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Transferência e libido

Depois da defesa de sua tese de doutorado, C. G. Jung segue em Paris os cursos de Pierre Janet no Collège de France, faz uma estadia linguística na

Inglaterra e volta para a Suíça em 1903, ano em que se casa com Emma Rauschenbach, filha de um industrial em boa situação financeira e com quem terá cinco filhos. Dessa vez, a via da individuação fica um pouco mais clara, Jung não é mais "uma folha oscilante ao sabor dos ventos do espírito" (sic). Indubitavelmente, ele aborda com muita energia uma outra fase de sua vida. Certo, ele ainda está no que mais tarde chamará a idade jovem, que, segundo ele, se estende da época que vem imediatamente após a puberdade até o meio da vida, por volta dos 35 ou 40 anos. Ele realmente aborda seu trabalho de individuação pessoal, enraíza-se no mundo externo, consolida, assim, pouco a pouco, sua situação social, ele encontrou sua vocação profunda (a Psiquiatria) e deixará bem claro que "compreender é minha única paixão. Mas também tenho o instinto do médico: gostaria de ajudar os homens".

O psiquiatra vive primeiramente em Burghõlzli com sua mulher. Ele é chefe de clínica de 1905 a 1909. Cria então um laboratório de Psicofísica,

cerca-se de pesquisadores ingleses e

americanos, trabalha nas experiências de associações de palavras sob a impulsão do professor Bleuler. Depois, ele se estabelece em 1909 em Küsnacht, às margens do lago de Zurique, em uma pitoresca casa construída sob encomenda. Ali, faz uma vasta clientela particular e centra sua vida em um objetivo: "o de penetrar o segredo da personalidade". Acima da porta de entrada de sua casa, coloca uma

inscrição significativa: "Chamado ou não chamado, Deus estará presente", como uma prova gravada de suas constantes preocupações em relação ao arquétipo do divino e aos problemas religiosos.

Foi em fevereiro de 1907 que C. G. Jung encontrou pela primeira vez, em Viena, Sigmund Freud, 17 anos mais velho do que ele. E, no ano seguinte, não somente aconteceu o Primeiro Congresso internacional de Psicanálise em Salzburgo, bem como C. G. Jung terminou De

l’impórtame du père pour la destinée de l’individu, que explicita o caso clínico de um

menino de 8 anos que sofre de incontinência urinária. A seguir, anota os comportamentos de sua própria filha mais velha, de 4 anos, em relação ao nascimento de um irmão (Conflits de

l’âme enfantine). Ele apresenta esse estudo, em

1909, quando efetua sua primeira viagem aos Estados Unidos, com Freud e Ferenczi, para o 20º. aniversário da Clark University, em Massachusetts. De fato, desde 1910, tanto Freud como Jung se entregam aos mistérios veiculados pelo religioso em geral.

Sigmund Freud, com Totem e Tabu (a partir de 1912), que percebe algumas analogias durante uma cura analítica entre esse ritual de ordem obsessional e aquele comportamento religioso, pensa que a religião constitui um terreno passível de aplicação da Psicanálise. Ele experimenta e elabora "seu" método com o estudo das questões relativas à civilização, entre outras. Ele revela uma resposta mítica, no início,

de fato, do complexo de Édipo. E S. Freud, a seguir, como se sabe, chegará mesmo a afirmar que a resposta religiosa não vale muito mais do que as defesas neuróticas, que religião e ilusão são análogas ao obsessional. E Freud não estava completamente errado, como sugere de forma humorada Michel Cazenave quando escreve: "Existem muitas pessoas, com efeito, que acreditam em Deus como um substituto de pai, e cuja crença, no final das contas, vem da neurose!".14

Em relação a C. G. Jung, a questão religiosa, e mais particularmente o problema da existência de Deus e a experiência em si de uma força transcendente, jamais deixarão seu espírito, ele que havia sido criado em uma meio familiar protestante bem rigoroso e onipresente. Em Ma

vie, pode-se ler: "Na família de minha mãe, havia

seis pastores, e não apenas meu pai era um deles, mas também dois de seus irmãos (...)". Mas bem cedo o jovem homem teve o desejo de largar todo dogmatismo redutor, toda fé simples e ingênua vinda do círculo familiar, ao extrair das observações de seus pacientes os conceitos fundamentais de "sua" futura clínica: individuação, inconsciente coletivo, Sombra,

persona, Si-mesmo, anima, animus, complexo,

imaginação ativa... De fato, Jung não deixou de aperfeiçoar suas pesquisas clínicas, ao longo de seu itinerario atípico, em busca de métodos de

14 Kacirek, Susanne. Jung-Freud, en deçà du grand schisme, un déni de filiation. Cahiers jungiens de psychanalyse, n - 98, verão 2000.

reorganização das dissociações frequentes da psique.

Quanto ao labirinto de sua relação tipicamente transferencial e contratransferencial com Freud, ele ainda hoje é objeto de comentários e de estudos apaixonados, uma vez que uma volumosa correspondência que continuará até 1914 oferece seu testemunho, muitas vezes de maneira espontânea e audaciosa.

Com efeito, as relações entre C. G. Jung e Sigmund Freud, primeiramente idílicas (em uma missiva que se tornou célebre, de 17 de janeiro de 1909, Freud até mesmo declarou a Jung: "Você será aquele que, como Josué, se sou Moisés, tomará posse da Terra prometida da Psiquiatria, que posso apenas perceber de longe"), depois tempestivas até a decepção afetiva e à ruptura, não pararam de surpreender. Mas, para além dessa relação conflitante entre Freud e Jung que se tornou mítica para as escolas de Psicanálise, pode-se perceber a diferença fundamental que opôs profundamente os dois exploradores do inconsciente. Com efeito, aos olhos do "místico" Jung, a libido é uma força vital, uma energia psíquica capital e não limitada. Esta não diz respeito somente às pulsões sexuais, infantis ou não, para satisfazer uma teoria qualquer, por mais brilhante que ela seja. É daí que nascerá a disputa profunda. Aí está o nó da discórdia entre Freud e Jung. E é principalmente após a publicação de Métamorphoses et symboles de la

libido, de Jung, em 1912, obra que queria

paciente americana a fim de compará-los aos mitos fundadores e coletivos da humanidade, que a ruptura entre Carl Gustav e Sigmund se mostrou inexorável. Mas tudo isso, certamente, não se desenvolveu, como se pode duvidar, em poucos meses. Foram necessários sete anos. Certo, Jung, no início de sua transferência, manifesta em relação a Freud uma espécie de paixão amorosa sobre a qual ele destaca até mesmo a origem mal recalcada quando escreve em uma de suas missivas: "minha veneração por você tem o caráter de um interesse apaixonado 'religioso' que, embora não me cause nenhum outro dissabor, é, todavia, repugnante e ridículo para mim por causa de sua irrefutável consonância erótica. Esse sentimento abominável vem do fato de que, ainda criança, sucumbi ao atentado homossexual de um homem que antes havia venerado" (sic). Mas Freud se rende ao charme e tem necessidade, ao que parece, de Jung para promover a psicanálise nascente. Ele pensa ter encontrado seu filho espiritual, seu sucessor potencial, ainda que bem rápido reconheça que Jung deseja dar ao termo "libido" um sentido mais amplo do que aquele que ele lhe dá. De toda maneira, as personalidades em presença, ambas geniais, são bastante diferentes. Todos os especialistas nesses dois mestres da Psicanálise são forçados a reconhecê-lo com todo rigor para além das querelas de escola.

Freud quer tudo abarcar, elucidar, prever em sua teoria psicanalítica construída sobre a base do

recalque. Quanto a Jung, ele não quer de forma alguma privilegiar tão cedo qualquer lugar teórico que seja. Ele se esforçará quase que obstinadamente para escapar das pressões do dogmatismo freudiano que vivenciará como um jugo digno de uma Igreja institucional. Alguns observadores chegarão até mesmo a afirmar que ele acabará por tomar de assalto, de certa forma, as defesas paranóicas de Freud, "um pouco como um filho 'psicótico' o faria contra um pai demasiado rígido" (sic). Outros autores, como Susanne Kacirek,15 evocarão, a propósito do

"grande cisma Freud-Jung", "uma negação da

transmissão paterna".

Seja como for, analisar o como e o porquê das importantes divergências, com ares às vezes dualistas, entre as intuições freudianas e as junguianas sobre a sexualidade, a religião ou os mitos em geral, não é de forma alguma, como se sabe, o objetivo deste presente livro... Muito maior é a nossa preocupação em saber - ou pressentir - como e de onde Jung foi extrair sua confrontação com o inconsciente, a Psicologia analítica que lhe é própria, isto é, uma maneira inédita de apreender a psique do homem em profundidade, um novo esquema ordenador, como diria Michel Cazenave, uma "nova ordem" como chegará a escrever Etienne Perrot. E é justamente essa palavra ordem que apenas pode nos reconduzir logicamente, pela simples asso- ciação de ideias, ao fato de que frequentemente

15 Kacirek, Susanne. Jung-Freud, en deçà du grand schisme, un déni de filiation, Cahiers jungiens de psychanalyse, ne98, veräo de 2000.

definimos a Maçonaria como uma Ordem, Ordem iniciática e tradicional fundada na fraternidade e que comporta três graus: Aprendiz, Companheiro, Mestre, cada grau tendo sua especificidade e respondendo a uma fase da consciência humana em seu desenvolvimento temporal, intelectual e espiritual. Essa definição, evidentemente, caso seja aprofundada, vai nos relembrar o processo de individuação, já evocado, mas também - por que não - a maneira quase esquemática pela qual Jung falará dos diferentes períodos de transformação da existência da pessoa que ele nomeava as idades

da vida, com, após um movimento que conduz

até o início da idade adulta, uma virada que se produz na "metade da vida".

Os primeiros anos da biografia de C. G. Jung nos confirmaram tudo o que ele devia ao Protestantismo rigoroso e, no entanto, ambíguo de seu círculo imediato. A esse respeito, a anedota do jovem Jung folheando o Catecismo "para ali encontrar algo além das bobagens habituais" é significativa. Sabe-se, com efeito, que, ao chegar no parágrafo sobre a Trindade, o jovem Jung pediu ao seu pai pastor alguns esclarecimentos sobre esse ponto e obteve a resposta derrotista: "... vamos deixar isso de lado, pois, verdadeiramente, não entendo nada sobre isso...".

Nem que fosse apenas pela filiação, também pudemos pressentir aquilo que C. G. Jung devia à ordem e à tradição maçónicas que seus pares (pais) respeitavam. Estes sem dúvida lhe tinham

dado o desejo, consciente ou inconsciente, de conhecer as interpretações tipicamente esotéricas dos símbolos que também são encontrados quando se estuda a Alquimia, símbolos amplamente utilizados por ocasião das "reuniões" na Loja, por exemplo.

Toda a obra polifônica de C. G. Jung terá sido uma espécie de incitação ao movimento de uma dinâmica transcendente de progressiva trans- formação que se tornou possível pelo estudo dos símbolos psíquicos do homem contemporâneo. Em comparação, toda postura iniciática da Ma- çonaria Especulativa só pode ser compreendida, em nossa opinião, pelo mesmo conhecimento dos símbolos em questão. Essa interpretação re- presenta a chave de tudo. Como então se surpreender com o fato de a linguagem simbólica da Maçonaria, que se revela com uma real coerência e instiga o indivíduo a dar sentido à ferramenta simbólica para além da ilusão das aparências oferecidas por sua forma imediata, sempre parece irmã gêmea ou prima dos conceitos junguianos mais conhecidos? Como esquecer também que nem a Maçonaria nem C. G. Jung não inventaram o simbolismo, mas que tanto a Ordem maçónica quanto a nova ordem da Psicologia analítica herdaram o código das tradições antigas como linguagem universal que une a imediatez ao passado e ao futuro? Paradoxalmente, é necessário, sem dúvida, vincular a última obra de C. G. Jung, Essai

d'exploration de l’inconscient, que é um dos

et ses symboles, trabalho coletivo supervisiona-

do por Jung, para melhor perceber as ricas perspectivas que a psicologia das profundezas abre ao nosso próximo século, e, principalmente, para compreender melhor os elos que unem talvez em um mesmo destino Maçonaria de amanhã e Psicanálise do futuro. À maneira de Raymond de Becker, que, ao redigir a introdução para a edição de 1964 de Essai d'exploration de

l’inconscient, pode escrever, em essência, que,

ao empreender uma tentativa de relação consciente com o inconsciente e ao visar à emergência do Si-mesmo, o processo de individuação de Jung "retira de maneira

definitiva a Psicologia do consultório médico" (sic). Adiantaremos aqui a hipótese de que C. G.

Jung retira igualmente, de uma vez por todas, o maçom de sua Loja devidamente coberta, de seu mais secreto segredo, e explica e recomenda além do mais, para todos, a empreitada iniciática. Em outros termos, chegou a hora de não mais manter em segredo os grimórios e os mitos ocultos, com as palavras de passe e as mandalas! Trata-se de abrir aos quatro ventos as portas do Templo, de expor em pleno novo século as imagens que os humanos se fazem de Deus, os processos simbólicos sem qualquer forma de julgamento. É por isso mesmo que ousamos escrever esta frase que, aliás, faz de nosso título não somente provocador: Jung é a

Capítulo XIII