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Segmento 5 conversa de Carlos na aula do dia 28 de junho de 2017

5 AS AULAS DA DISCIPLINA DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS PARA

5.2 AS AULAS

5.2.4 Recursos linguísticos

Nesta subseção do Capítulo 5, abordo alguns recortes retirados dos Diários de Campo que ilustram as discussões envolvendo vocabulário, expressões e estruturas do português nas aulas. Os três alunos que cursavam a disciplina no semestre de 2017/1 tinham o espanhol como língua materna e muitas das discussões apontadas nas aulas eram pautadas por especificidades envolvendo a proximidade tipológica entre o português e o espanhol.

A vinheta a seguir ilustra dúvidas de diferentes ordens: grafia e pronúncia (“garantizar” e “som”); sobre o uso da conjunção coordenativa “e” ou “y”, indicativa de adição (“e”, em português, e “e” / “y”, no espanhol); sobre uso do “e” (conjunção) e uso do “é” ( terceira pessoa do singular do verbo er) e dúvidas quanto ao uso da conjunção coordenativa conclusiva “portanto” em comparação com o uso de palavras similares na grafia, como “por tantos/tanto/tantas”, marcadas pela preposição “por” seguida de pronome/adjetivo/advérbio/ substantivo, mas com diferentes implicações no significado:

Vinheta 15 - Grafia e pronúncia

[...] A primeira aluna a iniciar a leitura foi Ana Carina. Ao longo da leitura, a professora trouxe alguns apontamentos relacionados ao uso das palavras “garantizar” e “empezar”, empregadas no texto de Ana. Alunos e a professora conversam sobre a grafia correspondente em espanhol (‘garantir’ e ‘começar’) e sobre os significados no texto. Ana também faz uso do verbo ‘ser’ na terceira pessoa do plural, grafado como ‘som’. A professora levanta a questão da pronúncia desse verbo e diz que há também um substantivo ‘som’, mas que tem

um sentido diferente do verbo ser nessa conjugação. Outra questão apontada pela professora como sendo frequente no texto da Ana é o uso de ‘e’ e ‘é’. A professora apontar no quadro as diferenças de significado no emprego da conjunção ‘e’, no sentido de adição, e no emprego do verbo ‘é’. Ana Carina segue a leitura. [...]. Antes de voltar à leitura, Ana traz para o tópico o uso da palavra ‘portanto’ e ‘por tantos/por tantas’. Ela mencionou já ter visto as duas formas e não saber a diferença. A professora explicou, então, que ‘portanto’ é uma conjunção, que equivale à ‘todavia’, ‘em consequência’. É usado para dar uma ideia de costura sequencial no texto. Já ‘por tantas’/‘por tantos’ necessita de um substantivo posterior e sua concordância está atrelada a esse substantivo, em gênero e em número (Trecho elaborado a partir das anotações do Diário de campo do dia 26 de maio).

Os usos de contrações e de pronomes oblíquos no português também estavam entre as dúvidas recorrentes apontadas pelos alunos nas aulas. O trecho a seguir, retirado da aula do dia 17 de maio, explicita a abordagem de pronomes oblíquos na aula, a partir de exercícios

extraídos de um dos materiais listados na bibliografia: o livro

“Falar...Ler...Escrever...Português: um curso para estrangeiros”. Conforme já dito anteriormente, não havia, na disciplina, um material único a ser adotado e usado nos encontros como norteador para a abordagens de temas e conteúdos. Porém, havia alguns materiais mencionados na bibliografia disponível na ementa da disciplina, que poderiam ser acessados pelos alunos como um apoio às questões linguísticas, oferecendo um suporte para dúvidas da língua portuguesa, que, no contexto da disciplina de Português para Estrangeiros para fins acadêmicos, é uma língua adicional para os alunos ali matriculados.

Vinheta 16 – Atividades com pronomes oblíquos

[...] Carlos chega na aula (9h). A professora dá seguimento a uma atividade que havia sido solicitada anteriormente a ela pelos alunos, relacionada ao uso de pronomes oblíquos átonos e tônicos. Ana Carina chega na aula (9h15). As

atividades entregues aos alunos são parte do livro didático

“Falar...Ler...Escrever...Português: um curso para estrangeiros” e de outros materiais entregues pela professora. Eles envolvem o uso dos pronomes ‘a/o’, ‘- la/-lo’, ‘-na/-no’. Ana Carina menciona que, em muitos artigos acadêmicos que ela está lendo, há uma certa frequência de uso dos pronomes, e que ela tem dificuldades em retomar os referentes aos quais os pronomes se endereçam. Ela também diz que, no início do semestre, nas primeiras leituras, era ainda mais complicado para ela seguir o fluxo da leitura, pois, aos ler os pronomes nos textos, ela tinha que fazer uma pausa na leitura e confirmar a quem retomavam. Eles fazem uma pausa para o intervalo [...] (Trecho elaborado a partir das anotações do Diário de Aula do dia 17 de maio de 2017).

Em parte da aula, os alunos se envolveram na realização dessas tarefas voltadas especificamente para o trabalho com pronomes oblíquos. Esse assunto foi solicitado em aulas anteriores (“A professora dá seguimento a uma atividade que havia sido solicitada anteriormente a ela pelos alunos”), marcando uma definição de tópico que parece ter partido

dos alunos. Os comentários trazidos por Ana Carina reforçam a ideia de foco nos aspectos gramaticais que se fazem relevantes pela perspectiva dos alunos e que estejam sendo abordados a partir de um viés do contexto acadêmico no qual estão inseridos (“Ana Carina menciona que, em muitos artigos acadêmicos que ela está lendo, há uma certa frequência de uso dos pronomes, e que ela tem dificuldades em retomar os referentes aos quais os pronomes se endereçam. Ela diz também que, no início do semestre, nas primeiras leituras, era ainda mais complicado para ela seguir o fluxo da leitura, pois, ao ler os pronomes nos textos, a aluna tinha que fazer uma pausa na leitura e confirmar a quem retomavam”).

Uma das estratégias adotadas nas aulas para dar conta dos tópicos envolvendo gramática e léxico era a construção, individual, de um glossário, no qual cada aluno deveria tomar nota das palavras e expressões que lhes parecessem importantes. As anotações eram feitas aula a aula, a partir das conversas realizadas em sala. A vinheta a seguir ilustra como se dava a abordagem do glossário nas aulas:

Vinheta 17 - A abordagem do glossário nas aulas

[...] A professora perguntou se alguém teria mais um apontamento ou uma dúvida sobre o texto de Ana Carina. Não houve apontamentos, então, a professora perguntou aos alunos que palavras das discussões sobre o texto de Ana eles colocariam no glossário. Carlos sugeriu ‘investimento’, e disse que iria pesquisar mais detalhadamente sobre o uso dessa palavra. Ana sugeriu ‘são/som’ e o ‘portanto’ e ‘por tantos’. A discussão termina e a professora pergunta quem gostaria de ler. Carlos foi o próximo [...] (Trecho elaborado a partir das anotações do Diário da aula do dia 26 de abril de 2017).

Dentre outras discussões também propiciadas nessas aulas envolvendo o uso de recursos da língua na construção dos textos acadêmicos estavam a ordem das palavras e as possíveis implicações dessa ordem para o fluxo da leitura em um texto:

Vinheta 18 - A ordem das palavras e as possíveis implicações

[...] Após a leitura do primeiro parágrafo, a professora chama a atenção para a frase “O artigo é uma crítica que realiza o autor da atividade da pesquisa no Brasil, mas pode usar para os outros países da região”. Ela menciona o uso do pronome ‘da’ e ‘de’ e suas relações com o que se quer marcar na frase. Ela menciona também que Carlos poderia pensar em uma possível troca na ordem de alguns elementos da frase. Ela exemplifica uma possibilidade de mudança (“O artigo é uma crítica que o autor realiza sobre a atividade da pesquisa no Brasil, mas pode servir também para os outros países da região”), e pergunta a Carlos o que ele acha. Carlos concorda [...] ( Trecho elaborado a partir das anotações do Diário de Aula do dia 26 de maio).

Nas vinhetas a seguir, as discussões se dão acerca do uso do verbo lograr (que, na opinião da professora, era um vocábulo frequente usado pelos alunos da turma) e uma dúvida

que Ana Carina trouxe de uma conversa que teve com colegas de outra disciplina na universidade:

Vinheta 19 – A palavra ‘lograr’ e seus significados

[...] A professora também menciona que pode ser também pelo uso de vocabulários específicos que existem nas duas línguas, mas que têm significados diferentes em português, e dá o exemplo do verbo ‘lograr’, mencionando que já percebeu o uso desse verbo na fala dos três durante as aulas de Português para Estrangeiros para fins acadêmicos. Ela comenta que ‘lograr’ é bastante usado no Brasil com um significado negativo, o de ‘enganar’, e que em alguns casos, pode gerar problemas para o entendimento em uma conversa. Ana Carina demonstra-se surpresa com o sentido negativo do verbo, e diz nunca ter imaginado fazer essa associação [...] (Trecho elaborado a partir das anotações do Diário de Aula do dia 10 de maio).

Vinheta 20 – A palavra ‘cadeira’ seus significados

Ana encaminha para mais uma dúvida, e faz um relato de uma situação em que os colegas de uma das disciplinas que está cursando usam a palavra ‘cadeira’. Ana diz saber que, naquele contexto, não seria o significado de ‘objeto para sentar’, mas que ficou em dúvida sobre o que seria, de fato, o uso da palavra na situação relatada. A professora explica que ‘cadeira’ é usado em muitos contextos com o significado de ‘disciplina’ e traz o exemplo da disciplina de Português para Estrangeiros para fins acadêmicos. Ana pergunta se poderia, também, usar ‘aula’ (e menciona: “aula de Português para Estrangeiros para fins acadêmicos) e se poderia dizer que está fazendo três aulas neste semestre. A professora diz que, nesse último caso, não. Ela traz um exemplo de ‘a disciplina de Português para Estrangeiros para fins acadêmicos tem 60 horas/aula’ e ‘hoje tenho aula de Português para Estrangeiros para fins acadêmicos’. Maria chega na aula (9h) [...] (Trecho elaborado a partir das anotações do Diário de Aulas do dia 10 de maio).

A menção a palavras do inglês como recurso comparativo utilizado pelos alunos para pensar a grafia de palavras em português e em espanhol também apareceu em alguns momentos das aulas observadas. A vinheta a seguir aponta para a discussão acerca da grafia do verbo ‘demonstrar’/ ‘to demonstrate’/ ‘demostrar’:

Vinheta 21 – Estabelecendo padrões comparativos

[...] Os alunos trazem a palavra ‘demonstrar’ e comentam que, em espanhol, ela é grafada sem o ‘n’(‘demostrar’). Ana diz que é como o ‘mostrar’ e comenta que no inglês a palavra tem o ‘n’ também (‘to demonstrate’), assim como no português [...] (Trecho elaborado a partir das anotações do Diário de Aula do dia 26 de abril).

O uso da expressão “a gente” também foi um tópico abordado em mais de um encontro. A semelhança na grafia e a diferença nos significados envolvendo a palavra ‘gente’ gerou alguns estranhamentos, conforme mostram os trechos a seguir, retirados das aulas dos dias 03 e 10 de maio:

Vinheta 22 – ‘a gente’

[...] Os alunos se organizam para sair para o intervalo e Ana Carina comenta que ainda tem uma dúvida sobre o uso do pronome ‘a gente’. Maria e Carlos dizem que o uso é diferente do espanhol. Enquanto isso, a professora colocava no quadro as seguintes informações: ‘a gente = nós’ e ‘a gente = pessoas de um determinado local’. Com relação a esse último uso, Maria diz que achava que não ser possível falar de outras pessoas usando o ‘a gente’. Ana Carina pergunta se, nesse caso, seria melhor usar ‘o pessoal’. A professora parece concordar (com a cabeça) e disse que tudo vai depender do contexto de uso e menciona exemplos. Ana Carina disse que percebe também que as pessoas ‘aqui’ costumam usar muito o ‘gente’ para chamar o grupo. A professora comenta que sim, que nesse caso, também se tem o uso de “gente” como um vocativo, assim como a palavra ‘pessoal’ [...] (Trecho elaborado a partir das anotações do Diário de Aula do dia 03 de maio).

Na aula do dia 10, os alunos e a professora voltam a discutir o uso de “a gente” e a pensar sobre as diferenças de significados relacionadas a esses usos no português e no espanhol. As discussões dessa aula trouxeram um outro viés de discussão: a adequação do pronome “a gente” no contexto acadêmico, conforme mostra a vinheta elaborada a partir das anotações do Diário de campo do dia 10 de maio:

Vinheta 23 – ‘a gente’ novamente

Ana fala sobre sua segunda dúvida: o uso do ‘a gente’. Diz para a professora que, embora tenham conversado sobre isso na última aula, ainda não sabe o que fazer quando escreve o ‘a gente’, e pergunta: “A gente pensamos?”. A professora retoma no quadro, conjugando o ‘a gente’ na terceira pessoa do singular (‘a gente pensa’) e coloca também a frase ‘nós pensamos’. Ana questiona se o uso do ‘a gente’ em textos acadêmicos é também aceitável. A professora diz que, em alguns contextos, sim, e que é muito usado, principalmente, em apresentações orais. Ana encaminha para mais uma dúvida [...] (Trecho elaborado a partir das anotações do Diário de Aulas do dia 10 de maio).

Com relação às discussões apontadas acima, considero relevante mencionar que os tópicos abordados nas aulas não eram pré-estabelecidos, e também surgiam de necessidades relacionadas aos textos lidos em cada aula, de dúvidas específicas de uso que vinham de suas leituras e também dos textos que estavam produzindo no contexto acadêmico, de outras situações vivenciadas nas disciplinas que cursavam ou de contextos não relacionados à universidade. Assim como já salientado nas análises da subseção 4.3.2.3, acredito que, em muitas dessas conversas, haveria ainda oportunidade de aprofundar as reflexões acerca das escolhas linguísticas e das singularidades de cada produção.

Para discutir o uso de “a gente” em textos acadêmicos, pode-se, por exemplo, propor atividades de observação, não só em contextos orais, como os mencionados pela professora, mas também em textos escritos que se fizerem presentes nos locais em que os alunos circulam

na universidade. Esse olhar situado para espaços específicos, que envolve também indivíduos singulares, possibilita reflexões ampliadas sobre o uso do “a gente” e sobre entendimentos que apontem tal uso como associado a uma marcação de menos formalidade, a algo adequado ou inadequado etc.

O fato de estamos em uma sala de aula com alunos de três países que têm o espanhol como língua materna também os fez, em alguns momentos, compararem os usos diferenciados que uma mesma palavra tem nessa língua. Explorar esses momentos também contribui para uma percepção mais sensível de variedades dialetais (do português, do espanhol e de outras línguas faladas por eles) e de ver que a noção de mais ou menos adequado é sempre relativa, e precisa dar conta de um olhar ampliado que dialoga com o contexto de uso, com quem usa e com os propósitos desse uso.