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Razões históricas para a fundamentalidade da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro

A PROTEÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

2.4 A dignidade da pessoa humana e os direitos sociais

2.4.1 Razões históricas para a fundamentalidade da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro

Alcançar o real sentido do conceito da dignidade da pessoa humana exige a compreensão de sua evolução histórica, fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo.

145 AGUIAR, Marcelo Souza. O Direito à Felicidade como Direito Humano Fundamental In Revista de

Direito Social Ano VIII – Jul./Set. 2008, nº 31, pp. 113-114

Remontam ao Antigo e Novo Testamento as referências de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, o que lhe confere um valor próprio e intrínseco, impedindo-o de ser transformado em mero objeto ou instrumento.

Por meio de suas instituições e integrantes, o Cristianismo durante muito tempo atribuiu este valor apenas aos cristãos (relegando à fogueira os ateus ou seguidores de outras crenças).

Ainda na Antiguidade, mas na cultura grega, é possível se observar ideias sobre essa dignidade: no Teeteto, diálogo entre Platão e Sócrates, desenvolve-se o conceito de que toda a dignidade está no pensamento humano; a finalidade da vida é o desenvolvimento do conhecimento do bem.

Peces-Barba assinala, no exame dos textos orientais, o fato de que não é exclusivamente da tradição ocidental a origem da temática em questão – a dignidade da pessoa humana. A razão, o fim último da existência, a autonomia e a independência moral são traços então presentes nos trabalhos de Confúcio e outros autores orientais, e que assim como a ideia kantiana de autonomia da vontade, guardam relação, em termos de precedente, com a raiz da dignidade da pessoa humana.147

Na Antiguidade clássica, a dignidade da pessoa humana variava conforme a posição social ocupada e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade; assim era possível falar-se em uma qualificação e uma modulação da dignidade no sentido de se admitir a existência de pessoas mais dignas e menos dignas.148 Importava para ser digno a condição de classe superior a que a pessoa pertencia.149

Na Idade Média, formulou-se, por intermédio de São Tomás de Aquino, um novo conceito de pessoa como substância individual de natureza racional, e isso acabou por influenciar a noção contemporânea de dignidade da pessoa humana. Para São Tomás de Aquino, a noção da dignidade encontra seu fundamento na circunstância de o ser humano ter sido feito à imagem e semelhança de Deus, e

147 PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregório. La Dignidad de la persona desde la Filosofia del Derecho,

p. 22.

148 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade de Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição

de 1988, p. 30.

149 Cf. PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregório. La Dignidad de la persona desde la Filosofia del

também fixa-se na capacidade de autodeterminação intrínseca à natureza humana que, por força de sua dignidade, existe em função da própria vontade.150

No Renascimento, a dignidade passa a ocupar lugar importante nas discussões filosóficas, e as obras então publicadas expressam esta preocupação: em 1451, o italiano Giannozzo Manetti escreve “De Dignitate et excellentia Hominis” exaltando o homem e a mente humana com capacidade ilimitada de conhecer e moldar o mundo aos seus desígnios, independentemente de vínculos com Deus; em 1486, Pico Della Mirandola escreve o ensaio intitulado “Oratio de Hominis dignitate”

justificando a grandeza e a superioridade do homem em relação aos demais seres, pois, sendo criatura de Deus, possui natureza indefinida, sendo seu próprio árbitro, soberano e artífice, dotado da capacidade de ser e obter aquilo que ele mesmo quer e deseja.151

Indubitavelmente, o Renascimento foi o período em que se consolidou a dignidade da pessoa humana; o Humanismo como filosofia surgida nesse período apresenta as fortes cores da dignidade, constituída pelas ideias latentes de liberdade e autonomia.

A dignidade ganha maior densidade na modernidade, pois passa a ser vista enquanto referencial de valorização do homem quando surge o conceito do homem centro do mundo e centrado no mundo.152

No pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade humana, assim como a ideia do direito natural em si, passa por um processo de racionalização e laicização, mantendo-se, todavia, a noção fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade.

A concepção da dignidade humana delineia uma visão otimista e de progresso em relação à condição humana, e, portanto, é certo que tal ideia encontrará no ambiente da filosofia iluminista terreno ainda mais favorável ao seu florescimento.153

150 Ibidem, p. 61. 151 Ibidem, p.30.

152 No dizer de PECES-BARBA MARTÍNEZ

:“el concepto de hombre centro del mundo y centrado en el mundo”. La Dignidad de la persona desde la Filosofia del Derecho, p. 21.

153 PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregório. La Dignidad de la persona desde la Filosofia del Derecho,

Surge, neste contexto, a visão kantiana, cuja concepção de dignidade parte da autonomia ética do ser humano, considerando a autonomia como fundamento da dignidade do homem. Ou seja, há um abandono das vestes sacrais sem que isto represente negação da profunda influência do pensamento cristão. Kant publica em 1781 a “Crítica da Razão Pura” e, em 1784, a “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, marcos da filosofia, obras nas quais discute conceitos como o da autonomia da vontade, da liberdade, essenciais para a determinação do conceito de dignidade na atualidade.

A doutrina Social da Igreja também trouxe significativa contribuição à concepção e aplicabilidade da dignidade da pessoa humana nas relações sociais. A Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XII, de 1891, foi um dos primeiros documentos papais a revelar uma preocupação com a temática da dignidade da pessoa humana. Segundo Cleber Francisco Alves, os escritos sagrados, especialmente a Bíblia, encerram uma verdadeira antropologia da dignidade”, dedicando diversas passagens à condição sagrada da natureza humana.154

Constata-se, assim, que a ideia de dignidade da pessoa humana sempre esteve presente no processo histórico, seja como preocupação da filosofia, seja como preocupação do Direito, sendo-lhe atribuído novo sentido a partir de Kant; mas sempre referenciada como ponto de partida para novas conquistas do homem, e como ponto de chegada no estabelecimento de limite à violência e à barbárie.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o campo de concentração de Auschwitz tornou-se exemplo emblemático daquilo que ficou conhecido posteriormente como a “indústria da morte”: milhares de judeus vindos dos guetos de Varsóvia foram exterminados nas câmaras de gás. Na época, o totalitarismo, como forma de governo baseada no terror e na ideologia, desconsiderou a dignidade da pessoa humana, e criou uma forma, até então inédita de governo, cujos crimes não podiam ser julgados pelos padrões morais usuais nem punidos dentro do quadro de referências dos sistemas jurídicos tradicionais.

Nesse episódio, salta aos olhos o “desvalor” da vida e da liberdade humanas, por meio do desrespeito ao ser humano, pela coisificação do homem e

154 O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque da doutrina social da igreja,

pela desconsideração de sua dignidade latente. Na visão de Judith Martins Costa, entretanto:

A barbárie do século XX – o totalitariamo estatal, econômico ou científico – teve como contrapartida a afirmação do valor da pessoa como titular da sua própria esfera de personalidade, que, antes de ser vista como mero suposto do conceito técnico de capacidade, fundamenta-se no reconhecimento da dignidade própria à pessoa humana. Esta é a “novidade” que tem, para o Direito, o princípio da dignidade da pessoa. Como explica Bernard Edelman, embora a palavra dignidade fosse há muito conhecida, e a idéia de uma dignidade própria ao homem remonte à filosofia de Kant, a idéia da existência de uma proteção jurídica que é devida em razão da dignidade liga-se fundamentalmente a um duplo fenômeno, à barbárie nazista (que fez alcançar a idéia de crimes contra a humanidade, no Tribunal de Nurenberg) e à Biomedicina.155

Como forma de combater essas barbáries, diversas nações passaram a se organizar por meio de cartas e declarações para prestigiar a dignidade como princípio máximo, evitando que novas tragédias de âmbito mundial voltassem a acontecer. Assim, no campo do direito internacional as referências à dignidade da pessoa humana passaram a se apresentar em diferentes documentos – geralmente em seus preâmbulos – dentre os quais a Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945, o Estatuto da Unesco, de 16 de novembro de 1945, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 10 de dezembro de 1948, e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 19 de dezembro de 1966, dentre outros.

Nesses textos a invocação da dignidade como valor traduz uma reação aos horrores vivenciados na Segunda Guerra Mundial e as graves violações aos direitos perpetradas, e, de outra forma, contêm também a promessa de um compromisso – a busca de um futuro compatível com a dignidade da pessoa humana.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1948) corporifica e normatiza os direitos fundamentais da pessoa humana, pois em seu texto há expressa referência de que os homens nascem livres e iguais em direitos, assegurando a todos direitos básicos como a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência contra a opressão; é o resgate de valores essenciais e superiores à existência humana.

Apenas a partir da segunda metade do século XX a razão jurídica passa a ser vista juntamente com a razão ética, ou seja, fundada na garantia da intangibilidade da dignidade da pessoa humana, na aquisição da igualdade entre as pessoas, na busca efetiva da liberdade, na realização da justiça e na construção de uma consciência que preserve integralmente esses princípios.156

Portanto, somente com o término da Segunda Guerra Mundial (1945) a dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecida expressamente nas Constituições, notadamente após ter sido consagrada pela Declaração Universal da ONU de 1948. José Joaquim Gomes Canotilho, em face da positivação da dignidade nas constituições diante das experiências históricas dá como certo que:

a dignidade como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Conclui, então, que a República é uma organização política que serve o homem, e não é o homem que serve os aparelhos político- organizatórios.157