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3.2 O desafio da violência na sociedade brasileira

3.2.5 A violência praticada nas Instituições

de drogas, evidenciando, em relação aos “grandes” do tráfico, uma identificação positiva:

a lógica do tráfico de drogas se constrói sobre um modelo que intensifica a virilidade, a força física, o poder das armas. Os grandes traficantes surgem como poderosas figuras de identificação – eles secretam prestígio, respeito e dinheiro. Estes três signos consolidam poder e reconhecimento. Recentemente, ouvimos de alguns adolescentes os seguintes comentários sobre Fernandinho Beira-Mar: “O cara impõe moral” e “O homem é cheio de poder, mesmo preso

manda em tudo”. Sabemos que estes fatos são compartilhados por

grande parte da população. Mas no contexto em que eles foram escutados, é reforçada a ideia de uma identificação heroica.

3.2.5 A violência praticada nas Instituições

No Brasil, várias questões – destacando-se os homicídios, maior causa de morte na faixa etária de 15 a 19 anos – têm mobilizado profundos questionamentos do papel da instituições que são responsáveis – tanto direta quanto indiretamente – pela proteção e pela transmissão de valores éticos e morais. Os meios de comunicação estão entre estas, e fazem parte do processo de socialização, bem como têm a função de levantar temas que serão debatidos na sociedade.

Sem qualquer dúvida, herdamos práticas repressoras do período ditatorial, em especial em algumas instituições. Pouco sabemos das marcas subjetivas que as experiências de violência deixam nos sujeitos e na sociedade.

As discussões levantadas sobre as brutalidades dos policiais nas manifestações populares ocorridas há meses atrás, por exemplo, é a maneira padrão dessas forças do Estado em bairros pobres e periféricos.

O Estado, por meio de suas forças policiais, tem violado diariamente os direitos básicos dos cidadão, em especial dos pretos, pobres e periféricos. Essa violação tem consequências.

O pacto de silêncio que muitas vezes se faz em torno dessas violações cometidas agrava ainda mais o sofrimento das vítimas e de seus familiares, exacerbando as condições de vulnerabilidade e isolamento que se instalam.

Aspecto ainda mais agravante é o fato de que aqueles que são expostos a situações de desrespeito de direitos humanos tendem a reproduzir as violações sofridas, engendrando um irremediável ciclo de violência continuada.

Atualmente, encontramos com mais frequência relatos da crueldade vivenciada nas instituições brasileiras. Citamos como exemplo, o relato de Mendes (2009), no final do século XX, em que está exposta a perpetuação da barbárie humana dentro das prisões:

a sociedade da época, enganada, julgava que estávamos sendo reeducados. Mas estávamos era desenvolvendo, ampliando e trocando nossos conhecimentos relacionados com o crime. Tenho certeza deque aqueles que executavam aquele trabalho de nos manter presos, como o juiz de menores, guardas e funcionários públicos, sabiam que não estavam nos reeducando. Isso fica claro pelo fato de que a maioria de nós estava condenada a ali permanecer até completar a maioridade. Alguns, os tidos e havidos como mais perigosos, após completar os dezoito anos, ainda eram enviados à Casa de Custódia de Taubaté, onde permaneciam presos, nas mãos de psiquiatras (esses loucos), até completar vinte e um anos. Se acreditassem que nos reeducavam, nos soltariam antes, reeducados. (MENDES, 2009, p. 180).

Outro destaque importante na narrativa de Mendes são os momentos de tortura, ameaça e eliminação de toda expectativa de uma vida mais digna, contrariando todos os princípios sobre os quais o encarceramento foi criado e defendido:

fomos posicionados em um tablado de madeira. Mandaram-nos tirar as roupas, revistaram tudo minuciosamente, rosnando e xingando, procurando um motivo mínimo que fosse para nos espancar. “Abre as pernas!”, “Abaixa!”. Sempre a mesma ladainha para humilhar o preso, esse desgraçado social que veste um uniforme e aceita todas as pechas e ofensas. Pior é que, fora dali, aqueles homens são honrados chefes de família, vão à missa e se dizem cristãos. É como se tivessem dupla personalidade. Aliás, até hoje acho questionável o fato de se dar uma arma e autoridade a um homem, para que ele exerça essa autoridade sobre os outros. Pelo que conheço dos homens, isso fica mais questionável. É verdade que somente em tese, pois, na prática, a nossa civilização está tão viciada em ser comandada à força que, se de repente não existir tal coerção e ameaça, acabará tudo em caos e destruição. (MENDES, 2009, p. 271- 272).

No final de 1972, alguns presos, condenados a uma infinidade de anos de cadeia, começaram a desesperar-se. Estava incluído nesse meio, minhas penas somavam mais de setenta anos. Estavam ainda

sumariando inquéritos que, na certa, resultariam em mais condenações. O desespero de não ter perspectivas de liberdade criava um espaço vazio, um buraco negro na mente da gente. Nesse espaço ecoava um grito de pavor que ficava sem resposta. (MENDES, 2009, p. 411).

Mendes encontrou um caminho de rompimento com as situações vivenciadas. Encontramos no final do livro, sua “conversão para o bem”, através da literatura, e os riscos que percebia em se manter na criminalidade. Entretanto, esse rompimento não foi fruto da proposta institucional:

o crime, a malandragem, a ideia que perseguira desde a infância, de ser bandido, malandro, foram se afastando do meu foco de visão. Agora aquilo era muito pouco para mim, diante dos horizontes que divizava. A cultura, o aprendizado, levavam-me a fazer uma releitura do mundo. Havia um lado melhor, e eu queria pertencer a ele. Claro, a cultura do crime que assimilara desde a adolescência ainda era, de certa forma, dominante em mim, mesmo que não conseguisse perceber. Estava no meu sangue, nos meus ossos, demoraria a vida toda para conseguir um certo equilíbrio com a cultura social. (MENDES, 2009, p. 468).

Agregados a relatos como o de Mendes, podemos elencar o de Silva (1997), que no remete aos grandes orfanatos existentes no mesmo período em referência.

Até por volta de 16 anos, sempre que alguém me perguntava sobre quem era meus pais, invariavelmente eu respondia: o Governo. É óbvio que eu não tinha clareza suficiente para entender quem era esse meu pai nem o que ele fazia, mas isso ficou mais fácil quando tive de entender quem era minha mãe: a Febem. Sempre que um funcionário ou um outro menino me negavam alguma coisa ou tentavam impedir- me de entrar em algum lugar, eu sempre protestava: isso não é seu, é do Governo, da mesma forma que uma criança diria: isto é do meu pai. (SILVA, 1997, p. 11).

Silva (1997) também encontrou outro caminho, conforme nos relata:

meu propósito era descobrir todos os detalhes de minha própria história de vida, mas não queria nem poderia, no âmbito de um curso de pós-graduação, colocar-me como centro e objeto de meus próprios estudos. Assim, cada um dos meus irmãos e eu, com exceção da menina, passamos a fazer parte do universo que eu iria ainda selecionar e com o qual passaria a trabalhar. (SILVA,1997, p. 26). A passagem, de ponta a ponta, pelo ciclo de formação da criminalidade que eu me apropriasse, até mesmo como único recurso

de sobrevivência, do código de valores, da estrutura socioafetiva e das representações subjacentes a esse universo, e essa apropriação, secundada por certa habilidade na sua manipulação, por si só me teria bastado para a sobrevivência no submundo das prisões e do crime. O fato de eu ter saído de tal universo e ingressado em outros, cujos códigos de valores, estruturas socioafetivas e representações subjacentes são radicalmente diversos, colocou-me o desafio de também apropriar-me de seus instrumentos conceituais e de suas ferramentas teóricas, pois é exatamente a capacidade de dominá-las e de manipulá-las que determina o papel que o indivíduo vai passar a ocupar dentro desses respectivos universos. (SILVA,1997, p. 28). Mendes (2009) e Silva (1997) narram sobre as violências vividas. São exemplos públicos de sobrevivência a situações extremas vivenciadas em instituições brasileiras – em destaque, no sistema prisional, responsabilidade do Estado, criado para a ressocialização do apenado e sua reinserção positiva na sociedade.

Nesse contexto, como pensar ou trabalhar uma proposta de reintegração social?

Para Foucault (1979), estas instituições tem a função de reprodução da violência e não o inverso:

[...] a sociedade sem delinquência foi um sonho do século XVIII que depois acabou. A delinquência era por demais útil para que se pudesse sonhar com algo tão tolo e perigoso como uma sociedade sem delinquência. Sem delinquência não há polícia. O que torna a presença do policial tolerável pela população senão o medo dos delinquentes. [...] Aceitamos entre nós essa gente de uniforme, armada, enquanto nós não temos o direito de estar, que nos pode documentos, que vem rondar nossas portas. Como isso seria aceitável se não houvesse delinquentes? Ou se não houvesse, todos os dias nos jornais, artigos onde se conta quão numerosos e perigosos são os delinquentes? (FOUCAULT, 1979, p. 137).

Trassi (2006) nos traz apontamentos sobre o movimento cíclico que observou na FEBEM-SP em relação ao movimento de início de tentativas de mudança na instituição, e seguidamente, sua não sustentação:

no início de 2005, em uma conjuntura política de enfrentamento de setores do governo com os trabalhadores envolvidos com as práticas de maus-tratos e tortura na instituição Febem ( prisões e demissões), ouve a esperança, mais uma vez, de erradicação da tortura na instituição, a extinção da Febem-SP e a construção de outra instituição jurídica, com descentralização administrativa, outro modelo arquitetônico e socioeducativo, com pessoal qualificado de acordo

com o proposto pelo ECA e que superasse definitivamente os resquícios das práticas da ditadura militar que permanecem ali. O trânsito pelas entidades de atendimento e defesa de direitos da área da infância e juventude permitiu acompanhar de perto e participar de acontecimentos em que se vislumbrava isso...

De novo, uma ilusão... os meninos saíram dos telhados das unidades, a mídia já não está a postos, o modelo prisional prevalece. As mães (AMAR) foram proibidas de entrar nas unidades. Os pais que visitam seus filhos presos dizem “não deu para aproveitar a visita porque ele tá muito drogado”. De novo, “a tranca e o couro” ou “tá tudo dominado”. Até quando? (TRASSI, 2006, p. 35).

Estudos como Oliveira (2004), Yokomiso (2007), Franco (2008), Costa (2007) e Yokomiso (2013), entre outros, apontam para a existência de políticas contraditórias no atendimento ao adolescente autor de ato infracional, e de como a violência se encontra presente nas instituições de internação desses adolescentes.

Franco (2013) realizou um levantamento de Teses e Dissertações defendidas na USP entre 1979 e 2006, com o tema FEBEM. Foram encontradas 36 pesquisas, constatando um aumento significativo a partir dos anos 1990. Outro dado importante apontado pela pesquisa é que a instituição em questão ainda não havia alterado seu modo de funcionamento até o ano de 2006.

Oliveira (2004) questiona as verdadeiras intenções do Estado e de seus órgãos em relação ao avanço de propostas que se enquadram num movimento de democratização que buscava consolidar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos.

As políticas públicas seguem operando segundo os padrões já consagrados, ou seja, não romperam com lógicas antigas [...] As forças políticas conservadoras continuaram aperfeiçoando suas estratégias para impedir o avanço democrático [...]. Entre as principais armas com que contam nesse sentido, estão as investidas, por intermédio dos meios de comunicação de massas, para reativar e perpetuar as imagens negativas das classes populares, particularmente as dos jovens moradores na periferias e favelas das cidade. (OLIVEIRA, 2004, p.186).

Consideramos relevante neste cenário a discussão da dimensão subjetiva da violência do Estado. Discutir as consequências psíquicas trazidas por ações marcadamente brutais, especialmente quando quem, em sua estrutura de funcionamento, são os garantidores da segurança daqueles que se tornam os algozes.

Com relação à violência policial, são inúmeros os relatos de situações de violência e humilhação, como verificamos nos relatos de Ramos (2009).

Eles entram e acham que é tudo roubado, tem geladeira nova, acham que é roubada, se a geladeira tá cheia “ah isso tá cheio demais”, colocam no chão e mijam em cima” (mãe de um adolescente sob medida socioeducativa) (RAMOS, 2009, p. 24).

São inúmeros, vergonhosos e dolorosos os casos envolvendo a polícia ao longo dos sete meses de pesquisa. É desnecessário citá-los aqui, porque eles reproduzem a farta, amplamente conhecida e já ilustrada crônica cotidiana de barbaridades e degradação da força do Estado, especialmente na sua relação com as favelas. [...]

[...] Trata-se de uma cultura policial arraigada que naturaliza o desrespeito a todos os moradores das áreas pobres da cidade, banaliza a brutalidade e de certa forma justifica a cada dia o próprio fracasso através da lógica da guerra contra o crime, dos armamentos nas mãos dos marginais, da escolha feita por aqueles que recebem a polícia a tiros, do remédio amargo. (RAMOS, 2009, p. 24).

Todo esse cenário de truculência e arbitrariedades não pode nos confundir e nos impedir de compreender que a polícia também é parte absolutamente fundamental para a solução desse caos social. Cabe pensar a que atuação policial estamos nos referindo.

4 CAMINHOS PERCORRIDOS

O universo de pesquisa deste estudo foi pensado para compreender, em especial, o que, na visão do adolescente, contribui para a reincidência do ato infracional. Para tanto, foram realizados encontros com grupos de adolescentes reincidentes, tanto na medida em meio fechado, quanto na medida em meio aberto.