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2. INFORMAÇÃO, CIDADANIA E DEMOCRACIA: COMUNICAÇÃO

2.2 Comunicação pública, da visão organizacional à perspectiva do cidadão

2.2.4 Realidade e desafios da comunicação pública

Com relação à imprecisão do conceito de comunicação pública, faz-se necessário mencionar que ela também se verifica na Constituição brasileira. O seu artigo 223 estabelece que a concessão, autorização ou permissão de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens devem observar o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal (CONSTITUIÇÃO, 1988). No entanto, Bucci (2008b) ressalta que, apesar de haver clareza sobre o que representa o primeiro, que é constituído por propriedades particulares de comunicação, voltados para o lucro, a Constituição não dá nenhuma pista acerca da distinção entre os dois últimos.

Em meio a esse vazio legal, o autor explica que se criou um senso comum entre os profissionais, que entendem que a comunicação estatal é a que “defende o ponto de vista do governo”, enquanto a pública é a que “dá voz à sociedade”. O autor rejeita peremptoriamente essa noção:

Os meios estatais não têm, não podem ter e não podem abraçar “pontos de vista” [...]. Não se pode admitir, sob nenhuma justificativa, que um lápis, uma impressora, uma ambulância ou um canal de TV do Estado não sejam administrados com critérios impessoais. O que é estatal, ora essa, também é público – obviedade que parece ter sido esquecida. Em matéria de comunicação pública, não pode haver dúvidas, o estatal deve ser entendido como uma subcategoria do público, ou seja; embora nem tudo que é público seja estatal, tudo o que é estatal só pode ser público (BUCCI, 2008b, p. 259).

A consciência dos profissionais dos veículos públicos quanto à necessidade de estes se voltarem para os interesses da sociedade foi constatada em diversas pesquisas, como em Queiroz (2007), em Bernardes (2010), em Sant’Anna (2009), em Koçouski (2012) e em Machado e Moreira (2005). Apesar disso, revelou-se que esses profissionais convivem com a ambiguidade ou hibridismo, consequência da convivência entre o interesse público e o interesse da instituição ou das autoridades do momento. Essa realidade faz com que o resultado do trabalho desses veículos só possa ser fruto das

negociações que se operam no dia a dia, o que, afinal, não é tão diferente do que ocorre nos órgãos de imprensa reconhecidos como tal.

Bucci (2008b) aponta uma questão que parece explicar a ideia de que os meios estatais teriam “de nascença a sina governista”. Segundo ele, o fato de os dirigentes desses meios serem indicados e demitidos pelos chefes dos poderes, a qualquer tempo, leva o senso comum a crer que as autoridades máximas dos poderes teriam “a prerrogativa de fazer gato e sapato dos meios públicos sob sua alçada” (BUCCI, 2008b, p. 260). Contudo, ele refuta essa percepção:

Ainda que nomeados pelos chefes dos poderes, nenhum dirigente de órgão público tem mandato para promover as autoridades ou as teses que atendam aos interesses da autoridade, o que configuraria uma afronta aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e da legalidade (BUCCI, 2008b, p. 260).

Brandão (2012) aponta diagnóstico negativo com relação a essa questão: “É inegável a influência explícita e direta da direção das instituições no direcionamento dos interesses de comunicação, deixando o interesse institucional superar o interesse público” (p. 13). Para superar tal situação, Bucci (2008b) defende que os dirigentes dos órgãos estatais de comunicação desfrutem de mais autonomia gerencial e tenham mandato fixo. Outro desafio da comunicação pública, apontada por Zémor (2012), que não se mostra muito diferente do que enfrenta o próprio Jornalismo, é a ausência de discussão e de participação que tornam o cidadão passivo face à oferta pública de informações.

A coisa pública tem pouca atratividade, e isso se agrava na medida em que ela é cada vez mais apropriada pelos especialistas de um mundo político- administrativo fechado sobre ele mesmo pela seleção, pela cooptação endogâmica, a acumulação e o prolongamento dos mandatos políticos (ZÉMOR, 2012, p. 230).

Ele sugere, então, ações que podem ser adotadas pela comunicação:

A comunicação pode propor os antídotos para banir as ideias preconcebidas e os jargões, para desenvolver a escuta social, multiplicar reportagens, operações de portas abertas – todas iniciativas que despertam o interesse imediato dos cidadãos e tornam mais acessíveis as instituições políticas, judiciárias e administrativas. A comunicação pode fazer também com que os cidadãos possam se associar aos processos de tomada de decisão (ZÉMOR, 2012, p. 230).

Além do desinteresse, tem-se ainda a própria falta de conhecimento dos cidadãos acerca das possibilidades de informação e de participação, como aponta Duarte (2012): “Hoje, as grandes barreiras em comunicação não são a falta de instrumentos ou

de informação, mas a dificuldade em ajudar o interessado a descobrir que ela existe, onde está, como acessá-la e como utilizá-la para aumentar seu conhecimento e sua capacidade de agir” (p. 67). Na visão do autor, os comunicadores públicos precisam, então, trabalhar na perspectiva dos seus interlocutores, orientando-se por meio de uma escuta ativa a fim de conhecer as características, interesses, expectativas e possibilidades do seu público. A escuta ativa, segundo ele, não é complicada, podendo ser feita por sondagens, monitoramentos de mídia, grupos de discussão, consultas sistematizadas, conselhos, ouvidorias e outras formas.

Ademais, vemos ainda uma falta de compreensão da sociedade a respeito da importância e do papel a ser desempenhado pelos veículos públicos. Tal fato pôde ser visto durante as mudanças promovidas na EBC5 por Michel Temer, em setembro de 2016, quando circularam visões favoráveis às ações do governo Temer, justificadas, sobretudo, pelos gastos excessivos com órgãos de comunicação considerados pouco relevantes em virtude da baixa audiência. Importante ressaltar que a imprensa comercial contribui com esse tipo de visão ao produzir matérias tratando dos gastos excessivos em comunicação pelo Estado, sem mencionar o papel exercido pelos veículos públicos, como fez a Folha de São Paulo, ao tratar da estrutura de comunicação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal6.

Outro aspecto fundamental, destacado por Matos (2012), diz respeito à indefinição do que seja o interesse público. Para a autora, a definição de parâmetros para a realização do interesse público teria um duplo objetivo: a definição da agenda de discussões e o enquadramento dos debates.

5 A despeito do desenvolvimento da pesquisa nesta área e das opiniões dos especialistas, em setembro de

2016, um episódio demonstrou, a nível nacional, que os veículos estatais ainda dependem da benevolência das autoridades do momento para garantir a sua “autonomia”. O governo de Michel Temer, logo que assumiu interinamente, após a aprovação do impeachment de Dilma Rousseff, ignorou a lei de criação da EBC – que determinava que seu presidente teria mandato de quatro anos e só seria destituído nas hipóteses legais ou se recebesse dois votos de desconfiança do Conselho Curador – e demitiu o então presidente da EBC, o jornalista Ricardo Melo. Após parecer do STF favorável ao retorno de Melo, Temer perpetrou seu tiro de misericórdia: por meio de medida provisória, o governo retirou da lei as restrições à exoneração do dirigente desse órgão, além de ter extinguido o seu Conselho Curador. “[...] o colegiado era formado por 22 integrantes, sendo 15 indicados por setores da sociedade civil, quatro pelo governo, um pelos funcionários e dois pelo Congresso (servidores da Câmara e outro do Senado), e tinha como responsabilidade definir o conteúdo veiculado com o objetivo de garantir diversidade na programação”. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/09/presidente-da-ebc-exonerado-recorre-ao- stf-para-tentar-voltar-ao-cargo.html>. Acesso em: 05 out. 2016. Vê-se, assim, que, na prática, muito falta para que a comunicação pública possa alcançar os ideais propostos pela teoria.

6 Ver em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/09/1816611-congresso-gasta-r-103-mi-e-mantem-

O interesse geral e a utilidade pública das informações que circulam na esfera pública são pressupostos da comunicação pública. Mas estes conceitos sofrem do mesmo problema indicado para a esfera pública: uma certa indefinição. Seria preciso estipular critérios objetivos para definir o interesse e a utilidade das informações trocadas pelos agentes. Do contrário, o debate público corre o risco de privilegiar questões que representem o interesse de um ou mais públicos específicos, desvirtuando, na origem, qualquer utilidade que se queira pública (MATOS, 2012, p. 53).

Tal definição coloca ainda outro desafio para a comunicação pública: “como estipular procedimentos que garantam e preservem a liberdade de expressão, capazes ao mesmo tempo de orientar o debate a partir do interesse e da utilidade pública” (MATOS, 2012, p. 54). Segundo a autora, estabelecer regras ou critérios de publicização do debate público serve para evitar alguns riscos: de ver questões pontuais serem defendidas como gerais; de interesses particulares se arvorarem como públicos; de ocorrer a fortuita inflação do valor de algumas questões em detrimento de outras; de se privilegiar determinadas vias de compreensão e comportamento.

Apesar da sua importância, Matos (2012) aponta que, no Brasil, fez-se pouca ou nenhuma comunicação pública, nem nunca houve preocupação em estabelecer diretrizes nacionais na área. Ela defende, então, a criação de uma diretriz nacional de comunicação pública:

[...] comunicação pública é política de inclusão informacional. Através da comunicação, diminui o descompasso cognitivo. Produz-se e aloca-se conhecimento, a exemplo do que ocorre no mercado de bens e serviços. Portanto, é política pública para a democratização do saber (p. 56).

Compreendendo que todo conceito é uma construção e que, pelo que se viu, o de comunicação pública ainda não está consolidado, vê-se que diversos autores concordam que o interesse público é a chave do conceito de comunicação pública. Adotamos, então, tal perspectiva neste trabalho. Entendemos que esse ponto de vista é o mais coerente com o que se espera da prática do Estado e das suas obrigações para com a sociedade, ou seja, uma postura marcada pela impessoalidade, pela transparência e pelo respeito ao direito à informação dos cidadãos, princípios consagrados na Constituição brasileira.

A divergência conceitual em torno da comunicação pública apresenta-se na caracterização dos veículos do Executivo, do Judiciário e do Legislativo enquanto veículos públicos. Todavia, segundo Bernardes (2010):

[...] até mesmo os estudiosos do assunto obrigam-se a incluir no ramo da comunicação pública as emissoras de televisão dos estados (educativas),

legislativas e universitárias, além das comunitárias e dos veículos das instituições não governamentais e fundações (p. 223-224).

Para Bernardes (2010), as diversas modalidades de comunicação pública possíveis revelam que é possível uma convivência de ferramentas de comunicação institucional com a prática de uma comunicação pública, principalmente quando se trata de uma instituição tão complexa como o Parlamento. Assim, ao passo que se considera a existência de características de uma comunicação institucional no sistema de comunicação da Câmara, também se aponta uma aproximação com objetivos de uma comunicação pública. No próximo capítulo, tratamos sobre o caso da Câmara dos Deputados.

3. COMUNICAÇÃO NA CÂMARA DOS DEPUTADOS: TRANSPARÊNCIA X