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E os raios, senhora. Tá na raiva. Raios e trovões. (Adolescentes da internação).

Da primeira internação sai pensando em roubar. Sai revoltado, muito revoltado por ter ficado preso. As pessoas queriam colocar coisas na minha mente, eu não queria. Isso me dava mais revolta. Desde quando aqui não é prisão? Falam medida. É prisão. Não posso sair, não posso falar a qualquer hora, não posso ouvir música quando quero. Não adianta deixar preso. Eu fiquei com mais ódio do que eu já estava. O homem sem liberdade deixa de sonhar. .

O preconceito faz a gente pegar revolta. Dá vontade de sair quebrando tudo. Pior coisa é alguém te olhar de canto de olho, de baixo em cima, segurar a bolsa quando você passa.

Aqui a gente fica dependendo da misericórdia de todo mundo, fica na dependência delas. Lá fora depende de pai, mãe, família. Aqui de todo mundo. Se o técnico não fizer meu relatório, eu não saio. Se o agente não deixar, não posso ir no banheiro.

Eu prefiro as regras do crime e não as do governo. Para cumprir as do governo a gente tem que trabalhar e esperar o que eles querem dar. Na vida do crime a gente tem muito gasto mas a gente vive o que quer. Tem muita disputa de poder.

Quando eu sai e voltei para escola, não tinha polícia lá dentro. Fui eu voltar para a escola, começou a ter ronda de polícia. Toda vez me parava, perguntava se estava sossegado, que eles estavam por ali. Já imaginou, senhora? Toda vez você ser parada e lembrada que estão de olho em você? No muro da escola tem uma frase escrita: Nós acreditamos em nossos alunos. Tem que colocar um não na frente, no lugar do nós.

E os raios, senhora. Tá na raiva. Raios e trovões.

às vezes penso que tudo não passa de frustração, não sei se é dependência ou falta de amor no coração.

Tudo que acontecia na escola, falava que era eu. Parecia até tiração. Fui expulso da escola. Aí um dia a professora me acusou, eu joguei a cadeira nela. Me expulsaram.

Quando eles pegam também, eles nem levam. Eles me pegaram uma cinco vezes antes de levar. O que fazem é pegar nosso dinheiro, batem na gente. Aí é que dá mais raiva mesmo.

[...] Os caras agredindo a gente? A gente não é saco de pancada. A gente fica no ódio mesmo. Ficam oprimindo a gente na rua, até na frente da escola já tomei esculacho.

Dou um exemplo fresquinho. Tava vindo pra cá, tá ligado? Tranquilo, saindo da casa da minha mulher, na espera do busa. Passa os cara, vem andando por meu lado. Eu to tranquilo, falei aqui outro dia que to tranquilo. Me manda encosta, me revista tudo. Maior galera no ponto do busa. Todo mundo fica olhando. Maior esculacho. Aí os cara vão embora, todo mundo fica longe, parece que eu to cheio de pereba. Dá vontade sair quebrando tudo. Dá maior raiva. Fico no veneno, querendo pegar os cara. Não consigo pegar eles, pego outros. To limpo, to respondendo processo, mas to limpo.

Pior é que eles vendem pros próprios caras de quem eles pegaram. Vai dando só mais raiva.

A questão da raiva e do ódio se evidencia fortemente nos relatos e também em outras pesquisas. Percebe-se que tais sentimentos permeiam todo o processo, aparecendo, em alguns momentos, como motriz para entrada na vida delitiva, em outros potencializando-se em decorrência das situações vivenciadas pelo adolescente.

O que se evidencia de forma geral é que ele vai sendo “absorvido” de forma destrutiva nas subjetividades, transformando-se em projetos de vingança, destruição, evidenciando uma postura de constante estado de ameaça e descrença em relação ao seu entorno. O outro é um inimigo, o projeto de vida passa a ser a busca de formas de se manter em constante “posição de ataque”, independente dos meios utilizados.

Seguem outros relatos nos quais se evidenciam a raiva e o ódio como força motriz da criminalidade:

Uma revolta densa ia tomando conta de meu ser. Queria agora era ser bandido mesmo. Viver armado para nunca mais me sentir fraco e indefeso. Queria matar policiais, assaltar qualquer um, sem dó ou piedade. Abrir cabeças a coronhadas, dando tiros, cortando em tiras as vítimas. Todos tinham culpa do que eu passara. Todas as pessoas lá fora eram culpadas, e eu ia cobrar caro, ah, se ia! Não tinha dúvidas, eu trucidaria! Mataria a cada um que apenas pensasse em se colocar em meu caminho. Espumava pelos cantos da boca de rancor e ódio ao expor meus ideais. Sentia-me com o poder de ser cruel ao máximo. Odiava policiais. Jamais tivera qualquer preconceito, mas isso acho que valia como preconceito. Polícia para mim não era gente, e todos mereciam ser mortos da forma mais bárbara possível. Os outros pensavam como eu. Os policiais seriam nossos inimigos vitais, para sempre. (MENDES, 2009, p 154)

Nos últimos tempos, minha cabeça mudara muito. Tinha a ver com tudo o que vivera nas prisões. Estava mais calculista, mais violento, prepotente, mais duro e até cruel. Já pouca coisa me importava. Já não me preocupava se tivesse que atirar em alguém. Atiraria agora, sem vacilar. Achava que personificava o crime. Havia optado definitivamente. Conseguira me transformar em um bandido, colocava-me na postura de um assaltante perigoso e procurava divulgar essa imagem. (MENDES, 2009, 313)

Eu entrei na revolta mesmo quando meu tio morreu na quebrada, sem zueira. Os bandidos mesmo de lá... sei lá, não via mais meu tio. Batia maior revolta daquela comunidade, mano. Só de pensar que foi os próprios ladrões que matou meu tio, batia uma revolta maior grande no peito. (YOKOMISO, 2013, p. 233)

Eu já penso dessa forma. Se não existisse ladrão, polícia não tinha onde trabalhar, se não tivesse traficante, polícia não ia trabalhar. Se não existisse rico, ladrão também não ia roubar. Um ajuda o outro.... eu já falei isso pra polícia da primeira vez que fui preso. Olha você está

trabalhando por causa de mim, se não existisse ladrão você não ia estar trabalhando. Apanhei, lógico, já estava apanhando, então... (YOKOMISO, 2013, p. 234).

Nossa geração é meio complicada. Que nem o meu pai fala. Uma geração difícil de entender é nós. Porque hoje em dia, eles não querem saber se eles vão morrer, vai matar, não. Eles vão com sede mesmo, vão com ódio. Raiva, vai vendo que todo mundo vai tendo uma certa força na hierarquia do crime... Tem jovem que, não sei se é o caso dos meninos, mas pelo menos é o meu caso, quando coloco uma peça na cintura eu já me sinto protegido, já. (YOKOMISO, 2013, p. 259).

Só sei que quando sair, vou fazer justiça com as próprias mãos, aprendi bem com o que sofri por aqui. (Tamirez, 17 anos, Vozes). Aqui somos tratados como ninguém, mesmo alguns que nos escutam, mas nada se resolve. (Luiz, 16 anos, Vozes)

Tanto faz, dizer ou não dizer, se eu apanhei e dizer, aí apanho de novo pra não dizer, né. (Douglas, 15 anos, Vozes, p. 87).

Tens outros que só pensam em bater, ah, é ladrão, bate, mata; pra nós não é uma proteção, é tipo uma ameaça. (Eleno, 17 anos, Vozes, p. 87).

...a violência aqui começa pelos próprios orientadores. (Salânea, 17 anos, Vozes, p. 87).

Aqui a gente é tratado como cachorro, a alimentação é muito ruim. (Junior, 17 anos e Victor, 17 anos, Vozes, p. 87).

É melhor que passem longe de mim e eu passo longe deles, senão... (Nicolas, 17 anos, Vozes p. 105).

Tive muita raiva do que passei, to com raiva desse mundo que não me quer. ( Mariana, 15 anos, Vozes, p. 105).

Para Takeuti (2005, p. 39),

O ódio do outro seria a “outra face de um ódio de si inconsciente”, cujo afeto, acrescenta Castoriadis (1990c, p. 35-36), “é um componente de todo ser humano”; ele está na base das “formas mais radicais do ódio do outro e se descarrega nas suas manifestações mais cruéis e mais arcaicas”. Chama-se, com isso, atenção para o mecanismo psíquico de defesa – o “deslocamento”, no qual o afeto permanece, havendo apenas mudança de alvo, de objeto. No racismo, o indivíduo continua com o ódio primordial (de si), contudo, agora, deslocado para o outro. Acrescidos dessa compreensão sobre a natureza do ódio do outro, atentemos para mais um argumento, segundo a autora, citado por Castoriadis (1990, p. 47) no tocante à contra-identificação do sujeito preso nesse sentimento exacerbado: “o seu ódio não suporta que o outro negado tenha as mínimas características de si, razão

pela qual ele procura formas de desidentificação com o objeto do seu ódio, impedindo que o outro se torne como ele”.

Esse processo de desidentificação surge nos relatos dos adolescentes a respeito dos policiais:

Se quiser ter ideia a gente dá um dinheiro pra eles não vir na loja e pronto. Fica na boa. É assim que funciona, senão não tenho outras ideias pra trocar com eles não. (B., 14 anos).

Na verdade, eles são pior que a gente. (A., 18 anos).

Proteção da sociedade, do cidadão é a polícia quando tem um menino roubando aí, mas as vezes o policial é mais criminoso que nós junto. (Elano e Nogueira, ambos com 16 anos, Pesquisa Vozes)

Nesse sentido, para Takeuti (2005, p. 45),

O “problema da alteridade abarca os aspectos da construção do outro e da destruição do outro” (ENRIQUEZ, 1991a, p. 160). A ameaça do aniquilamento está tão presente, no amor ou no ódio, quanto a possibilidade de realização e satisfação do indivíduo na relação com os outros, o que resulta sempre em relações ambivalentes. Quem, então, não re-conhece ter se ressentido, algum dia, a sua própria ambivalência e a dificuldade de estabelecer laços harmoniosos? Essa ambivalência no registro da nossa interioridade e com relação à exterioridade, todos nós a vivenciamos nas nossas experiências sociais, desde a tenra idade. Sem dúvida, o mais difícil processo de aprendizagem e de criação na vida social situa-se no plano das relações humanas, observa Enriquez (1991a, p. 159).

Conclui a autora: “o mais inexorável nesse processo é que a dificuldade em estabelecer ‘vínculo com outrem’ revela nossa ‘dificuldade de viver conosco mesmo’” (TAKEUTI, 2005, p. 45).