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RASTROS DE SEBASTIÃO PRESENTIFICADOS EM OTELO COMO SUA REPRESENTAÇÃO

No documento TADEU PEREIRA DOS SANTOS (páginas 194-200)

Devemos lembrar o passado, sim; mas não lembrar por lembrar, numa espécie de culto ao passado.

Jeanne Marie Gagnebin

O uso do passado, na morte de Sebastião, visou à operacionalização do seu esquecimento, em que suas imagens publicizadas se constituem em re-apresentações dos abusos outrora tecidos socialmente. Por meio do gestual, tomado o tropo cômico pelo grotesco e vulgar, moldurou sua identidade social em Grande Otelo, equivalendo os universos artístico e pessoal, em que o ficcional transmutou-se em histórico enquanto expressão da verdade.

Tal memória, assim materializada, renovou os processos de produção de sentidos, cuja circulação fez crescer uma recepção propositadamente expressiva das noções de aceitação e reconhecimento. A sua tessitura imagética, cujo fato de “lembrar” se faz pela dispersão mnemônica de imagens pré-selecionadas, caracterizou a produção de esquecimento por meio de movimento que procuraram encobrir o dado forjado de sua identidade, acoplando representações pontuais, organizadas cronologicamente.

A integralização de suas nomeações temporais através de atribuições diversas, ajustando-o enquanto uma paisagem de Sebastião em Grande Otelo, (na qual essa própria identidade construída confundiu Sebastião com o próprio Sebastião), num paradoxo necessário ao avivamento mais autêntico e originário de sua própria vida.1 Silenciou-se Sebastião por Sebastião como Prata, mantendo-se as marcas dessa violência, cujo preço da auto-conservação de Sebastião como Prata em Grande Otelo foi a equivalência de ambos.

1 GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Homero e a dialética do esclarecimento”. In: Lembrar, escrever,

O processo de criação da memória que conserva Sebastião em Prata como Grande Otelo foi desenvolvido pelas linguagens jornalísticas de diferentes Estados, especialmente de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, num movimento em que, por um lado, plurais matérias propagaram-se sincronizadas, algo próprio dos mecanismos de reprodução no interior dos canais midiáticos. A organização, a estética, a modelação gráfica, ensejam o campo visual, delineando a significação compartilhada em suporte à referida construção. Daí, a notícia da morte de Sebastião ter sido ressaltada por uma orquestração simultânea, cadenciada, de produções de sentidos dados como se fossem expressivos da integralidade do sujeito. Por outro lado, a coerência interna dos quadros ou representações erigidos imageticamente pelas mídias, dotou as matérias de um sentido de integralidade, reafirmando a enunciada significação.

As manchetes dos jornais pretenderam afirmar uma dimensão exterior de Grande Otelo que, por um ângulo específico de observação, estariam pautadas na subjetividade do próprio Grande Otelo, evocando uma história do sujeito, desde seu nascimento à morte. As formas de lembrar, na referida ocasião, foram fundamentais no tocante à re-apresentação da violência que transformou Sebastião em Grande Otelo. Aqui, erigiu-se um tipo de pilar mnemônico cuja ideia de conservação fundamentaria o fato de “eternizá-lo”, negando suas peculiaridades e mesmo deixando de fora os mecanismos que pretendiam alçá-lo à condição de “produto”. O aspecto a ressalvar, neste cenário montado, diz respeito ao ensejo, levado adiante pelo olhar da mídia, em preservar a sua vida (e, porque não dizer, sua memória), através de uma imitação mimética do amorfo (não tem forma determinada), que não sendo cristalizada, irradiou novas possibilidades de interpretação e expressão sobre a vida e obra de Sebastião/Sebastião como Prata/Grande Otelo, as quais asseguram significação inovadora em relação àquilo que permanece.2

O ato de lembrar, no referido contexto, moveu-se procurando opor-se, disfarçadamente, ao esquecimento, como uma espécie de reaviamento a recuperar o processo em que Sebastião deixa de ser ele mesmo para assumir uma nova identidade, numa trajetória marcada por imposições e violência via mercado midiático, em que o transmutaram da condição de Sebastião à Sebastião como Prata e, posteriormente, a Grande Otelo, muito em decorrência de suas atuações no cinema brasileiro. A pluralidade de imagens de Sebastião, vinculadas a esse panorama de notícias e

2 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Op.cit. p.33.

entretenimento, ocorreu em meio às mudanças de cenários realizados pelas próprias mídias, que não produziram uma versão crítica sobre Sebastião mas, antes, desvelaram um jogo de imposições e de leituras unilaterais que sujeitaram-no a manter-se, quase que com exclusividade, a um único repertório cênico, pautado no gestual como elemento a referendá-lo.

É neste sentido que a mundanidade de Sebastião foi incorporada ao universo de Grande Otelo, uma vez que os diversos filtros de suas experiências, enquadradas aqui e ali em diferentes contextos históricos, delinearam sua identidade artística, realçando suas atuações enquanto ator à sua própria identidade. Os lugares que vinculam o ser Sebastião como Prata a suas experiências artísticas, se estabeleceram como suportes de lembranças e recordações do passado já que, seletivamente, fizeram-no lembrado enquanto ator encobrindo ou ocultando seu “verdadeiro” eu, esquecido por essa dinâmica do lembrar. Ainda assim, em meio a passos estratégicos, Sebastião, como ator, ampliou a memória pública do ser Grande Otelo, em concomitância à memória do próprio Sebastião.

O veio cômico de natureza grotesca delimita o jogo de “continuidade” e inovação, engendrando uma identidade que, ao mesmo tempo, referiu-se a Sebastião com o Grande Otelo personagem, estabelecendo uma relação de proximidade com o universo do sujeito Sebastião como Prata. O ficcional assume dimensão histórica quando, na verdade, deveria ter sido objeto de reflexão. Segundo Paul Ricoeur, o mesmo assume um duplo movimento: de tecer a trama e distinguir o que é de fato

histórico, pois não há possibilidade de construção da narrativa sem o elemento

ficcional, já que o vestígio que configura o ato de escrever resulta da relação tecida entre o mesmo e o real:

É evidente, no fenômeno do vestígio, que culmina o caráter imaginário dos conectores que marcam a instauração do tempo histórico. Essa mediação está pressuposta na estrutura mista do próprio vestígio enquanto efeito-signo. Essa estrutura mista exprime, abreviadamente, uma atividade sintética complexa, em cuja composição entram interferências de tipo causal aplicadas ao vestígio como marca deixada e atividades de interpretação ligadas ao caráter de significação do vestígio, como coisa presente que vale por uma coisa passada.3

3 RICOUER. Paul. “O entrecruzamento de ficção e história”. RICOUER, Paul. In: Tempo e narrativa.

As molduras midiáticas inverteram a especificidade da leitura aqui experimentada, linearizando-o como algo comum, presas ao impacto produzido sensoriamente, propondo uma dada “criticidade”. Deste modo, “a ficção tem a capacidade de suscitar uma ilusão de presença, controlada, porém, pelo distanciamento crítico”.4

A evocação das recordações se dá pelo recolhimento do passado, esboçando uma busca por aspectos que se fizeram suportes à existência de Sebastião em Prata como Grande Otelo. Tal premissa tornou-se objeto de resgate e, por conseguinte, condicionante da relação memória e esquecimento, numa tentativa de, ora reavivar representações conservadoras contra o esquecer, ora conferindo ao passado a quantificação de caráter mnemônico já que:

uma obsessão que também pode reinstalar, infinitamente, os sujeitos sociais no círculo da culpabilidade, da auto-acusação e da auto- justificação, que permite, em suma, permanecer no passado em vez de ter a coragem de ousar enfrentar o presente.5

As representações divulgadas em diferentes linguagens foram, paulatinamente, sendo inseridas na referida conjuntura de forma horizontal. Nela, o dado quantitativo compôs-se como elemento afirmador de sua “grandeza”, embora privando-o de seus suportes existenciais. Buscou fechar a realidade em si como atestadora de tal condição, com o intuito precípuo de exprimir o passado. As ideias presentificadas no cortejo fúnebre deveriam conduzir a aberturas para a relação memória e esquecimento. Para Gagnebin existe:

Um trabalho de elaboração e de luto em relação ao passado, realizado por meio de um esforço de compreensão e de esclarecimento – do passado e, também, do presente. Um trabalho que, certamente, lembra dos mortos, por piedade e fidelidade, mas também por amor e atenção ao vivos.6

As tentativas de configuração de uma determinada “negação da realidade”, expressadas nas relações estabelecidas entre Sebastião, Sebastião como Prata, Sebastião como Grande Otelo e personagens, são evidentes nos processos que asseguraram sua

4 RICOUER. Paul. “O entrecruzamento de ficção e história”. RICOUER. Paul. In: Tempo e narrativa.

São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p.222

5 GAGNEBIN, Jeanne Marie. “O que significa elaborar o passado”. In: Lembrar, escrever, esquecer,

São Paulo: Editora 34, 2006. p.105.

transformação em um produto cultural consumível, atrelando sua vida pessoal à arte de Grande Otelo.

O tropo cômico se afirmou como objeto de identificação à realidade de Sebastião como extensão à de seus personagens, experimentados por ele como Sebastião em Prata mas dando substância à existência de Grande Otelo. Por essa lógica, a verticalidade cronológica criou-se uma demanda de verdade, uma ilusão de profundidade em substituição à historicidade, numa paisagem tecida cotidianamente por uma habitualidade temporal.

O ato de lembrar, que se instituiu pelas linguagens, derivou de uma correlação estabelecida entre repetição e habitualidade. Vejamos como esse processo ocorre em matéria da Folha de S. Paulo, em 27/11/1993:

Testemunho Imagético 33: Ator queria vaga na Academia de Letras. In: Jornal Folha de S. Paulo. São Paulo, 27 nov. 1993. p.1.

A matéria traz os nós indicativos da complexidade de Sebastião, homem a lidar com as dificuldades da vida em diferentes tempos e espaços. Embora o aspecto gestual tenha um caráter de reforço de sua trajetória, o dado textual apresenta-o de forma difusa. O jornalista fazendo de Sebastião Bernardes de Souza Prata seu fio condutor a desembocar como Grande Otelo, reportando a um universo que pertence a Sebastião.

A narrativa representa a publicização da trajetória de Sebastião como Grande Otelo e porta os elementos que asseguram lembranças, reavivando certo tributo a Sebastião em meio à sua constituição como Grande Otelo.

A narrativa acima induz, tematicamente, o olhar sobre passado, no qual a retrospecção se constitui organizada didaticamente, mostrando-o cronologicamente, do nascimento à morte. O olhar jornalístico canalizou a forma de descrição do acontecimento (vida e morte de Sebastião/Sebastião como Prata/Grande Otelo) a partir de elementos que alimentaram a memória pública, pelo veio artístico. Desse modo, as partes são tomadas como um todo dotado de ampla elasticidade (e que é percebida socialmente). O contar/narrar, definiu uma trajetória pública, cuja existência se justificou como instrumento da narração, em que o sujeito se constituiu e voltou-se, exclusivamente, para a arte.

Os deslocamentos dessas experiências heterogêneas conferiram sentido tanto às suas habilidades profissionais quanto às experiências por ele vividas, através de apropriações moldadas à sua identidade pública, repercutindo a magnitude de sua trajetória como ator. Neste sentido, afirmamos que aspectos da vida de Sebastião, “negociados” e transmutados, foram transformados para afirmá-lo artisticamente, levando-o a Grande Otelo. Desta maneira, sua infância se fez em objeto que dá sentido à sua existência e, ao mesmo tempo, por conferir identificação a Grande Otelo que, por usurpação do seu lugar, assumiu o nascimento de Prata como dado temporal a confirmar sua existência.

As imagens de Sebastião, antes de 1935, não podem ser atribuídas a Grande Otelo, já que o mesmo surgiu a partir de então. Contudo, se fez necessário considerar que tais incorporações e atribuições se deram via registros desse “mercado cultural”,

lócus de ação de mecanismos que tinham como objetivo atingir variados tipos de

público “consumidor”. Nesta seara, originou-se o processo de esquecimento de Sebastião e, concomitantemente, a monumentalização de Grande Otelo, que perdurou por 58 anos. Aqui, temos uma conjuntura relacionada à produção, circulação e recepção

de representações, numa movimentação social acentuada pelos principais meios de comunicação, cujas intervenções se intensificaram no espaço da morte.

Assim, a atuação das mídias no funeral de Sebastião renovou as representações de Sebastião como Prata em Grande Otelo, reafirmando o esquecimento de um em detrimento à afirmação do outro. É exatamente aqui que a solidificação das equivalências direcionadas a Sebastião e, de Sebastião em Prata e, deste último como Grande Otelo. Desse modo, fechou-se o ciclo do sujeito, do nascimento à morte.

O deslocamento da infância de Sebastião a Grande Otelo o torna objeto de consumo como mercadoria, movimento que chega mesmo a usurpar sua infância que, todavia, não foi apresentada como marketing, mas como expressiva de suas atuações cênicas no Rio de Janeiro em 1935, conforme percebido no artigo “Sem mágoa, cinquentão Grande Otelo quer ser advogado”, de Antônio Moura Reis, publicada no jornal Correio da Manhã, em 21/ 03 de 1965:

Porque Otelo, O Grande

Na adolescência, Sebastião Prata, no Rio, tornou-se amigo de dona Abigail Paressis, professora de canto do Teatro Municipal. Ia aos ensaios. Alguém disse uma vez que ele tinha voz de tenor e que talvez um dia viesse a cantar “Otelo” de Shakespeare. Virando brincadeira que pegou entre os amigos, o nome de Sebastião Prata, desapareceu em pouco tempo para dar lugar ao Otelo, que todos o chamavam. Em 1935, Jardel Jercolis montava a peça Gool, no teatro João Caetano. Otelo estava no elenco e Jardel se preocupou com o nome único que não soava bem artisticamente. Na mesma época, estava sendo exibido no Rio o filme “O Grande Garbo”, de Eric Von Stroheim. O Garbo grande do título era apenas um boneco “pequeno e feio como Otelo”. Jardel tirou o Grande do Garbo de Stroheim, e colocou-o antes do Otelo de seu artista baixinho, que como Grande Otelo subiu ao palco. O nome ficou e o artista também.7

Há que considerar que o noticiado refere-se a Sebastião Bernardo da Costa que, de Otelo de Abigail Parecis, em São Paulo, virou Pequeno Otelo, nas Companhias Negras de Teatro de Revistas. Posteriormente, essa transformação se deu de Grande Otelo, no Rio de Janeiro. Sebastião como Prata surgiu apenas em 1939.

É necessário considerar os lapsos temporais de 20 anos entre Sebastião e Grande Otelo e de 24 anos entre o primeiro e Sebastião como Prata, a formação de seu

7 REIS, Antônio Moura. Sem mágoa, cinquentão Otelo quer ser advogado. In: Jornal Correio da

No documento TADEU PEREIRA DOS SANTOS (páginas 194-200)