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Da realização de si-mesmo

A obra escrita de C. G. Jung é luxuriante e enigmática como os fundos marinhos de um imenso oceano, aquele do inconsciente coletivo e das realidades arcaicas universais. No plano quantitativo, caso se queira considerar além das "obras completas" tradicionais a volumosa correspondência, encontramo-nos confrontados a um conjunto de mais de uma dezena de milhares de páginas! Eis, portanto, o resultado de um trabalho de pelo menos meio século de pesquisas. Este é, muitas vezes, constituído de textos de conferências destinados a públicos diversificados, artigos remanejados, posteriormente, muitas vezes com o objetivo de transformá-los em uma obra. Aliás, não deveríamos nos surpreender com a observação feita pelo filósofo Michel Cazenave (responsável pela tradução para o francês das obras de Jung para a editora Albin Michel) sobre esse assunto: "Jung escreveu tanto que temos a impressão de que nunca chegaremos ao fim de sua obra". Quanto ao pastor Bernard Kaempf, em seu livro sobre a reconciliação da Psicologia com a religião, evoca muito oportunamente que as próprias edições sucessivas de C. G. Jung conheceram vários remanejamentos, um pouco à maneira de sua torre de Bollingen, sobre a qual o mestre escrevia: "Depois de um certo tempo, eu

novamente experimentava um sentimento de incompletude. Mesmo sob essa forma, a construção me pareceu demasiado primitiva".

De qualquer modo, toda abordagem sumária da obra junguiana corre o risco de ser deformante, e não poderia traduzir essa ideia, aos nossos olhos, essencial, de processo de individuação que permite uma aproximação lógica com os mistérios, os mitos e os ritos arcaicos de iniciação do Homo religiosus, os quais têm laços prováveis com a iniciação maçônica e/ou gnóstica sobre a qual C. G. Jung tanto ouviu falar durante sua infância e sua juventude... Dessa forma, basta reler seu Commentaire sur le

mystère de lafleu d'or, ou então essa meditação

inspirada e tão bela que ele publicou primeiramente de forma discreta, à custa do autor e com tiragem confidencial, sem seu nome de autor, sob o nome Les sept sermons aux

morts, écrits par Basilide, à Alexandrie, la ville où l’Orient touche l’Occident, para ser persuadido

de que a abordagem maçónica de seus ascendentes muito o influenciaram em sua experiência tão pessoal do inconsciente. Aliás, C. G. Jung não esconde de forma alguma essa tutela da qual foi necessário se libertar, já que ele escreve em sua autobiografia: "Tenho a forte impressão de estar sob a influência (o itálico é nosso) de coisas e de problemas que foram deixados incompletos e sem respostas pelos meus pais, meus avós e meus outros ancestrais".

Evidentemente, para edificar, pedra após pedra, ao longo de sua vida de pesquisa, sua psicologia das profundezas, incluindo processos de individuação, o psiquiatra de Zurique jamais ignorou os rituais maçônicos. Muitas vezes, ele buscou essa união sagrada com o Cosmos, que faz com que, por exemplo, o Primeiro Vigilante de uma Loja Simbólica diga: "Assim como o Sol nasce no Oriente para iniciar sua carreira e romper o dia...".

Inegavelmente, C. G. Jung está bem próximo, por causa de seus parentes, poderíamos dizer, mesmo que ele faça poucas alusões a essas fon- tes, dos filhos da Luz, de suas circunvoluções, de

seus Catecismos contendo um ensinamento

simbólico inegável, que abrem o recipiendário a um longo processo de transformação individual, a uma paciente introspecção. Além do mais, ele sabe o que a Maçonaria deve à Alquimia. Ora, é justamente pela linguagem ancestral e simbólica da Alquimia que ele "ilustrará" seus diferentes conceitos de investigação das profundezas da alma. Para Jung, toda postura iniciática é gnóstica. É um avanço em direção ao co-

nhecimento. Dessa forma, C. G. Jung não está tão

distante quanto se pensa das concepções de um homem como René Guénon, o filósofo invisível. Com efeito, para Guénon, a postura iniciática autêntica visa a um melhor conhecimento de si- mesmo, uma revelação do sentido oculto do mundo, de seus ciclos. É uma busca de sínteses entre todos os símbolos significantes, a esperança de uma libertação metafísica do

homem. A via maçônica é originária da alta tradição iniciática; ainda que tenha sido muitas vezes deformada e aviltada, ela permite o acesso a um verdadeiro conhecimento transmissível, e, uma vez retirada a venda em plena luz ofuscante, o Aprendiz se engaja a começar a trabalhar a pedra bruta. E sua maneira de deixar a Luz descer sobre ele, o primeiro trabalho que o conduz a uma trilha balizada de símbolos, entre o Sol e a Lua, sob o olho único de Shiva, o Delta luminoso que o fixa com o olhar, ponto focal do viajante da alma que atravessa o deserto de si- mesmo para talvez encontrar ali as fontes invisíveis ainda vivas.

Nesse sentido, ao espírito do caminho iniciático dos Templos maçônicos corresponde o processo de individuação de Jung. Mas o que é então esse

processo de individuação já tantas vezes citado e

que, de alguma forma, oferece a direção da busca das profundezas? C. G. Jung escreve: "Emprego a expressão de individuação para designar o processo pelo qual um ser torna-se um 'indivíduo' psicológico, isto é, uma unidade autônoma e indivisível, uma totalidade". Ele também esclarece: "a via da individuação significa: tender a se tornar um ser realmente individual e, na medida em que compreendemos por individualidade a forma de nossa unicidade

mais íntima, nossa unicidade última e

irrevogável, trata-se da realização de seu Si-

mesmo naquilo que há de mais pessoal e de

mais rebelde a qualquer comparação". E cabe a Jung acrescentar, ao sintetizar seu pensamento:

"Poder-se-ia, portanto, traduzir a expressão de

individuação por realização de si-mesmo, realização de seu Si-mesmo".

A partir de então, a analogia entre individuação e iniciação é evidente, as duas posturas, com efeito, têm como alvo a realização de si-mesmo, quem poderia pretender o contrário? Se, para C. G. Jung, o indivíduo tem dois elos com o mundo, a percepção e a projeção, a individuação é evidentemente uma noção de evolução endógena, isto é, que tem sua origem no interior. Assim, ajudar um sujeito pensante, amante, sofredor e agente, a empreender resolutamente seu próprio processo de individuação, sempre significa, para um analista de inspiração junguiana, facilitar-lhe, de certa forma, a abertura "grande angular" de seu potencial evolutivo, de sua metanóia possível, ao ajudá-lo a discernir o fio condutor mais ou menos oculto que une suas percepções e suas projeções passadas e presentes. Significa também dar sentido ao aparente "nonsense" que entrelaça o real, o imaginário e o simbólico.

A individuação é também uma estrada simbólica para uma melhor elucidação de si-mesmo, uma escada de espeleólogo para visitar as grutas da alma. É igualmente um método de desdobramento, de exposição dos complexos que impedem às vezes o paciente de ampliar suas possibilidades de analisar suas reações, de apreender até mesmo o numinoso que carrega dentro de si. O analista, em seu consultório, desencadeando em seu paciente um processo de

individuação, pelo diálogo, pelo respeito aos silêncios que falam, pela confrontação dos suspiros ou às vezes dos olhares, pela associação de idéias e a imaginação ativa ou não, ajuda-o a se aproximar do Si-mesmo de que C. G. Jung fala. Mas atenção: como o próprio Jung exprime em uma advertência, o processo de individuação é muito frequentemente confundido com a tomada de consciência do Eu. O Eu é então "identificado ao Si-mesmo", "de onde resulta uma desesperante confusão de conceitos. Pois, a partir de então, a individuação não seria senão egocentrismo ou autoerotismo. Ora, o Si-mesmo compreende infinitamente mais do que um simples Eu... A individuação não exclui o universo, ela o inclui." Assim, o Si-mesmo é um conceito, um arquétipo central que deve ser bem apreendido para melhor compreender o que significa uma individuação em processo. O Si- mesmo é uma figura da totalidade psíquica. Na tipologia junguiana, ele é o objetivo do processo de individuação. Jung dirá a Richard Evans, um professor de psicologia da universidade de Houston que o entrevistava para um curta- metragem, em 1961: "O Si-mesmo é um termo que designa essencialmente a personalidade completa. A totalidade da personalidade humana escapa à descrição completa. O que está consciente pode ser descrito, mas não o inconsciente, porque o inconsciente, eu o repito, é sempre inconsciente, é realmente inconsciente. (Ninguém conhece o secreto do homem. Aliás, é isso que é interessante. O inconsciente do

homem guarda sabe-se lá o quê. Temos ainda muito para descobrir!)".

Arquétipo e símbolo da totalidade, com efeito, o

Si-mesmo, no entanto, não é, segundo a crença

de Jung, Deus. Ele diz que há uma "relação psicológica entre o Si-mesmo e Deus, o Si- mesmo é 'arquétipo da ordem interna' e 'sempre empregado nesse sentido, seja para significar o ordenamento dos diversos aspectos do Universo - isto é, um esquema cósmico -, seja para ordenar os diversos aspectos da psique". Eis então, na realidade, uma linguagem bem maçónica! Com efeito, que outra coisa procura um Aprendiz na Loja, no início dos trabalhos? E poderíamos adiantar então que o conceito do Si-

mesmo não está muito distante daquele de

Grande Arquiteto do Universo. Aliás, Jung ousa chamar o Si-mesmo de "Deus em nós", chegando até a evocar um "fogo central" de nossa participação no divino, aproximando essa expressão daquela de centelha de Deus, encontrada na Ode à alegria, do poeta Friedrich Schiller, que inspirou Beethoven em sua Nona

Sinfonia.

Para o psiquiatra Miguel Rojo Sierra, o "Selbst", que pode ser traduzido por "Si-mesmo", é o ponto central de todo indivíduo. Todavia, não se trata de uma simples referência como o centro de um círculo. É preciso antes se imaginar um centro "ativo", que "abarca todo o sistema psíquico na força de sua irradiação". O "Selbst" seria, portanto, uma certa evolução progressiva que chegou ao seu termo, resultado de uma

lenta e longa elaboração, viagem interior que desemboca em uma transformação absoluta, do começo ao fim, renovação da personalidade, acesso a uma "consciência nova" de sua singularidade e de sua liberdade profundas. Mas os convocados a uma tal reconversão do interior são inúmeros. Os eleitos, aqueles que o conseguiram, são raros, admitindo-se que um dia eles consigam! Ocorre que tanto a individuação quanto a iniciação maçónica devem ser vividas segundo um programa, com etapas, ferramentas, rituais, exercícios, um método global, seguindo conceitos precisos a elucidar, passo a passo, em cada um de nós. Os mais visitados conceitos junguianos, os de persona, de sombra, de anima, de animus, principalmente, podem então encontrar (ou reencontrar?) analogias no universo sagrado da Maçonaria universal. Da mesma forma, a mandala, tão questionada, não é mais somente uma palavra sânscrita que significa "círculo", ou um termo indiano que designa desenhos rituais de forma circular, mas

antes um yantra, um instrumento de

contemplação. Este, além das inúmeras variantes observáveis, guarda um "motivo de base" que é "a intuição de um centro da personalidade, isto é, de um ponto central no interior da alma, ao qual tudo se relaciona, pelo qual tudo é ordenado. Ela representa ao mesmo tempo uma "fonte de energia", explica C. G. Jung,27 que acrescenta: "A energia do centro se

manifesta na necessidade opressiva, quase irresistível, de tornar-se o que se é, à maneira

pela qual todo organismo deve a todo preço alcançar, pelo menos aproximativamente, a forma que corresponde ao seu ser. Esse centro não é nem sentido nem pensado como sendo o eu, mas, caso se possa dizer, como sendo o Si-

mesmo".

O Painel de uma Loja torna-se uma mandala, e toda a Loja iniciática, com seus símbolos vivos e seus pares de elementos contrários, que buscam e encontram um terceiro para reconciliá-los. Contudo, não vamos queimar as etapas do processo de individuação, por medo de ali se perder e de dispersar sua personalidade pelo caminho. Não nos apressemos por medo de perder um ou dois degraus da escada que conduz à pedra filosofal tão esperada.

Capítulo IV