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Reflexão sobre o Fazer do Professor

No documento Paulo Eduardo Ferreira Machado (páginas 163-169)

4. A Natureza do Diálogo de Professores de Inglês com um Vídeo Didático

4.1. Tema: Reflexão

4.1.4. Reflexão sobre o Fazer do Professor

Outro subtema que emergiu da interpretação das unidades de significado foi a reflexão que os professores fazem a respeito do fazer do professor. Às vezes seus discursos se voltam para um professor outro, às vezes se voltam para suas próprias práticas.

Talvez esse subtema tenha surgido devido à minha própria inquietação a respeito do fazer do professor, principalmente com relação a assumir posturas ideológicas perante seus alunos. Minha visão quanto a esse assunto vem mudando e sempre procuro apreender de outros professores a concepção que

eles têm sobre essa seara. Arturo, por exemplo, parece ter uma visão bastante clara quanto a isso, como mostra o excerto a seguir:

Arturo: Julgar é de repente expor o teu ponto, é saber diferenciar. Isso é muito

particular meu, mas é saber diferenciar o certo do errado, mas não passar julgamento, no sentido, você tá fazendo coisa errada, direcionar a coisa. Mas mostrar pro aluno, olha, isso aqui é certo ou isso aqui é errado. Isso é julgar. Eu to julgando, pessoal, vamos ver, isso aqui é certo ou errado? Agora não simplesmente passar o teu julgamento. Falar, você ta errado, ou você ta certo. Tem uma divisão aí importante nisso. Eu vejo que professores devem sim mostrar pro aluno como talvez ele julgar, não simplesmente passar julgamento.

Paulo: Como julgar, você diz, como tomar partido, tomar posição, como analisar. Até

como uma defesa dele, né, dentro da deusificação da mídia, para que ele possa observar a mídia e dizer, tão querendo fazer minha cabeça.

Para Arturo, o professor deve esclarecer seu ponto de vista para os alunos. Acho bastante válida sua posição, ilustrada pelas expressões julgar e passar julgamento. Parece-me que, ao teorizar sobre o papel e a postura do professor, Arturo tem uma visão bastante dicotômica da vida. Não relativizar? Não me parece pertinente entrar, aqui, nesta seara de discussão, mas considero muito interessante esse assunto ter emergido em uma conversa sobre um vídeo que se chama Paradox, elaborado para uma aula de pronomes relativos, conforme o excerto abaixo:

Arturo: Então você fala assim: É relativo. Ela ta fazendo isso porque ela vivia mal.

Péra aí. Viver mal e fazer isso é uma coisa diferente da outra. Isso que eu to dizendo. Tem que saber o que é certo e o que é errado. Ao falar que é relativo, você ta simplesmente aceitando uma coisa que não poderia ser aceita. Ser relativo hoje, pra mim de certa forma é ter um discurso onde você não é... não é atacado. Se você fala: eu sou contra, ou sou a favor, vai vir bucha. O relativismo de muita gente a coloca numa situação de proteção. Acho que o professor, nesse ponto, deve assumir. Mostrar. Falar, isso aqui, talvez esteja errado. Eu penso assim. Isso aqui, pessoa, matar é bom? Lógico que não. A impunidade é um absurdo? É um absurdo. Isso é errado!

Paulo: Isso é assumir papel. É assumir a responsabilidade. Do próprio discurso.

Outra questão interessante que aflorou nessa conversa com Arturo foi a da posição do professor com relação à sua prática e sua abordagem. Mais que uma visão de ensino de língua estrangeira, acredito que a opinião expressa por Arturo envolve uma visão de educação, como mostra o trecho a seguir:

Arturo: Da abordagem! Olha, eu não... Eu sou professor de inglês, né, mas eu não sei,

eu acho que um professor de história pode sugar até a última gota disso aí. Muito mais do que eu. A língua é mais uma frente. Talvez... O peso maior ta no social, político. O professor de geografia, talvez ele possa ver, mergulhar muito mais profundamente que o professor de inglês.

Arturo entende que os professores de história e de geografia podem “sugar” mais que o de inglês a respeito da problemática social apresentada pelo vídeo. Essa afirmação encerra uma visão em que cada professor deve cumprir com sua área, sem invadir muito as barreiras marcadas pelas fronteiras entre as disciplinas. Com todas as abordagens que já surgiram em defesa da interdisciplinaridade e, mais recentemente, transdisciplinaridade, como forma de atuar e de fazer pesquisa, interpreto como questionável essa visão. Queremos ainda uma escola separada em disciplinas? No contexto da cultura da imagem, que a tudo representa, cabe ainda um papel para a escola calcado na divisão por disciplinas escolares? Isso, para Leonar e McLuhan (1972, apud Ferrès, 1996: 9), é uma escola que prepara os alunos para um mundo que já não existe.

Muitas vezes, fazemos pré-julgamentos a respeito da figura do professor, mesmo sendo professores. Aureliano diz que o professor que atua em um ambiente que ele chama de estruturalista vai precisar de um guia didático para utilizar Paradox, caso contrário se perderá:

Paulo: Ela pode ser evitada. Né? Uma estrutura mais elaborada...

Aureliano: Mas com a presença do professor. Eu não acho que ele sirva-se a isso

porque ele não tá quadradinho.

Paulo: Legal. Então você acha que o professor deve ser instruído nesse sentido? Aureliano: Se for para usar dentro da abordagem estruturalista num contexto mais

conservador acho, sim. Caso contrário eu acho que ele se perderá com o material que tem em mãos.

Paulo: Num contexto mais aberto c acha que não.

Aureliano: Não. Vamos deixar e ver o que emana disso aí.

Para Aureliano, um professor que atua em um contexto estruturalista não é capaz de ter uma visão crítica sobre um vídeo como este e perceber os usos que se pode fazer dele. No entanto, muitos de nós atuamos em ambientes conservadores, sem por isso perder nossa capacidade de análise. Curiosa essa posição de Aureliano, principalmente se considerarmos que o vídeo foi produzido e utilizado em um contexto conservador e, justamente nesse contexto, foram percebidos seus múltiplos usos, que não estavam nos objetivos iniciais do designer.

Caetana, por exemplo, atua em um ambiente conservador, que é o ensino regular da rede pública. É claro que o termo conservador carece de

definições mas, segundo a própria Caetana, o conservadorismo está inclusive na visão que os próprios alunos têm do que significa estudar inglês nesse contexto. Arturo, que atua em contexto análogo, tem uma abordagem bastante estruturalista em suas aulas. No entanto, Caetana prefere construir o conhecimento, até o currículo de suas aulas, a partir da interação e da contribuição dos alunos. Ela aponta para o fato de como a vida e a atividade profissional se misturam, ao dizer que nós, professores, sempre vemos aspecto didático e educacional no que nos cai nas mãos. Vê-se isso no trecho abaixo:

Caetana: Eu gosto do fator surpresa, a vida é cheia de surpresas, do ponto de vista

didático, parece que nós professores vemos aspecto didático educacional em tudo, penso que a sinopse apresentada por você auxilia o educador em seu trabalho pedagógico, o que você acha?

Paulo: Então a gente sempre, como professor, vê um uso pra um material. Nesse

sentido eu acho interessante, porque é uma mesma leitura do que se fosse um texto autêntico. É como se fosse um clipe qualquer, ou um curta-metragem, e você, I, como professora, falou, não, pera aí, isso aqui tem alguns elementos que podem ser interessantes para trabalhar com meus alunos nesse e nesse contexto. Foi mais ou menos assim?

Caetana: Foi mais ou menos assim que eu senti. Quando eu falo inclusive que as

imagens eu poderia usar em relação aos meus alunos do EJA, que foi o que eu citei no diário reflexivo dialogado com você em relação à fita, os meus alunos de EJA, por exemplo, eles têm uma representação de tentar ou mascarar ou deixar de... abandonar a sua própria cultura a sua própria origem por toda aquela representação de que você está em São Paulo e que você tem que ter características paulistanas.

A posição de Severo não se alinha com a de Arturo, no sentido em que, mesmo trabalhando em cursinho pré-vestibular, prevê utilizações múltiplas para o material. Porém, ao mesmo tempo, ele alerta para a necessidade de preparação do professor, e de uma abertura de espírito que o torne capaz de vislumbrar possibilidades para sua aplicação:

Severo: Contextualizado. Se você der esse material, vamos entender assim, não é que

existem, que eu sou melhor ou pior, mas se você der esse material pra um cara que não sabe trabalhar, o cara vai cagar no material. Aluno vai dar risada do peito da mulher. Vai acabar a aula, e o que podia ser um puta dum impacto, se perde. Então esse material, ele funciona, primeiro, porque ele tem um contexto todo da nação e quem ta trabalhando também vai ter que entender aquilo, e pra entender aquilo, Paulo, eu fui, porra, né, eu já tinha estudado Freud, eu fui reler umas coisas do Freud pra ver se eu tava falando merda em sala de aula. Paradoxo, vamos ver na física o que é Paradoxo, sabe, então apresentar o vídeo com a imagem, com a produção brasileira, com a imagem brasileira, na língua do globalizado, mas, também, já que é globalizado, pegar tudo o que envolve aquele minuto que tem ali. Então acredito assim, cê quer trabalhar com índio, você pode usar aquele vídeo. Você quer trabalhar com questão... na verdade, o vídeo, o foco que ele vai dar, foda-se, quem vai determinar é o professor. Porque ele serve na verdade pra qualquer foco, ele pode discutir política, ele pode discutir geografia, ele pode discutir inglês!! Ele pode discutir humanas!! É aí que ta a parada do vídeo. Então é um vídeo que ele é tão aberto, que, por isso que eu te falei aquele dia, eu uso esse vídeo pra qualquer discussão. Te falei que usei pra chamar os alunos pra Passeata Gay. Tem gay no seu vídeo?

Severo faz, acima, uma reflexão interessante a respeito do papel do professor, como alguém capaz de tecer uma trama entre os múltiplos saberes; para isso, ele deve estar preparado, trabalhar em sua formação, ter um posicionamento crítico a respeito da disciplina que leciona e de seu próprio fazer, de seu próprio papel. Paradoxalmente, Severo, que atua em cursinho pré-vestibular, posiciona-se a favor de um professor que seja crítico-reflexivo.

Tal visão é corroborada por Caetana: tudo vai depender do posicionamento do professor. O professor é o foco, o centro ao redor do qual a utilização do material circula, como ela destaca, a seguir:

Caetana: Não, não, o que eu penso é isso. Eu acho que esse vídeo é possível sim, é

possível dizer da aplicabilidade dele se dar em sala de aula, né, e aí vai depender do olhar dessa pessoa. Se o professor tiver um olhar mais estrutural, mais gramatical, ele vai focar mais nisso. Se ele tiver um olhar mais imagético, né, o que que essas imagens tão representando, ou a musicalidade, ou mesmo o texto falado...

Mas Helena, em contrapartida, aborda outro aspecto: às vezes o professor pode nem vislumbrar tipos de utilização que não estejam condizentes com suas crenças e práticas, mas o processo de ensino-aprendizagem também é composto pelo aluno! Pode-se notar que, abaixo, Helena sinaliza com a possibilidade de o aluno se colocar no processo de co-construção de conhecimentos:

Helena: E se você pensar no pior dos piores, mesmo aquele professor que só vai usar

pra mostrar as relative clauses ou o vocabulário, vai ter algum aluno lá que vai alguma coisa acontecer. Então, é um material que desperta se não no professor, porque ele ta muito viciado, talvez, lá imbuído e institucionalizado, mas o aluno há de fazer algum comentário, e sabe-se lá o que pode acontecer, né? Uma sementinha.

Helena, também, contrapõe o profissional esclarecido àquele que só é capaz de ver a questão gramatical no vídeo. Então, ao contrário de Arturo, propõe um guia didático justamente para motivar o uso mais aberto, temático, do material. Ou seja, por sua reflexão, um guia de orientação para o professor pode atuar como um instrumento de formação do professor, como explica a seguir:

Paulo: Você acha que deveria esse material ser acompanhado de um guia didático... Helena: Eu acho.

Helena: desse a luz para o professor. Eu acho, porque o professor pode ser uma

pessoa, um profissional esclarecido, mas pode não passar pela cabeça dele, ele vai trabalhar as relative clauses ou vocabulário, and that’s it! Ponto final! E se der a luz, porque talvez ele não tenha tido ainda esse insight. E talvez seja uma coisa boa pra ele, para ele próprio poder começar a pensar nisso para poder ter o começo de um caminho, entendeu? Eu acho.

Ivy parece ter a mesma visão que Helena, conforme sua fala, a seguir:

Ivy: (...) Uma pessoa, por exemplo, pode ver o vídeo, mas tem pouca experiência de

sala de aula, ou não trabalha com os contextos que alguns trabalham, tem toda a questão de contextualizar, de visão crítica, pode simplesmente usar o material com o puro objetivo gramatical e perder toda a riqueza que o material apresenta. Então eu acho que ao mesmo tempo que não pode engessar, mas também eu acho que pode abrir a visão das pessoas de como vêem o mundo.

Noto que Ivy opõe “riqueza” a “conteúdo gramatical”. Em resumo, ela defende a utilização de um guia didático em função das diferentes posturas que os professores têm em relação ao material que lhes chega às mãos para sua prática do ofício.

Severo, por seu turno, reflete sobre um outro aspecto do papel do professor, que não havia sido comentado. Essa reflexão é ilustrada a seguir:

Severo: Discussão de polêmica é aborto! Fuck! Aborto? Puta assunto... legal de

discutir, mas, de novo, a polêmica é a porra do aborto? Então não sei se... como posso falar... fazer um guia pro vídeo. Ele pode ser aceito num grupo de pessoas que você convive, né, que são pessoas, eu acho, acima da média. Agora, de repente tem o cara que vai achar isso uma punhetagem, Paulão, o cara vai olhar pra você e vai dizer, vai tomar... eu vou ficar discutindo pobreza,... Vai ter aquele cara que vai falar assim: Vocês viram? Esse é o Paradoxo. A pobreza e a riqueza. Há há há há!! E um puta vídeo, que atrás dele há possibilidades de você plantar a semente do mal. E eu não sei se os professores estão a fim de plantar a semente do mal na área de inglês. Isso é um bode que eu pego, Paulo,..

O professor deve, para Severo, propor discussões que desestabilizem e desequilibrem um posicionamento comodista dos alunos acerca dos Paradoxos da vida. Ele dá um nome a essa prática: “plantar a semente do mal”.

Considero bastante interessantes as reflexões dos professores a respeito do papel do professor no contexto de ensino de LE. Os participantes, de forma geral, preferem assumir uma postura crítica perante sua prática, e opõem, claramente, a posição do professor como explicador de estruturas de

língua e como fomentador de discussões e negociador de sentidos que permeiam várias disciplinas, superando as fronteiras entre elas.

No documento Paulo Eduardo Ferreira Machado (páginas 163-169)