• Nenhum resultado encontrado

O SEBASTIÃO REINVENTADO EM GRANDE OTELO: LEMBRANÇA QUE QUESTIONAM A HOMOGENIZAÇÃO DO SER

No documento TADEU PEREIRA DOS SANTOS (páginas 59-74)

NO ESPELHO DA VIDA: SEBASTIÃO COMO PRATA E GRANDE OTELO NÃO MORRERAM AINDA

1.1. O SEBASTIÃO REINVENTADO EM GRANDE OTELO: LEMBRANÇA QUE QUESTIONAM A HOMOGENIZAÇÃO DO SER

Maria Constância, com codinome artístico Nininha Rocha, nascida em Uberlândia, mas que, em decorrência de sua carreira, ausentou-se da localidade por certo período de tempo, teve contato com Sebastião já como Prata, na década de 1990, quando realizava no Rio de Janeiro uma apresentação no teatro São Pedro.

Ninhinha Rocha constrói uma narrativa por lembranças que fazem de sua cidade natal, da qual havia se distanciado, o centro de sua trama, ligando-a à trajetória do contemporâneo artista e que espraia, a partir das rememorações compartilhadas por dada memória histórica, uma construção de Sebastião Prata como suporte de Grande Otelo.

O seu contato com o mesmo não a aproxima dele ou a autoriza a falar em nome dele, uma vez que o distanciamento entre ambos, levou-a a recorrer a narrativas de outros que pudessem respaldar suas recordações. Seu dado narrativo foi forjado a partir de sua própria experiência vinculada tanto à localidade (Uberlândia) quanto a outros espaços do país.

Embora se preocupe em afirmar que Sebastião como Prata era o sujeito e Grande Otelo, o personagem, Nininha Rocha se vale de elementos dados a ler como expressivos do Ser Grande Otelo para descrever as ações do sujeito, estabelecendo uma relação de proximidade com Grande Otelo, evidenciando aspectos gerais de sua

memória pública1, contraditoriamente, distanciada2 do sujeito Sebastião, conforme o trecho abaixo:

Tadeu: O quê, que a Senhora lembra-se dessa época, dessas lembranças em São Paulo, quando ia vê-lo?

Nininha Rocha: Nada, né? Quando eu ia, por que eu trabalhava demais, trabalhei na Bandeirante 12 anos, fazia Hora do Bolinha, o quarteto era meu, então quando eu ouvia falando do Grande Otelo, eu fazia questão de saber o quê que era, o quê que dizia: é mais ou menos aquilo que eu gostava dele; ele gravou a minha paisagem aqui, a paisagem dele ficou gravada em mim, o apelido não sei, o apelido de criança de filme de casa, mas não era de filme, pois foi depois que ele começou a fazer. E ele teve uma vida muito difícil, no casamento, tudo, né? Isso eu não quero botar, né? Por que eu não tenho nada haver; eu tenho haver com ele, o ser humano, o artista, né? Eu acho muito difícil nessa parte.3

Embora a entrevistada dê indícios de ter conhecimento de outros aspectos públicos de Sebastião e por ter sido sua fã, acompanhava as notícias de sua vida, daí o seu compartilhar equivaler ou ser da mesma natureza dos demais.

A memória por ela partilhada de Prata/Grande Otelo decorre da fluidez temporal, já que as referidas imagens gravadas em suas memórias do aprendizado na infância, em decorrência do ouvir contar familiar, as fazem dele se arrogar íntima, ao reportar seu pai como contemporâneo de Sebastião Bernardo da Costa e, portanto, tributando de autoridade para legar-lhe tal vínculo por extensão direta.

A mídia local, apenas em momentos de celebração, evidenciam-no utilitariamente, a exemplo do que ocorre no feriado de Finados. Na referida data, os cemitérios São Pedro e Bom Pastor, em Uberlândia, recebem a visita de aproximadamente 40 mil pessoas (o primeiro), e cerca de 60 mil (o segundo). É nessa conjuntura que os jornalistas elaboram significados que delineiam o caráter de construção das memórias e lembranças evocadas sobre Sebastião como Prata em Grande Otelo, embora as reminiscências refiram-se a Sebastião. O tom da narrativa se constitui numa diluição e quebra temporal, em que a demora do soerguimento do

1 Discussão a esse respeito ver. SARLO, Beatriz; tradução Rosa Freire d’Aguiar. Tempo Passado: cultura

da memória e guinada subjetiva. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva – São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. p.78.

2 Isto é, pela sua condição de artista, Ninhinha Rocha, suscita lembrança que elucida aspectos

compartilhados da memória pública de em Prata como Grande Otelo, de modo que o seu distanciamento, configura a relação não estabelecida com o mesmo, já que a mesma vincula-se a dimensão subjetiva, configurada pela afetividade e moral, a qual, não é peculiar a narradora em relação ao Sebastião Prata. Cf. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2010. p.405.

SARLO, Beatriz. Op.cit. pp. 80-89.

mausoléu torna-se objeto de questionamento no que diz respeito às relações estabelecidas entre Sebastião como Prata e a localidade. Por meio de um “passado seleto” condicionado, quase sempre, pelo ato de lembrar, conforme podemos perceber no artigo “Movimento foi intenso nos dois cemitérios”, publicado pelo jornal Correio

de Uberlândia, em 03/11/1994, no “Caderno Cidade”: “Fãs prestam homenagem a Grande Othelo”

Uberlândia um ano após sua morte, a memória do ator Grande Othelo não teve a consideração que ele próprio esperava quando manifestou, pouco antes de morrer, o desejo de ser enterrado na mesma cidade onde nasceu. A única distinção do sepulcro nº57 dos outros do cemitério São Pedro foi uma placa improvisada instalada pela prefeitura recentemente e uma gravura do que virá a ser o mausoléu em homenagem ao ator. A placa informa que o mausoléu será aberto à visitação pública no próximo dia 26, data em que Grande Othelo morreu no ano passado.

Mesmo com a demora do reconhecimento do Poder Público, os fãs (ou curiosos) não esqueceram o carisma do talvez mais ilustre dos uberlandenses. Sobre a laje do túmulo simples de Othelo, velas foram acesas e algumas flores colocadas. Também foram depositadas orações escritas em pedaços de papel uma delas era em louvor a Santa Rita de Cássia, onde se podia crer que a pessoa que lesse a oração a transcrevesse e colocasse em 25 túmulos diferentes. Mais cuidadoso, outro admirador anônimo envolveu em um plástico transparente um papel com poucas linhas escritas em latim desejando descanso e paz para o “Grande” Grande Otelo.4

A narrativa consiste numa denúncia da falta de zelo do Poder Público em relação à memória de Grande Otelo, em que as ações dos fãs foram dotando de sentido a necessidade de soerguimento do mausoléu, ou seja, a necessidade urgente de apagar os indícios ainda presentes do sepultamento de Sebastião, explicitados no local, impedindo a construção da memória que o harmonizava à localidade. Por deslocamento, as lembranças de Sebastião se fazem presentes na narrativa, uma vez que ele mesmo “manifestou, pouco antes de morrer, o desejo de ser enterrado na mesma cidade onde nasceu”. Aqui, a narrativa se faz lócus de reavimento das lembranças de Sebastião, em que o lugar onde se encontrava sepultado se contradizia às diversas homenagens tributadas pela referida administração pública durante o seu cortejo fúnebre.

Todavia, a narrativa, ao mesmo tempo, se faz objeto de cobrança ao Poder Público local e se manifesta em respostas às intervenções de fãs e curiosos, já que apresenta o dia 26 como data de abertura do espaço à visitação pública. Considerarmos

4Jornal Correio de Uberlândia, Uberlândia, 03 de nov. de 2003. P.A-04. Ver Também: Cem Mil vão

aos cemitérios de Uberlândia. Jornal Correio de Uberlândia. Uberlândia, 03 de Nov. de 1996, nº 17.322, p.01-02.

que o soerguimento do mausoléu presta-se a renovar os significados atribuídos pela localidade a Grande Otelo, e o constitui seu “filho”, estabelecendo uma relação “harmônica” entre eles, tentando silenciar a memória conflituosa existente entre ambos, ainda presente no cemitério por meio do jazigo.5

Mesmo que no feriado de Finados ocorra o processo de visitação das pessoas ao túmulo de Sebastião, a data celebrada e cultivada simbolicamente é o 26/11 (vinte e seis de novembro), que liga definitivamente o artista à localidade. A referida data é uma extensão da transformação do espaço da morte como matriz geradora de sentido, e o mausoléu potencializa a produção de acepções sobre Sebastião em Prata como Grande Otelo como patrimônio nacional. As narrativas avivam lembranças que o dotam de tal natureza, conforme trecho do depoimento de Jessica Amaral da Silva, de 75 anos, natural da cidade de Florianópolis, a qual estava no cemitério para visitar o túmulo de sua sogra. Porém, o mausoléu, localizado no caminho do seu trajeto, permitiu que ela o visitasse também:

Tadeu: Por que a senhora veio visitar o túmulo de Grande Otelo?

Jéssica: O Grande Hotel significa uma das maiores autoridades mundial, está acima representando o mundo, o mundo o conhece, conhece assim, como: pessoa importantíssima, inteligentíssima. Ele foi um homem que ele marcou todas as épocas, eu conheci quando eu morava no Rio de Janeiro, já ouvia falar em Grande Otelo, naqueles filmes maravilhosos que ele fez.

Tadeu: A senhora é de onde?

Jéssica: Eu sou de Florianópolis em Santa Catarina, nasci lá, moro em Canoas no Rio Grande do Sul, estou a passeio. No Rio Grande do Sul ele foi muito querido, ele é muito lembrado, eu acho que o Rio Grande do Sul estava todinha, estaria aqui agora, se pudesse.

Eu vim visitar o túmulo da minha sogra, da mãe do esposo da minha sogra, mas como eu passei primeiramente pelo túmulo do Grande Otelo, eu não poderia deixar de parar para orar para esse espírito evoluidíssimo, eu acho que temos que lembrar sempre, sempre dessa personalidade maravilhosa que ele é, sempre sorrindo, ele é aquela pessoa que está ali, oh!!! Aquela pessoa.6

Com o feriado de Finados, renovam-se os sentidos que asseguram a memória que aprisiona sujeito e personagem, conjugado em Grande Otelo. Assim, é necessário considerarmos o processo no qual a morte se faz ambivalentemente, ponto de fechamento e abertura à elaboração dos processos de criação que mantém o sujeito aprisionado ao personagem. A celebração da morte renova a afirmação existencial, ou

5 Desde a década de 1940 instauram-se conflitos entre Sebastião como Prata e a localidade, em

decorrência de divergências políticas.

seja, agrega o sujeito como mero elemento de recordação do Ser personagem, tornando os equiparáveis, do nascimento ao óbito, prestando serviço ao continuísmo em detrimento da ruptura.

O estabelecimento da referida data como lócus de celebração, interligando nascimento, Finados e morte, num processo unívoco celebrativo e disseminador de novas criações, assegura o presente vivificado de Sebastião por meio de Sebastião em Grande Otelo. Por esse modo, o morrer de Sebastião é afirmativo da sobrevivência de Grande Otelo, sobrepondo a morte de Sebastião ao seu nascimento, uma vez que a mesma é que se celebra, relegando o seu nascer ao esquecimento, pois “a medalha representa o símbolo físico de homenagem que será prestada, anualmente, no dia do aniversário de morte de Grande Othelo - dia 26 de novembro.”7

A instituição do 26 de novembro como data de comemoração solene se faz na dimensão da memória de Prata usurpada em Grande Otelo. Daí, lançá-lo ao obscurecimento visibilizando elementos atualizadores das pretensas lembranças que o perpetuem dissidiosamente.

Tal processo caracteriza o modo assumido por uma subjetividade8, deslocando a efetiva memória via aproximação ou estreitamento de laços, muitas vezes não consumados, mas apenas presumidos, de modo a produzir efeito de verdade nos ouvintes. Assim, se faz representativa dos processos na contemporaneidade, pelos quais acentuou-se a memória histórica, assegurando Sebastião em Prata como Grande Otelo, símbolo do cinema brasileiro, conforme também é perceptível nas lembranças do Sr. Jardel, de 82 anos, em 2007:

Tadeu: Qual é o motivo da visita ao túmulo de Grande Otelo?

Jardel: Porque acompanhei a vida dele quando era jovem, quando era mais moço, ele era espuleta (sic), era um foguete, era serelepe. Um dia

7 LACERDA, Misac. CÂMARA MUCIPAL.Processo nº 0466194/Projeto nº 046, dispõe sobre criação

de medalha Grande Otelo e dá outras providências. Arquivo Público de Uberlândia.

8 Tais reflexões decorreram dos apontamentos de Beatriz Sarlo em seu texto pós-memórias e

reconstituições, em que problematiza como a subjetividade ocupa um lugar central na produção de memórias, após a segunda guerra mundial, de modo a interferir no processo de reconstituições do passado. Isto é, há um processo que faz a testemunha autoridade, já que a dimensão do esteve lá, credita a subjetividade alheia à própria, pelo que a experiência o transforma numa autoridade, já que as suas lembranças decorrem do vivido. É, neste sentido, que a autora desvela que o conceito de pós-memória, configura o modo como a subjetividade tem sido utilizada em primazia do vivido em desconsideração ao aprendido que é uma dimensão do vivido, abordando o caráter vicário da lembrança. Todavia, plurais foram os modos de reconstruções do passado, justificados a partir da dimensão subjetiva, que se distancia de uma perspectiva histórica, em decorrência da lembrança experiência, contudo, a mesma apresenta que toda memória se faz relacionada a dimensão vicária, que configura o processo de constituição das pessoas. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. p. 90-113.

encontrei com ele aqui em Uberlândia, lá na Praça Tubal Vilela, a turma atrás dele (riso), oh, Grande Otelo, manda essa turma trabalhar, tá te enchendo o saco, ele falou: “deixa encher, deixa encher”.

Tadeu: O que é que o senhor ouviu contar da vida de Grande Otelo? Jardel: Eu sempre lia jornais, Diário de São Paulo, A Folha de São Paulo. Então, tudo. Naquele tempo a televisão praticamente não existia, que o rádio você tem que lá, se não você não confere. Eu não tinha tempo prá isso, então meu negócio era jornal. Eu acompanhava Grandes Astros da música, grandes astros brasileiros, né? Ele roubava fruta nos quintais tudo, por aí. Ele era espeto, era serelepe, o Bastião. Eu não me lembro como ele foi parar em São Paulo, já não me lembro mais, mais ele foi pra São Paulo, ficou por lá, o Grande Otelo. Ele ganhou apelido de Grande Otelo, Grande Otelo, porque ele trabalhava de, na portaria de um hotel que chamava Grande Otelo. É por isso, que ele recebeu o apelido de Grande Otelo.9

As lembranças do Sr. Jardel decorrem do seu contato com o artista na localidade e de suas leituras sobre o cinema, os jornais, as revistas e, ainda, do “ouvir contar” alheio. Não é difícil, portanto, percebermos o movimento por ele realizado quando se trata de suas lembranças envolvendo a figura de Grande Otelo: dimensiona-o pluralizando o tempo, em que os seus suportes rememorativos desvelam o compartilhamento de recordações comuns expressivas da memória pública de Sebastião Prata como Grande Otelo de Sebastião em Pedro de Uberabinha-MG.

À medida em que Sebastião em Prata como Grande Otelo se distancia da morte, espaço de ruptura, é alçado ao campo da presentificação de lembranças, de natureza não destitutiva de suas ações em vida, mas que persiste na dotação de existência própria com preenchimento das lacunas do real pelo imaginário, culminando num real para além do ficcional, transformador da memória histórica em história10 e bloqueador da percepção de sua expressão como memória coletiva.

Embora a localidade seja o ponto de referência, há alusão a outros elementos suportes nela não originados, visíveis nas narrativas colhidas de pessoas que, no Dia de Finados, visitam o Mausoléu de Sebastião, movidos pela curiosidade em saber sobre Grande Otelo.

9 Jardel. Depoimento. Uberlândia, 02 nov. 2007.

10 Segundo Paul Ricoeur, Maurice Halbwachs apresenta a memória histórica, a qual se vincula à nação,

como História ao evidenciar as diferenças entre memória e história, já que pretende valoriza a memória coletiva em detrimento da história. Assim, memória é demarcada pela oralidade, a qual, define-se o surgimento da história, em que a memória diz respeito ao processo integral vivenciado pelos homens, enquanto que a história se faz a partir de elementos seletivos dados a ler como expressivos de uma dada realidade configurativa da exterioridade. Todavia, Ricoeur, aponta que a memória histórica é um elemento de expressão e difusão da memória coletiva, a qual persiste em decorrência da sucessão de geração. Isto é, os suportes de difusão da memória histórica na sociedade. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2010. p. 404-407.

Testemunho Imagético 1: Mausoléu de Grande Otelo no Cemitério São Pedro em Uberlândia, 2004. O Mausoléu foi afixado em 26 de novembro de 1994. Foto: Tadeu Pereira dos Santos.

A supracitada iconografia expressa o cotidiano do referido espaço fúnebre, o qual, apenas no Dia de Finados, em decorrência do enfoque pelos meios de comunicação (com destaque ao Jornal Correio de Uberlândia e à TV Integração), acentuam sua visitação.

Os visitantes são pessoas naturais da localidade ou a ela agregados com sentimento de pertencimento, o que demonstra o entrecruzamento temporal da ligação de Grande Otelo a outras gerações, partilhantes da versão dos valores suportes à sua memória, externados num presente contínuo, manifestos por canais de difusão e propagação que apresentam Sebastião em Prata como Grande Otelo.

O referido monumento localiza-se aproximadamente 50 metros do ponto principal à direita contendo na sua parte esquerda nome Grande Otelo, dando-o como equivalente a Sebastião como Prata, como se a realidade de um fosse a do outro. Na parte central localiza-se um busto de bronze, cujos traços não correspondem nem ao sujeito e nem ao personagem. Enquanto lugar de memória, porta complexidade ao

entrelaçar o material, o simbólico e o funcional e relaciona memória-história, conforme nos sugere Paul Ricoeur:

O primeiro fixa os lugares de memória em realidades que consideraríamos inteiramente dadas e manejáveis; o segundo é obra da imaginação e garante a cristalização das lembranças e sua transmissão; o terceiro leva ao ritual que, no entanto, a história tende a destituir, como se vê com os acontecimentos fundadores ou com os acontecimentos espetáculos, e com os lugares refúgios e outros santuários.11

A instituição do Mausoléu de Grande Otelo é a materialização de um espaço físico, palpável e visível que, embora seja uma representação instituída, por sua natureza ritualística e imaginária, potencializa lembranças de representações plurais, reavivadas como partilhadas, apesar de elementos de unicidade que teimam em circundar os auspícios da memória.

Só a reflexão histórica (im)possibilita a sacralização ou cristalização do Mausoléu, enquanto aspectos moduladores que poderiam “parar o tempo”, numa dimensão tanto pretérita quanto nostálgica, mas pode agir também como lócus de produção, circulação e recepção de sentidos12 atribuídos a Sebastião em Prata como Grande Otelo no que tange à sua morte. Pelas rememorações dos visitantes, constata-se a “continuação de um processo de produção dentro do processo de circulação e para este”.13

No processo de elaboração de lembranças, o ato de rememorar se faz a partir das representações construídas na morte, que se estendem temporalmente como extensão da mesma com novos sentidos. O passado se manifesta como aquele ensejado pelo sujeito em vida, mas apenas consumado no seu pós-morte, como exemplifica a narrativa de Júnior, 40 anos, em 2008:

Tadeu: Qual é o motivo que o traz ao túmulo de Grande Otelo?

Júnior: Eu venho cá, porque o Grande Otelo, sim, assistir (sic) ele na televisão. Que ele trabalhava com o Chico Anísio, fez muito filme nacional e tem. Bom rapaz, ele fazia muito filme, bom mesmo. Fazia a gente rir demais. Muito engraçado, as coisas que ele já fez, viu. Isso aí, todo mundo vem cá, porque gosta dele também. E o dia que vim cá, se o tanto de artista que tinha aqui também. Nossa, até o patrão dele veio aqui

11RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2010. p.416. 12SARLO, Beatriz. Op.cit. p.77.

também, o professor Raimundo (Chico Anísio), na época, o Chico Anísio e ele imitava: aqui queres, imitava assim, na escolinha. Era desse jeito.14

O mausoléu como lugar de memória, numa perspectiva memorialista, passa a ser fonte de rememorações e celebrações que realimentam sua memória pública, pois “é essa celebração histórica, intrinsecamente mitológica e comemorativa, que faz com que a geração saia da história para se instalar na memória.15

Pela diversidade de lembranças suscitadas a partir deste ambiente singular, as narrativas ali colhidas tipificam os modos de elaboração da memória contemporânea, realçando os significados públicos de Sebastião em Prata como Grande Otelo, apoiados no seu atrelamento à localidade, colocando em evidência os atributos que o transformaram num representante local “admirável” e “vencedor”, conforme o trecho do depoimento do Sr. Claudêncio, de 76 anos, em 2007:

Tadeu- Qual é o motivo que o faz visitar o túmulo de Grande Otelo?

No documento TADEU PEREIRA DOS SANTOS (páginas 59-74)