibid., p. 147). Os conhecimentos que a Escola se propõe transmitir são, na verdade, modelos de pensamento pré-preparados em que os alunos devem estar dispostos a aceitar. A formalização desses conhecimentos nega o entendimento do Homem com a natureza.

Devemos entender que não existe uma Técnica por trás da técnica, mas apenas indivíduos que, se utilizando de pensamento independente, desenvolveram uma lógica de acordo com seus pontos de vista. Em uma perspectiva humanizadora do conhecimento e uma educação para a emancipação, o mais importante é a construção do logos individual, invés da reprodução de uma lógica formalizada. Valorizar uma lógica formalizada como um fetiche, como afirma Adorno (1996), é aceitar um “conhecimento” de forma acrítica, impossibilitando a aprendizagem e proliferando “a credulidade, a aversão à dúvida, a precipitação nas respostas, o pedantismo cultural, o receio de contradizer, a parcialidade, a negligência na pesquisa pessoal, o fetichismo verbal, a tendência a dar-se por satisfeito com conhecimentos parciais” (ADORNO, 1996, p. 17). Esse comportamento impossibilita a autonomia, pois como o próprio Adorno afirma, “essas e outras causas semelhantes impediram que o entendimento

humano fizesse um casamento feliz com a natureza das coisas e foram, em vez disso, as alcoviteiras de sua ligação a conceitos fúteis e experimentos não planejados” (Ibid., p. 17).

Todo paradigma é formado por esquemas de pensamentos e valores que norteiam toda a prática de uma comunidade, mudar uma prática requer mudar consequentemente esses esquemas de pensamento que muitas vezes se tornam inconscientes. Tomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas afirma que o problema de todo paradigma estabelecido é que, depois que ele se estabelece, os integrantes da comunidade da qual o paradigma é praticado, não se questionam mais sobre as premissas, isto é, as normas, que lhe deram origem. Se tivermos consciência das premissas que determinam como construir determinado conhecimento de determinada forma, mas de outra não, teremos então maior liberdade de decisão. Devemos nos perguntar sobre quais valores estão implicados nessa concepção de aprendizagem. Entender essa questão é o passo mais importante para que se estabeleça uma mudança da prática.

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CAPÍTULO III – CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS PARA A MUDANÇA DA