• Nenhum resultado encontrado

2.2 – TRANSIDENTIDADE NO SINGULAR, TRANSIDENTIDADES NO PLURAL

Porque na verdade, Rubens, essas nomenclaturas são um pouco complicadas. Mas é o meu ponto de vista. Porque definir exatamente até onde vai uma, até onde vai a outra é muito complicado! E, a cada ano vai aumentando. E o LGBT já virou LGBTTTT, não sei o quê... E, vai aumentando, porque é muito... vai abrangendo muita coisa...porque vai falando, ela é isso, ela é aquilo... é difícil [definir]. (Leona, entrevista narrativa).

41

De acordo com Seffner (2014), ao longo dos últimos 20 anos, tanto em âmbito nacional e mundial, as identidades de gênero e as identidades sociais passaram a ter uma acelerada visibilidade acompanhada de uma enorme produção de diferentes identidades. Todavia, apesar dessa multiplicidade de produção de posições de gênero e da sexualidade, no âmbito da luta política e do movimento social as identidades sociais podem ser muitas, porém temos apenas quatro mais reiteradas nos discursos no contexto brasileiro: gay, lésbica, travesti e transexual (é a partir dessas quatro identidades que vem a sigla mais representativa atualmente no Brasil, “LGBT”).

Apesar de serem percebidas como fazendo parte de um mesmo "universo homossexual", as travestis e as/os transexuais têm muitas especificidades na construção da identidade sexual e de gênero que precisam ser bem compreendidas. No campo acadêmico tem se produzido muitas definições. Todavia, pode-se indagar sobre as nuances destas definições e como elas dialogam com as definições do movimento trans. A seguir são apresentadas algumas dessas definições.

A visão do senso comum considera que tanto travestis quanto transexuais fazem parte de um grupo mais amplo, abarcando também homossexuais. Essa categorização incorre numa confusão entre o que chamamos de "orientação" do desejo sexual (com as "práticas sexuais" correspondentes: homossexualidade, heterossexualidade, bissexualidade) e as "identidades de gênero" (a percepção de si como homem, mulher, travesti, transexual). Ambas as categorias (travestis e transexuais) identificam a si próprias como mulheres, vítimas de um "erro da natureza", tendo nascido com um corpo trocado: alma de mulher em corpo de homem. A diferença entre elas seria que, para as transexuais, segundo a medicina, haveria o aparecimento precoce do sentimento de pertencer ao outro sexo e o desejo de fazer a cirurgia de "troca de sexo". (ZAMBRANO, 2006, p. 138).

Os estudos de Pelúcio (2006) e Santana (2016), definem como travestis as pessoas que nascem com o sexo genital masculino e procuram inserir em seus corpos símbolos do que é socialmente sancionado feminino, sem, contudo, desejarem extirpar sua genitália, com a qual, geralmente, convivem sem grandes conflitos. Via de regra, as travestis gostam de se relacionar sexual e afetivamente com homens, porém, ainda assim, não se identificam como homens homossexuais.

Embora as travestis, assim como as transexuais femininas, se considerem "mulher em corpo de homem", não se enquadram em todos os parâmetros de diagnósticos da medicina para a transexualidade. Elas também apresentam os códigos da feminilidade, porém é a sua apresentação em excesso, conforme algumas pesquisas, que confere a elas a identidade de travestis, tendo o seu glamour um sentido tanto de fantasia quanto de artifício (CORNWALL,

42

1994 apud ZAMBRANO, 2006, p. 138-139). Podemos questionar a generalização do excesso e do glamour, pois é uma afirmação que mais indica uma estereotipia do que uma característica de travestis, principalmente quando pensamos que existem travestis em contextos de violência, morte e processos de subalternização.

O sujeito transexual, para Vencato (2003, p. 201), “é a pessoa que nasce com um sexo anatômico, mas que se sente no corpo de outro alguém, desejando ter o outro sexo e, mesmo representando-se como pertencente ao sexo morfológico oposto àquele com o qual nasceu”.

Com bases nos estudos de Picazio, Vencato (2003) afirma que as pessoas transexuais sentem um desconforto enorme ao olhar para seus genitais, sendo que muitos não conseguem nem se lavar direito, não se tocam e não permitem que outra pessoa os toque. Entretanto, Bento (2006, p. 24-25) destaca que “a relação que esses sujeitos passam a estabelecer com suas genitálias pode variar da abjeção até o reconhecimento que fazem parte do seu corpo não se constituindo um problema”.

As transexuais, segundo Elizabeth Zambrano (2006), têm a necessidade permanente de provar que a sua "alma de mulher" provém desde o nascimento, característica que as colocaria dentro do diagnóstico de "transexualismo verdadeiro" legitimando as suas demandas frente às instituições médicas e jurídicas (cirurgia de transgenitalização e troca de documentação). Esse diagnóstico também alivia o peso das acusações sociais de conduta desviante. “A diferenciação reivindicada pelas transexuais em relação às travestis vem da necessidade de se separar da imagem de violência, marginalidade e prostituição comumente ligada a estas últimas”. (ZAMBRANO, 2006, p. 139).

Para Simone Ávila e Miriam Pillar Grossi (2012, p. 3), a transexualidade consiste na não concordância entre o sexo biológico e o gênero pelo qual uma pessoa deseja ser reconhecida socialmente. O/a transexual é aquele indivíduo que se identifica psicologicamente e socialmente com o sexo oposto. Embora possua todas as características físicas do sexo constante da sua certidão de nascimento, se sente como pertencente ao sexo oposto. Em síntese, o transexual masculino, é uma mulher vivendo em um corpo de homem e o feminino uma mulher em um corpo masculino (CARDOSO, 2008). Ainda que entendamos que esta representação coincida com a opinião de muitas transexuais, acaba por naturalizar as categorias homem e mulher.

Para Zambrano (2011, p.98), o “sujeito transexual descreve a si mesmo como pertencente a um gênero discordante do sexo biológico com o qual nasceu. Tem a experiência subjetiva de si mesmo como do sexo oposto a seu sexo biológico e quer viver socialmente de

43

acordo com essa convicção”. O transexual utiliza a própria subjetividade para construir e dar sentido a uma “identidade”, ainda que em desacordo com expectativa cultural da combinatória sexo/gênero.

Segundo a autora, a transexualidade é comumente associada a ideia de doença, uma vez que os indivíduos transexuais eram enxergados pela medicina como portadores de uma patologia – desde o diagnóstico criado por Harry Benjamin inicialmente, chamado de transexualismo, até a expressão contemporânea “Transtorno de Identidade de Gênero”, localizada no DSM9 V (2013).

Conforme Zambrano salienta, embora os critérios de diagnósticos sejam bem específicos, muitas pessoas que se consideram transexuais não se enquadram neles inteiramente: alguns não querem fazer a cirurgia de transgenitalização, outros descobriram-se tardiamente como transexuais, outros optam pela readequação corporal mesmo sem sentir “horror” ao próprio corpo. Tais constatações evidenciam que a experiência transexual é muito mais rica e complexa do que permite a visão médica.

Por isso, assim como o movimento gay fez com que em 1973 a homossexualidade deixasse de ser considerada uma doença pela Associação Americana de Psiquiatria, atualmente, é a transexualidade que passa por situação semelhante. As discussões sobre despatologização da transexualidade se intensificaram em virtude da STP, Campanha Internacional Stop Trans Pathologization – 2012 (STP 2012), uma campanha em curso que se mobiliza pela retirada das chamadas identidades trans (transexuais e transgêneros) dos catálogos internacionais de doenças: o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM V) e a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID- 10), da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Além disso, uma vez que o gênero difere da sexualidade do sujeito, é importante ressaltar que os sujeitos trans podem ser heterossexuais, bissexuais ou homossexuais,

"Gênero com o qual uma pessoa se identifica, que pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento. Diferente da sexualidade da pessoa. Identidade de gênero e orientação sexual são dimensões diferentes e que não confundem. Pessoas transexuais podem ser heterossexuais, lésbicas, gays ou bissexuais, tanto quanto as pessoas cisgênero" (JESUS, 2012, p.15).

Não obstante, deve-se considerar a forma como o sujeito se reconhece. Deve-se levar em consideração que “os termos transexualidades e travestilidades são polissêmicos, (res)significados pelos sujeitos, dependendo do contexto e das experiências vivenciadas,

9

44

evidenciando que múltiplos são os modos de ser travesti e transexual. (LONGARAY; RIBEIRO, 2016, p. 765)

Como “os entendimentos acerca das transexualidades e travestilidades são imbricados às diferentes e singulares maneiras de viver de cada sujeito e, por isso, são entendidos de distintas formas” (LONGARAY; RIBEIRO, 2016, p. 766), os sujeitos trans podem se reconhecer como travestis ou transexuais a partir de como se identificam, como se apresentam e entendem cada um desses termos a partir de suas experiências e vivências.

De acordo com Benedetti (2005, p. 16), “as múltiplas diferenças e particularidades vivenciadas por essas pessoas neste universo social não podem ser reduzidas a categorias ou classificações unificadas, pois estas, ao tornar equivalentes visões de mundo e identidades às vezes até antagônicas, podem ser arbitrárias”. Desse modo, não se busca, neste trabalho, apresentar uma definição única sobre o que é ser travesti ou transexual, até mesmo porque seria uma tarefa fadada ao fracasso.

Desse modo, nesta dissertação, se seguirá o entendimento proposto por Bento (2006), considerando como transexual, a pessoa que se identifica como tal e que busca reconhecimento de pertencimento a um gênero distinto do que lhe foi atribuído em função de sua genitália, uma vez que concordo que mais importante que buscar uma definição rígida para os termos travestis e transexuais, é entender como Leona enxerga cada uma dessas identidades e com a qual ela se identifica, considerando suas experiências e vivências.

Desse modo, indiferente de terem se submetido ou não às cirurgias de redesignação sexual, pois o que determina a condição transexual é como as pessoas se identificam, e não um procedimento cirúrgico, nesta pesquisa, são consideradas transexuais femininas ou mulheres transexuais, aquelas pessoas que se identificam e querem ser reconhecidas como mulheres, apesar de terem sido designadas como homens por terem nascido com a genitália masculina. No mesmo sentido, são considerados transexuais masculinos ou homens transexuais, as pessoas que se identificam e buscam ser reconhecidas como homens, ainda que designadas como mulheres em virtude de sua genitália feminina.

2.3 - OS VÁRIOS REFLEXOS NO ESPELHO: A DESCONSTRUÇÃO DA IDEIA DE