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De acordo com Soares et al. (2010) as pessoas trans nem sempre contam com amplo apoio daqueles que lhes rodeiam ou do conjunto de pessoas que lhes são importantes, sendo comum relatarem histórias de preconceito, discriminação e distanciamentos de partes da rede social ou mesmo de quase a totalidade do grupo social. A rede social pode ser compreendida como a “teia de relacionamentos sociais que cada um mantém, incluindo relacionamentos mais próximos (tais como familiares e amigos íntimos) e relacionamentos mais formais (outros indivíduos e grupos)”. (GRIEP, 2003, p.12).

Silva e Cerqueira-Santos (2014) entendem a rede de apoio social como um importante fator de proteção durante toda a vida humana, podendo ser composta pela família, colegas de trabalho/escola/universidade, pares e comunidade, e que proporciona o apoio necessário para

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gerenciar situações consideradas adversas, proporcionando ambientes adequados ao desenvolvimento.

Para Soares et al (2010), essa rede social pode fornecer diferentes tipos de apoio e os seus efeitos benéficos dependem da necessidade e da expectativa dos indivíduos. De acordo com os estudos desses autores, dentre as funções de apoio social, destacam-se:

a) Apoio emocional ou compreensão e apoio b) Companhia social ou estar junto

c) Conversar e passear

d) Guia cognitivo e de conselhos ou expectativas e) Modelos e papéis

f) Ajuda material e de serviços ou colaboração g) Ajuda financeira

h) Atendimento e atuação de agentes de saúde.

Nesse sentido, considerando o importante papel que rede de apoio social pode exercer no processo de constituição da identidade transexual, o objetivo desta seção é identificar a o contexto no qual se construiu a rede apoio social durante todo o processo de transformação de Leona.

No âmbito familiar, a figura mais proeminente na rede social de apoio de Leona foi sua mãe, pois foi ela quem lhe forneceu muitas vezes apoio emocional e demonstrou compreender a identidade de gênero de Leona. Na narrativa de Leona, foi possível identificar que sua mãe a auxiliava a esconder de seu pai que Leona vestia-se com roupas femininas.

Aí eu saía de casa escondida por causa do meu pai. Aí minha mãe me ajudava. Então era cúmplice [sorriso] na situação. (...) Aí eu saía... tem até um fato engraçado...eu saía, colocava um roupão, saía, descia as escadas da minha casa, colocava o roupão atrás da porta, [risos], minha mãe vinha, recolhia [risadas] pra mim chegar, porque ela sabia que eu chegava de madrugada, né, porque geralmente eu saía em festas que eu ia, iam pela noite toda e eu voltava, e voltava escondida. (entrevista narrativa)

A mãe de Leona, foi também quem a incentivou durante seu processo de transformação de Leona, a buscar a ajuda de uma terapeuta e nas situações de preconceito que Leona vivenciou ao assumir o cargo de professora em Conselheiro Lafaiete, aconselhou-a a não desistir diante das práticas discriminatórias.

Aí ela, chegou e falou “calma, aí, você vai levantar e nós vamos levar essa vida aí.. que voltar pra casa você não vai poder voltar não” – mas, na verdade eu tinha

120 esperança de voltar – mas, ela falou assim “voltar, você não vai voltar não, mas você vai seguir o seu caminho sozinha, mas eu vou estar aqui pra te ajudar”. Aí, ela me acompanhou, e aí já foi mais tranquilo. Aí, com a presença dela, já foi mais tranquilo. (entrevista narrativa)

Teve reuniões bem pesadíssimas e aí, eu sempre querendo desistir e minha mãe falou: “Não! Você não vai desistir não! É seu e você não vai desistir não!” (entrevista narrativa)

O apoio social da mãe de Leona se deu também quando ela passou, após Leona ter ido morar sozinha, a realizar serviços domésticos para Leona.

Porque ela ia na minha casa, toda semana, fazer faxina, ela não deixava eu lavar roupa.. ou seja, ela me libertou, mas ao mesmo tempo ela não me libertou porque ela fazia tudo! Fazia eu ficar dependente dela! Ela ia na minha casa! Ela fazia comida... ela deixava comida pronta para mim. Ela trabalhava, sempre trabalhou! Levava minha roupa para casa dela e depois devolvia. (entrevista narrativa)

Percebe-se que a mãe de Leona ocupa um papel de grande importância nas dinâmicas afetivas da vida de Leona, principalmente por apoiar seu processo de transição em mulher trans. Sem dúvida, uma mãe com uma ação contrária poderia prejudicar muito o processo de socialização e trabalho de uma trans.

O círculo de amigos de Leona também possuiu grande importância em sua rede social, pois forneceram apoio emocional e social e, em especial uma de suas amigas que é transexual, além do apoio emocional e social, a orientava (guia de conselhos) e era um modelo para Leona.

Entre amigos, acho que não teve muitas [situações de preconceito] não. Na verdade, os amigos é que me acompanharam aí nessa transformação. (entrevista narrativa)

Então eu comecei, é... [pausa breve]. eu tinha uma vizinha em frente à minha casa e ela já era uma transexual... travesti, transexual [apresentação dos termos travesti/transexual como sinônimos]. E, eu a observava e até então, não tinha tanta vontade, mas assim, sempre observando né? (entrevista narrativa)

Então eu ficava sozinha. Aí eu fui pra casa de uma amiga, ela me recebeu super bem, mas, eu sabia que seria só durante um tempo... que eu tinha que procurar o meu rumo, vamos dizer assim. (...), fiquei sozinha na casa da minha amiga e eu devo muito isso a ela. E, essa amiga, e até então não era amiga, que era a transexual que morava em frente a minha casa, mas que nessa fase da minha vida já era amiga e me orientava, disse “olha, Leona, agora é a hora de você fazer a sua transformação”. (entrevista narrativa)

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A existência de uma vizinha transexual de Leona pode indicar que a presença de uma transexual pode orientar pessoas que não conseguem na família o aporte necessário para o processo de transformação. De forma idêntica, existe uma possibilidade de Leona, para outras pessoas, tornar-se também uma referência para as possibilidades das sexualidades.

Durante o processo de transformação de Leona, sua terapeuta33, também figurou em sua narrativa como um membro de sua rede de apoio.

Aí eu fui fazer terapia, tem isso também, que a terapia me ajudou muito nessa transformação. Quando a minha mãe viu, quando ela voltou e viu que eu estava totalmente estabilizada, vamos dizer assim, ela foi e falou assim, você vai procurar ajuda psicológica, aí eu procurei uma terapeuta que foi excelente nessa transição, e ela me deu toda a orientação... me fez voltar na minha casa...me fez superar todas aquelas dificuldades. (entrevista preliminar)

Aí chegou até na A34., que era a minha terapeuta e que aí deu uma guinada. Gastou lenço, tá? Muito lencinho, coitada! Aquela lá, sofreu [risadas]. O divã dela deve ter... porque foi complicado... Mas, ela me ajudou muito! Foi, assim, vamos dizer que viramos amigas, de certa forma. Eu pagava a consulta e tudo, mas era muita cumplicidade ali.... (entrevista narrativa)

Após a transformação de Leona, ela iniciou um relacionamento com o atual marido, cuja relevância na sua rede social emerge em sua narrativa, tanto lhe fornecendo apoio emocional, quanto lhe orientando, ou até mesmo fornecendo-lhe ajuda de serviços ou colaboração.

Com a chegada do [marido], as coisas ficaram mais fáceis também (entrevista preliminar)

Aí, o [marido] apareceu, acabou! [muitos risos]. Ela se libertou! Porque o quê que acontece: ela transferiu a responsabilidade, pra outra pessoa vamos dizer assim. Hoje em dia eu sei muita coisa. O [marido] me ensinou a fazer comida, uma coisa que ela nunca fez, vamos dizer assim. Ela não quis fazer isso e ele fez. Eu não sabia fazer nada! Meu fogão era maravilhosamente limpo [risos]. O botijão era só de enfeite! Aí, o [marido] chegou e acabou tudo! E ele falou assim, pera aí, você vai aprender a fazer comida agora... E eu fui [aprender] a lavar roupa... Aprendi, mas eu ainda, estou assim no processo! A máquina de lavar tá lá! [risos]. Você tá achando que eu lavo alguma coisa? [risos]. No início, eu colocava até a casinha do cachorro [risos].. aí quebrou.. [a máquina] a casinha do cachorro que eu tô falando é aquele travesseirão. Quebrou aquele trem do meio [risos]. Aí, eu comecei assim, tem que separar né? Tá abusando.. colocava meia, tapete, tudo junto lá... [risos]. Na hora de bater, ela saía andando [risos]. Tinha que segurar porque tinha que fazer tanto barulho! [risos]. Aí, hoje , em dia já tá melhor [risos]. Meu marido me fez fazer comida! Mas já sei fazer, lavar roupa, arrumar casa! (entrevista narrativa)

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Na narrativa de Leona, aparecem as figuras de duas terapeutas: uma quando era criança e outra durante seu

processo de transformação. Aqui, nos referimos à profissional que acompanhou todo o seu processo de transição.

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A rede de apoio social de Leona não é muito extensa, no entanto é formada por um grupo de pessoas que efetivamente contribuíram no seu processo de identificação. No âmbito familiar, seu apoio centrou-se exclusivamente na figura de sua mãe, uma vez que seu pai não aceitou a sua identidade de gênero e foi responsável por muitas das situações discriminatórias que Leona vivenciou. A depressão advinda da expulsão de casa pelo pai e a mágoa decorrente do evento foram situações que a desestabilizaram emocionalmente, mas que com o apoio de sua terapeuta puderam, de certa forma, serem solucionadas. O apoio em especial de uma amiga transexual exerceu papel preponderante na elaboração da identidade transexual de Leona, pois foi ela a principal incentivadora para que Leona iniciasse seu processo de transformação corporal. Além disso, após a expulsão de casa, foi essa amiga quem cedeu sua casa para que Leona, provisoriamente, se instalasse.

De acordo com Silva e Cerqueira-Santos (2014), dentre a ampla gama de grupos e indivíduos que possam proporcionar apoio e suporte social, uma das principais fontes é proveniente do meio familiar, uma vez que é nela que se formam os primeiros vínculos nos quais o indivíduo aprende a relacionar-se com o mundo e desenvolver laços de afeto. Além da família, segundo esses autores, outro elemento de considerável relevância constituinte da rede de apoio social trans seriam os relacionamentos amorosos. No entanto, no que diz respeito a estes, estudos apontam existir uma grande preocupação com o medo da descoberta da condição de pessoa trans e uma maior dificuldade, principalmente por parte daqueles que não passaram pela cirurgia de redesignação genital, como é o caso de Leona.

Nesse sentido, o marido de Leona no âmbito de sua rede de apoio social, exerceu um papel de apoio emocional importante, uma vez que assumiu publicamente sua relação afetiva com Leona, apesar dos preconceitos que também vivenciou e vivencia por relacionar-se com uma mulher trans.

4 – TRANSEXUALIDADE E EDUCAÇÃO: O QUE A ESCOLA TEM A VER COM