6. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS: ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO
6.3. Recordar o passado como espaço fortalecedor do conceito de
A maioria dos profissionais de enfermagem referiu sentir-se muito bem
recordando o passado… e nas suas lembranças aparecem constantemente
referências de satisfação profissional, principalmente de como ter de trabalhar com
pessoas que viviam com HIV foi uma época muito importante na sua vida
profissional e pessoal… Muitos relembram que tudo aquilo por que passaram
contribuiu na construção de sua identidade.
A identidade profissional dos profissionais de enfermagem não se resume à
obtenção de um diploma de graduação em enfermagem ou ao simples ato de
exercer a profissão de enfermagem. Assim, falar da identidade profissional destes
profissionais significa falar do seu campo de atuação específico, daquilo que faz com
que seja reconhecido como tal pela sociedade (PEREIRA, 2006).
De acordo com Maia (1999), a construção da identidade profissional tem seu
ponto de partida em aspectos anteriores (vida pessoal), valores e conceitos que
dirigem suas próprias escolhas profissionais.
Ao ler as memórias dos entrevistados, constatamos que apesar de alguns
profissionais terem entrado na enfermagem por ´acaso`, na sua grande maioria, foi
uma escolha pessoal enraizada em vivências, gostos e desejos de infância, como as
Enfermeiras Maria Helena Bittencourt Westrupp e Betina Hörner Schlindwein
Meirelles e o Técnico de Enfermagem José Renato da Silva. Contudo, essa escolha
nem sempre foi bem aceita pelos familiares, mas o desejo de trabalhar nessa área
foi mais forte e fez com que lutassem e continuassem… até mesmo para
desmistificar preconceitos e estereótipos existentes, como podemos visualizar nas
seguintes falas:
[…] eu tive vontade de fazer enfermagem, mesmo contra a vontade do meu pai. […] Ele não aceitava muito bem a minha opção […] depois tinha bastante orgulho da profissão que eu havia escolhido (MEIRELLES, 2007). Eu me virei para o meu pai e disse “Eu quero fazer Enfermagem”. […] E aí o meu pai perguntou “Mas por que enfermagem e não medicina?” […] porque a enfermagem não era bem vista […] eu bati o pé e disse que queria fazer enfermagem e cursei enfermagem. E me realizei como profissional de enfermagem, muito (WESTRUPP, 2007).
O enfermeiro vai definindo a sua identidade (social, cultural e histórica) como
ser e trabalhador, no fazer constante e diário, no exercício de seu papel, na relação
com o outro e nas escolhas que realiza (NETTO; RAMOS, 2004).
De acordo com Maia (1999), o prazer é um aspecto significativo na vida dos
profissionais de saúde, seja referente ao processo de trabalho, seja referente à
repercussão que isso tem na totalidade da vida. Nas falas a seguir, podemos
verificar que trabalhar na enfermagem, e especificamente com doenças infecciosas
como a aids, foi uma fonte de prazer e de orgulho na vida de alguns profissionais, e
trouxe à tona várias emoções:
Eu sempre gostei de trabalhar no HNR. Inclusive, para mim, foi uma forma de vencer outras barreiras porque, na realidade, como eu era a única enfermeira no estado que trabalhava com aids, automaticamente também fui alçada a capacitar essas pessoas […] a aids entrou na minha vida […] Eu acho que foi muito bom na minha vida, não me arrependo de nenhum momento, eu acho que faria tudo de novo… (MEIRELLES, 2007).
Pessoalmente e como profissional, foi muito bom trabalhar com aids. […] Tenho certeza de que deixei um pedacinho de mim na enfermagem, contribuí como profissional e como pessoa, tanto para a área da enfermagem, como para a área da Saúde Pública de modo geral e para a sociedade. […] Sinto orgulho […] me sinto gratificada […] (WESTRUPP, 2007).
Eu me sinto assim, que eu acho que eu dei a minha parcela de cooperação […] (ESPÍRITO SANTO, 2007).
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Cada profissional lembra com emoção e com carinho a época em que
trabalhou no HNR, e mais especificamente, quando do surgimento da aids na
instituição. De acordo com Thompson (1992), recordar a vida é fundamental, pois
permite fortalecer a imagem de si mesmo e assim, a sua identidade.
Netto e Ramos (2004) afirmam que, é através do seu trabalho que o
profissional pode elaborar as suas escolhas e ser sujeito da sua vida, expressando-
se, realizando-se e aproximando a sua forma inteira e consciente.
Nas memórias de alguns profissionais, foi possível constatar que trabalhar
com pessoas com doença infecto-contagiosa, e especialmente, pessoas que viviam
com HIV não foi a sua primeira escolha. Contudo, com o tempo, com o
conhecimento adquirido e com a prática e convivência profissional, os profissionais
foram se adaptando e se identificando com esta área de atuação, tanto que as suas
escolhas ainda se mantêm e convergem para a aids.
Eu gosto de trabalhar aqui e sempre gostei. Eu fui convidado para trabalhar no Transplante de Órgãos quando foi implantado em Florianópolis e não quis […] Eu gosto de trabalhar com o público, eu gosto de atender, eu gosto de trabalhar aqui. […] eu gosto muito e daqui eu não saio por nada… só pra me aposentar! (GARCIA FILHO, 2007).
[…] na época que começou a aids, eles me convidaram para trabalhar com aids, mas no inicio eu resisti, resisti, resisti… […] E hoje eu trabalho lá na unidade e para sair de lá só quando me aposentar… eu gosto de trabalhar lá! (SILVA, 2007).
Pollak (1992) acrescenta que, a memória se apresenta como um elemento
constituinte da identidade uma vez que nela se expressa o sentimento de
continuidade e de coerência da pessoa na sua reconstrução de si, como podemos
ver a seguir:
Acho muito bom, a gente volta ao passado. […] é gostoso… é gostoso… […] é assim um dever cumprido […] (SPRICIGO, 2007).
Quando me procuraste eu fiquei… até disse à minha esposa, fiquei muito emocionado mesmo, porque ainda se lembram de mim […] Fiquei muito satisfeito mesmo, muito contente (ESPÍRITO SANTO, 2007).
Eu me sinto bem falando do passado, remexendo nas memórias. Tem coisa assim que emociona. A gente é ser humano… A gente recorda muita coisa… a amizade… (PÉRES, 2007).
De fato, nos sentimentos expressados e nas memórias dos profissionais de
enfermagem, podemos visualizar como as experiências vivenciadas no momento do
surgimento da aids influenciaram suas vidas e os ajudaram a constituírem a sua
identidade, como pessoas e como profissionais de saúde realizados.
Segundo Porto (2004), a identidade profissional da enfermeira constrói-se a
partir dos seus significados e tem como base as suas experiências pessoais,
familiares, socioculturais e profissionais, que perspassam toda a trajetória de suas
vidas. Assim, a noção de identidade também está associada à idéia de memória,
entendida como um sentido de continuidade e de permanência.
Algumas falas apresentadas anteriormente, mostram-nos também que a
identidade do profissional de enfermagem é construída na interação com os outros
profissionais, com os pacientes e com a sociedade em geral. De fato, Pereira (2006)
diz-nos que, a identidade profissional é construída a partir de uma identidade para si
e de uma identidade para os outros, ou seja, no auto-reconhecimento de si próprio e
no reconhecimento pelo outro. A construção da identidade profissional assenta ainda
no sentimento de pertença a um grupo profissional, com uma missão própria, com
características particulares e com o seu próprio âmbito de atuação.
Neste sentido, ao ler as memórias dos profissionais de enfermagem,
podemos verificar que todos possuem esse sentimento de pertencimento e
identificação profissional, quando enfatizam que gostam de trabalhar com pessoas
que vivem com HIV e, no caso dos entrevistados aposentados, se tivessem que
voltar a trabalhar, que gostariam de voltar a exercer as suas funções na mesma área
de atuação, ou seja, com aids.
Eu gostava muito de trabalhar na infecto […] se fosse pra eu trabalhar hoje eu escolhia o HNR e escolhia trabalhar na infecto […] Desculpa o meu comportamento de chorar assim, mas é que foi uma vida, foi uma vida, sabe… tem muitas recordações […] (PÉRES, 2007).