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Um útil conceito de dignidade da pessoa humana

A PROTEÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

2.4 A dignidade da pessoa humana e os direitos sociais

2.4.2 Um útil conceito de dignidade da pessoa humana

O conceito de dignidade humana encerra múltiplas concepções e significados; seu sentido foi sendo desenhado no curso da história, mas, como valor, preexistiu sua descoberta pelo homem por ser ínsita à própria natureza humana. Em verdade, o homem nunca esteve despido de dignidade, muito embora não a reconhecesse, como atributo ou qualidade inata a pessoa humana, ou, ainda, quando as circunstâncias históricas oprimiram a humanidade.

No léxico, a palavra dignidade, advinda do latim dignitate, dignitates, representa cargo e antigo tratamento honorífico; função, honraria, título ou cargo que confere ao indivíduo uma posição graduada; autoridade moral, honestidade, honra,

155 MARTINS-COSTA, Judith. Os Danos à Pessoa no Direito Brasileiro e a Natureza da sua

Reparação In A Reconstrução do Direito Privado, pp. 408-409.

156 Nesse sentido SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais

na Constituição Federal de 1988, p. 32.

respeitabilidade, autoridade; decência e decoro, respeito a si mesmo, amor-próprio, brio, pundonor.158

Significa, outrossim, a prerrogativa decorrente de um cargo eclesiástico, quando empregada em direito canônico. No sentido comum, é a qualidade moral da pessoa, suporte da boa fama em que ela é conceituada.159 Alexandre de Moraes considera a dignidade como:

Um valor espiritual e moral inerente à pessoa que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se num mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.160

Mesmo ante a variedade de significados, ressalta-se a qualidade moral que infunde respeito; consciência do próprio valor; honra, autoridade, nobreza.161 Nesse sentido:

Esse imperativo estabelece na verdade que todo homem, aliás, todo ser racional, como fim em si mesmo, possui um valor não relativo, mas intrínseco, isto é, a dignidade. O que tem um preço pode ser substituído por alguma outra coisa equivalente; o que é superior a todo preço e, portanto, não permite nenhuma equivalência, tem uma dignidade. 162

Ao conceituar dignidade, Maria Helena Diniz sustenta: “na linguagem filosófica, é o princípio moral de que o ser humano deve ser tratado como um fim e nunca como um meio”.163 E, para Giselda Hironaka, o valor representativo da dignidade não é qualquer valor, mas um valor específico que compreende a

158 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,

Vocábulo “dignidade”, p. 589.

159 Enciclopédia Saraiva de Direito, Vol. 25, p. 38. 160 Direito Constitucional, p. 16.

161 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, p. 1040. 162 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, vocábulo “dignidade”, p. 893. 163 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico, p. 133.

autodeterminação consciente e responsável, e em razão disso capaz de pretender o respeito dos demais.164

Mas, é fato notoriamente reconhecido e atribuído ao filósofo Immanuel Kant fundar o conceito de dignidade como acreditado hoje na filosofia ocidental, e irradiada para outras áreas do conhecimento e da vida prática, como o Direito, por exemplo.

Ao apresentar a pessoa humana como condição transcendental de possibili- dade, partindo de sua compreensão consoante a qual a autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres que lhes correspondem, Kant completa o processo de secularização da dignidade abandonando, no entanto, sua dependência do sagrado. Kant considera que o homem não é apenas condição transcendental de possibilidade do conhecimento, mas por possuir a razão e a liberdade165 só o homem é capaz de estabelecer a sua autonomia moral, isto é, de determinar-se a si próprio em conformidade com as leis a que deve obedecer. Daí, um dos seus imperativos categóricos: “Age em conformidade apenas com a máxima

que possas querer que se torne uma lei universal”.166

Em razão dessa autonomia moral, o homem existe como fim em si, e não apenas como meio, do qual esta ou aquela vontade possa dispor a seu talante. A relação entre o que é meio e o que é fim é bem ilustrada por Kant e corretamente explicitada em uma de suas obras:

Os seres, cuja existência não depende precisamente de nossa vontade, mas da natureza, quando são seres desprovidos de razão, só possuem valor relativo, valor de meios, e por isso se chamam coisas. Ao invés, os seres racionais são chamados pessoas, porque a natureza deles os designa já como fins em si mesmos, isto é, como alguma coisa que não pode ser usada unicamente como meio, alguma coisa que, conseqüentemente, põe um limite, em certo

164 HIRONAKA, Giselda. Responsabilidade Pressuposta, pp. 167-168. 165 Conforme explica Mi

guel REALE a liberdade para KANT é atributo inato: “A concepção de Kant é

dominada pela idéia de que o homem é um ser que desde o seu nascimento possui um direito inato, o direito de liberdade. Kant, contrário a todos os inatismos, admite no homem algo de inato – a liberdade. Ser homem é ser livre, existindo no homem, portanto, o poder de acordar o seu arbítrio com o dos demais, segundo uma lei geral de liberdade”. REALE, Miguel. Nova Fase do Direito Moderno, p. 61.

166

Assim KANT afirma: “Via-se que o homem estava ligado por seus deveres a leis, mas não se

refletia que ele só está sujeito à sua própria legislação, e portanto a uma legislação universal, e que não está obrigado a agir senão conformemente à sua vontade própria, mas à sua vontade que, por destino da natureza, institui uma legislação universal.” KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 37.

sentido, a todo livre arbítrio (e que é objeto de respeito). Portanto, os seres racionais não são fins simplesmente subjetivos, cuja existência, como efeito de nossa atividade, tem valor para nós; são fins objetivos, isto é, coisas cuja existência é um fim em si mesma. (...) Se todo valor fosse condicional, e portanto contingente, seria absolutamente impossível encontrar para a razão um princípio prático supremo. 167

Nessa linha, Miguel Reale faz a seguinte leitura sobre Kant:

Devemos a Kant o reconhecimento de que o homem, enquanto homem, mesmo tomado como simples possibilidade de realizar-se na sociedade e no Estado, já possui um valor infinito, sendo condição de toda a vida ética, da jurídica inclusive. Longe de ser vazio de qualquer conteúdo, o conceito kantiano de pessoa assinala a validade e a situação do homem no cosmos. Imerso no mundo das coisas sensíveis, mas, apesar de tudo, superior a ele, por abrangê-lo com o seu pensamento, o homem põe-se como personalidade, sujeito a uma ordem que não é a ordem das coisas mesmas. Como tal, a personalidade é liberdade, é independência em relação ao mecanismo de toda a natureza, sendo, assim, o homem um ser pertencente a dois mundos que nele se tocam, o mundo profano que nos oprime e o mundo moral que nos emancipa.168

Na acepção deste autor, o homem é o valor fonte de todos os valores, ou a “fonte dos valores”, e é assim porque é inerente ao homem, é sua essência valorar, criticar, julgar, tudo aquilo que é apresentado, seja no plano da ação ou do conhecimento. E isto implica na existência de uma relação íntima e direta entre a noção de pessoa e concretização dos valores que lhe são inerentes.169

Voltando a Kant, dentre seus imperativos categóricos o que melhor expressa a dignidade da pessoa humana, traduzindo a igualdade quer dizer: “Age de tal maneira

que trates a humanidade na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio”.170 Ingo Wolfgang Sarlet, ponderando sobre este silogismo, constata:

Construindo sua concepção a partir da natureza racional do ser humano, Kant sinala que a autonomia de vontade, entendida como faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos

167 KANT, Immanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes, p. 37. 168 REALE, Miguel. Nova Fase do Direito Moderno, p. 61.

169 Teoria Tridimensional dos Valores: situação atual, p. 80. 170 CHAUÍ, Marilena de Sousa. Convite à Filosofia, p. 347.

seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade humana. 171

É justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica identifica as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa humana.

No dizer de Jaques Maritan cada ser humano é portador de uma personalidade humana, e, para a existência de uma civilização digna, deve-se respeitar a dignidade de cada pessoa humana. Ademais, para que os direitos da pessoa humana sejam resguardados, bem como preservada sua liberdade é necessário ter em mente ser a pessoa humana não apenas uma porção de matéria, um elemento individual da natureza como um átomo, mas um indivíduo dotado de inteligência, vontade e espírito, muito mais valioso que todo universo material, pois corresponde à raiz da personalidade.172

A dignidade da pessoa humana deve ser considerada qualidade intrínseca e distintiva, reconhecida em cada ser humano, fazendo-o merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando num complexo de direitos e deveres fundamentais asseguradores da defesa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, com o escopo de garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.173

Portanto, embora exista grande controvérsia acerca do conteúdo e conceito da “dignidade humana”, a princípio basta entendê-la como qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano e, assim, a proteção à dignidade da pessoa constitui-se em meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito.

Tamanhas são a amplitude e essencialidade do princípio da dignidade da pessoa humana, que se irradia para e sobre os princípios fundamentais, a evidenciar que não poderá ser substituída, porquanto é detentora de um conceito superior ser

171 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição

Federal de 1988, p. 63.

172 Os direitos do homem e a lei natural, p. 12.

173 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na

aplicado em toda e qualquer sociedade independentemente do grau de civilização. Observa Ingo Wolfgang Sarlet:

Nesta linha de entendimento, parece situar-se o pensamento de Dworkin que, ao sustentar a existência de um direito das pessoas de não serem tratadas de forma indigna, refere que qualquer sociedade civilizada tem seus próprios padrões e convenções a respeito do que constitui esta indignidade, critérios que variam conforme o local e a época.174

Logo, compreender embora minimamente o conceito de dignidade da pessoa humana é tarefa necessária e, cumprida, permite que se compreenda também as razões de sua positivação no ordenamento jurídico brasileiro, e todas as implicações pelas quais terá na implementação efetiva dos direitos sociais. Nesse sentido, José Afonso da Silva consigna:

A Constituição de 1988 não promete a transição para o socialismo com o Estado Democrático de Direito, apenas abre as perspectivas de realização social profunda pela prática de direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana.175

Útil é o conceito de dignidade da pessoa humana então delineado, pois permitirá compreender a real importância e necessidade da efetivação dos direitos sociais, essencialmente por meio da assistência na proteção aos desassistidos.