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Razões e Modelos de Mensuração da CT&I

CAPÍTULO 2 A Recente Onda dos Indicadores de Inovação

2.1. Razões e Modelos de Mensuração da CT&I

Diante do questionamento acerca do porquê de se quantificar a CT&I, é possível elencar sucintamente três razões que justifiquem tal mensuração (VIOTTI, 2003). Primeiramente, é possível falar de uma razão científica, relacionada com a busca pelo entendimento dos fatores que estão por trás dos processos que envolvem as interações no âmbito da CT&I. Em segundo lugar, pode-se falar de uma razão política, relacionada com as necessidades e possibilidades de utilização dos indicadores de CT&I enquanto instrumentos para a formulação, acompanhamento e avaliação de políticas públicas. Por fim, podemos falar também de uma razão pragmática, associada ao uso dos indicadores de CT&I enquanto ferramentas que auxiliam na definição e avaliação das estratégias tecnológicas das empresas, bem como na orientação e legitimação das ações dos atores envolvido com a CT&I.

Para além das razões de mensuração, é também importante ter em mente, tal como já amplamente discutido no capítulo anterior, que a definição dos indicadores é precedida pela realização de determinadas escolhas relacionadas à relevância e ao papel das variáveis, o que reflete algum modelo de compreensão da natureza dos processos de produção, difusão e uso de CT&I (VIOTTI, 2003). Assim, cada uma das etapas de construção conceitual-metodológica de um determinado indicador se apoia, implícita ou explicitamente, sobre um modelo de concepção da realidade a ser mensurada (BARRÉ; PAPON, 1993). É possível apontar, grosso modo, três modelos de compreensão da inovação que historicamente tem fundamentado a construção conceitual-metodológica de seus indicadores.

O modelo pioneiro teria sido o modelo linear de inovação, segundo o qual existiria uma relação direta entre as quantidades e qualidades dos insumos utilizados em pesquisa, especialmente em pesquisa básica, e os resultados destes em termos de inovação

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tecnológica e, de maneira geral, desenvolvimento econômico e social (STOKES ([1997] 2005). Stokes ([1997] 2005) faz uma análise histórica da gênese dessa estrutura de concepção da relação entre ciência básica e inovação tecnológica. O autor recua até o ano de 1944, quando o diretor do Office of Scientific Research and Development (OSRD), Vannevar Bush, começou a produzir, sob demanda do Presidente Franklin D. Roosevelt, um relatório estabelecendo uma visão de como os EUA poderiam manter seu investimento em pesquisa científica quando a Segunda Guerra Mundial tivesse acabado. O relatório foi concluído no ano de 1945 e entregue ao recém-empossado Presidente Harry S. Truman com o título Science, the Endless Frontier.

A visão da ciência básica e de sua forte relação com a inovação tecnológica apresentada por Bush se tornou, então, o alicerce da política de C&T norte-americana para as décadas posteriores à guerra, alcançando posteriormente influência em nível global. Segundo Stokes ([1997] 2005), as razões para a profunda influência desse relatório estão menos em seu detalhado projeto de política científica do que no seu esquema conceitual para pensar a relação entre ciência, tecnologia, inovação e sociedade. De acordo com ele, Bush havia resumido suas premissas em duas máximas a respeito da pesquisa básica:

1) A pesquisa básica é realizada sem se pensar em fins práticos; 2) A pesquisa básica é precursora do progresso tecnológico.

Assim, Stokes ([1997] 2005) argumenta que enquanto a primeira máxima de Bush fundamentou a versão estática do paradigma da política de C&T do pós-guerra (a criatividade da ciência básica seria perdida se fosse constrangida por um pensamento prematuro sobre sua utilidade prática), a segunda lançou as bases para a versão dinâmica deste paradigma (se a pesquisa básica for apropriadamente isolada de curtos-circuitos decorrentes de considerações prematuras sobre a sua utilidade, ela provará ser uma remota, porém poderosa, geradora de progresso tecnológico).

A imagem que veio a representar a versão dinâmica da visão do pós-guerra é a do modelo linear de inovação, segundo o qual a pesquisa aplicada e o desenvolvimento convertem as descobertas da ciência básica em inovações tecnológicas capazes de satisfazer toda a gama de necessidades da sociedade (STOKES, [1997] 2005). Deste modo, a

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sequência do modelo linear implica num movimento necessário e unívoco que vai da pesquisa básica à pesquisa aplicada e ao desenvolvimento, e em seguida à produção ou às operações, segundo a inovação seja de produto ou de processo. (STOKES, [1997] 2005). Atrelada a esta imagem também estava a noção de que aqueles que investirem em ciência básica obterão seu retorno em tecnologia à medida que os avanços da ciência forem convertidos em inovações tecnológicas (STOKES, [1997] 2005). Assim foi configurado um dos primeiros modelos de compreensão do processo de inovação.

Stokes ([1997] 2005), no entanto, observa que o contexto mutável da política científica e tecnológica tem colocado sob intensa pressão a ideia da pesquisa básica como um remoto gerador de progresso técnico. Três observações colocam em movimento a argumentação do autor:

1) Presume-se que os diferentes objetivos da pesquisa básica e da pesquisa aplicada tornam esses tipos de pesquisa conceitualmente distintos – enquanto a pesquisa básica procura ampliar o campo do entendimento fundamental, a pesquisa aplicada volta-se para alguma necessidade ou aplicação;

2) Presume-se que uma tensão inerente entre os objetivos de entendimento geral e de utilização aplicada mantém as categorias da pesquisa básica e da pesquisa aplicada separadas – uma determinada atividade de pesquisa pertencerá a uma ou outra dessas categorias, mas não a ambas, sendo pesquisa básica e aplicada empreendimentos diferentes, levados adiante por pessoas distintas;

3) A crença de que as metas do entendimento e do uso estão inerentemente em conflito e de que as categorias da pesquisa básica e da pesquisa aplicada são necessariamente separadas se encontra, ela própria, sob tensão com a experiência real da ciência – embora uma grande quantidade de pesquisas seja inteiramente conduzida com base em uma ou outra das metas do entendimento e do uso, alguns estudos de grande importância têm mostrado que as sucessivas escolhas da pesquisa são influenciadas por ambas as metas.

Abordando de uma perspectiva histórica o problema da precedência da ciência em relação à inovação tecnológica, Rosenberg ([1982] 2006) também argumenta que há muito

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foi reconhecida a influência de certas preocupações tecnológicas no crescimento do conhecimento científico, citando como exemplo o desenvolvimento por Pasteur da ciência da bacteriologia, a qual emergiu de suas tentativas de lidar com problemas de fermentação e putrefação na indústria vinícola francesa. Para Rosenberg ([1982] 2006), uma das consequências mais enganosas de se pensar a tecnologia como mera aplicação do conhecimento científico preexistente é que tal perspectiva obscurece um ponto extremamente elementar: a tecnologia é, ela própria, um corpo de conhecimentos a respeito de certas classes de eventos e atividades, o qual foi por muito tempo adquirido e acumulado de modo empírico e rudimentar sem qualquer embasamento científico.

É preciso, portanto, ter em mente que as relações entre a tecnologia e a ciência são muito mais interativas e dialéticas do que o mero determinismo científico do modelo linear de inovação implicaria. O paradigma de política científica e tecnológica do pós-guerra, que consistia, portanto, na visão estruturada do modelo linear sobre o papel da ciência básica na inovação tecnológica, passou então a ser fortemente questionado nas décadas finais do século XX, sendo submetido à intensas pressões e rigorosas revisões (STOKES, [1997] 2005).

Diante destas e de outras diversas críticas ao modelo linear, especialmente de estudiosos do fenômeno específico da inovação, elaborou-se posteriormente um novo modelo de compreensão do processo inovativo, intitulado modelo elo de cadeia (chain-

linked model). Os pais de tal modelo9, Kline & Rosenberg (1986), sublinham uma deficiência central no modelo linear: não existem vias de realimentação (feedback) no processo linear; isto é, não existem trocas de informação e de pareceres entre os atores do processo. Contudo, os autores salientam, estas formas de realimentação são essenciais para avaliar o desempenho, formular os próximos passos e estimar a posição competitiva dos atores, sendo tais atividades inerentes ao processo de inovação.

9 É forçoso reconhecer, porém, a retomada de elementos centrais da concepção schumpeteriana de inovação

pelo modelo elo de cadeia, de tal modo que seria mesmo possível dizer que o pai de tal modelo é, na verdade, Joseph Schumpeter. Em sua obra intitulada A Teoria do Desenvolvimento Econômico, Schumpeter ([1912] 1983) postula que não é parte da função empreendedora “descobrir” novas possibilidades, sendo que a inovação deve ser distinguida da invenção, uma vez que, enquanto não forem levadas à prática, as invenções são economicamente irrelevantes. Assim, segundo a visão schumpeteriana, são as empresas, e a atividade empreendedora, que estão no centro do processo de inovação, e não os pesquisadores e a atividade científica. Para maiores detalhamentos, cf. NELSON, [2000] 2006, Cap. 3.

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Além do mais, o modelo linear também parte do pressuposto de que o elemento central para a inovação é a ciência, quando, na verdade, é o projeto (design), no entender de Kline & Rosenberg (1986). Para eles, o projeto é fundamental para dar início às inovações, e processos de reprojeto (redesign) são imprescindíveis para alcançar o sucesso, uma vez que com os fluxos de realimentação as inovações vão tomando, de maneira incremental, as formas adequadas para sua ampla difusão e comercialização.

O ponto dos autores não é sugerir que a ciência é irrelevante, mas, sim, chamar a atenção para o fato de que a maioria das inovações é feita com conhecimento prontamente elaborado e disponível, sendo necessária a realização de pesquisa científica apenas quando este conhecimento à disposição não é o bastante para resolver determinados problemas. Frente a tamanhas deficiências, parecia imperativa a necessidade de elaboração de um modelo interpretativo sobre a relação entre ciência, tecnologia e inovação alternativo ao modelo linear.

No modelo elo de cadeia a empresa desempenha papel central, e não mais periférico, tal como ocorria no modelo linear. Nele a ênfase se dá sobre a concepção de que a inovação é resultado de um processo de interação entre oportunidades de mercado e a base de conhecimentos e capacitações das empresas, envolvendo inúmeros processos que não apresentam uma sequência claramente definida (KLINE; ROSENBERG, 1986). É importante frisar, todavia, que o modelo elo de cadeia não exclui o modelo linear, mas, sim, o incorpora numa cadeia mais complexa de relações que circundam o fenômeno da inovação. Tais relações não são unívocas ou lineares, e a empresa, bem como sua procura por mercado, está no centro do processo de inovação. Este modelo é caracterizado por possuir não um, mas cinco principais caminhos de atividade:

1) Caminho Central – tem início com o projeto e continua por meio do desenvolvimento e produção para o mercado;

2) Realimentação (Feedbacks) – esta via, na verdade, repete todas as etapas do caminho central e também reconecta as necessidades e usuários identificados na interação às possibilidades de melhoramentos de produtos e serviços durante as próximas etapas de projeto;

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3) Ligação entre Pesquisa e Atividade Inovativa – interação que caminha em múltiplas direções entre o caminho central, os domínios de conhecimento acumulado e a pesquisa científica, não restringindo esta à etapa de invenção, sendo que a relação ocorre primeiro com o estoque de conhecimentos, e, caso ele não seja suficiente, recorre-se à atividade de pesquisa;

4) Modelo Linear – representa os avanços científicos que culminam em inovações radicais;

5) Realimentação (Feedback) dos produtos de inovações para a ciência – representa a influência dos avanços produtivos, sobretudo tecnológicos, no desenvolvimento da ciência.

O modelo elo de cadeia tem como vantagem o fato de considerar conceitos extremamente importantes para o processo de inovação, como, de maneira mais explícita, as realimentações (feedbacks) e os projetos (designs), e, de maneira mais implícita, as incertezas e os ciclos de vida dos produtos. Contudo, como os próprios autores reconhecem, apesar de o modelo parecer o suficiente para ajudar a enxergar diversas dimensões relevantes e, neste sentido, ter significado um melhoramento considerável, sobretudo frente ao modelo linear, não se deve esquecer que, como todo modelo, este também omite vários detalhes constituintes da rica variedade inerente ao processo de inovação (KLINE; ROSENBERG, 1986).

Mais recentemente foi formulado outro modelo alternativo ao linear, embasado na abordagem dos sistemas nacionais de inovação, apontando que a compreensão dos processos de produção, difusão e uso de inovações deva abarcar a influência simultânea de fatores organizacionais, institucionais e econômicos, sendo tal modelo conhecido como modelo sistêmico (VIOTTI, 2003). Este modelo chama atenção para o fato de que as empresas não inovam de maneira isolada, mas, sim, num contexto de redes de relações diretas ou indiretas com outras empresas, com a infraestrutura de pesquisa pública e privada, com as instituições de ensino e pesquisa, com a economia nacional, com o sistema normativo e com um conjunto de outras instituições (VIOTTI, 2003).

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Os pais da abordagem dos sistemas nacionais de inovação10, Freeman (1987), Lundvall (1992) e Nelson (1993), embora não tenham inicialmente escrito em conjunto sobre o tema, fizeram vários importantes apontamentos em comum. Por exemplo, as ideias de que aquilo que aparece como inovação em nível macro é o resultado de um processo interativo que envolve diversos atores em nível micro, e de que muitas destas interações são governadas por instituições outras que o mercado (SOETE et al., 2009). Contudo, em termos de definição, cada um destes três autores sublinha aspectos diferentes dos sistemas nacionais de inovação, embora concordem com os elementos centrais, tais como a importância das instituições, das interações, da coordenação governamental e da influência histórica (SOETE et al., 2009).

Freeman (1987) enfoca a interação entre tecnologia, imersão social, crescimento econômico e seus ciclos de retroalimentação reforçando o sistema. Lundvall (1992) enfatiza os elementos que interagem na produção, difusão e uso de conhecimento novo e economicamente útil, os quais estão, em grande medida, enraizados dentro das fronteiras de uma nação. Nelson (1993), por sua vez, destaca as particularidades de arranjos de atores, incentivos e padrões colaborativos na elucidação da competitividade de uma nação. Obviamente, tais elementos de diferenciação acima apontados são apenas uma severamente limitada ilustração pinçada da complexidade dos trabalhos destes três autores. Porém, eles cumprem com seu papel de frisar a peculiaridade de cada um dos autores e a diversidade de possibilidades de uso da abordagem dos sistemas nacionais de inovação.

Resumidamente, é possível dizer, de acordo com Soete et al. (2009), que a literatura de sistemas nacionais de inovação tem conduzido a cinco importantes compreensões: i. a importância de um amplo conjunto de insumos ao processo de inovação que não apenas a P&D; ii. a importância das instituições e organizações; iii. o papel do aprendizado interativo conduzindo a uma perspectiva dinâmica ao invés de uma perspectiva estática alocativa; iv. o papel da interação entre agentes; v. o papel do capital social. Podemos ver

10 Mais uma vez é forçoso reconhecer a retomada, agora na abordagem dos sistemas nacionais de inovação,

das ideias de um autor pioneiro na discussão de sistemas nacionais em economia e que talvez pudesse ser considerado o verdadeiro pai do modelo sistêmico: Friedrich List. Em sua obra intitulada Sistema Nacional de

Economia Política, List ([1841] 1983) reconheceu o papel das interações sistêmicas entre ciência, tecnologia

e habilidades no crescimento econômico das nações, além do papel fundamental das instituições e da coordenação governamental no direcionamento do desenvolvimento nacional. Para maiores detalhamentos, cf. SOETE; VERSPAGEN; WEEL, 2009.

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que, de modo geral, o modelo sistêmico não apresenta discordâncias com o modelo elo de cadeia, mas, sim, representa uma expansão das variáveis a serem consideradas. Assim, do mesmo modo que o modelo elo de cadeia incorpora o modelo linear numa lógica mais complexa do processo de inovação, o modelo sistêmico incorpora o modelo elo de cadeia com a finalidade de abarcar a complexidade do fenômeno da inovação.

Após esta sucinta apresentação dos modelos de mensuração, faz-se necessário voltar o foco de análise para a trajetória histórica de evolução dos indicadores de CT&I, com atenção especial para o modo com que tais modelos forneceram fundamentação conceitual- metodológica para a produção de estatísticas e de indicadores de inovação. Antes, porém, apresentamos logo abaixo um quadro-síntese que procura condensar os principais elementos discutidos na presente seção.

QUADRO 2 - Síntese das principais características dos modelos de inovação

Modelo Linear Elo de Cadeia Sistêmico

Agente principal Instituições de pesquisa ou laboratórios Empresas Empresas em interação com instituições do sistema

de inovação Natureza do processo de inovação Inovação como um fenômeno ocasional Inovação como um processo contínuo e interativo Inovação como um processo social e sistêmico

Posição relativa da pesquisa

Pesquisa precedendo a

inovação

Pesquisa como uma forma de resolver problemas surgidos em

qualquer etapa do desenvolvimento da

inovação

Pesquisa como uma atividade num conjunto maior de determinantes da

inovação

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