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Regra de Introdução para a Proposição Absurda

Capítulo I O Conceito de Dedução e o Problema da Negação

2. Acerca da Negação

2.2. Regra de Introdução para a Proposição Absurda

A proposta de elucidação da negação acima difere das tentativas de elucidação da negação contidas no intuicionismo em geral e no intuicionismo natural em particular. O intuicionismo natural, tendo, primeiramente, feito uma diferenciação entre provas diretas/canônicas e indiretas/não-canônicas e, em segundo lugar, evitado o uso do conceito de contradição, procurará dar uma elucidação da negação que dependerá do conceito de impossibilidade ou do conceito de absurdo, o que, por sua vez, é representado como uma proposição.

O que fazem os intuicionistas naturais? Eles substituem o conceito de contradição pelo conceito de absurdo ou de proposição absurda como uma interpretação para a constatação de impossibilidade. Desse modo, a partir da proposição absurda, a negação passa a ser definida como: ~AdfA→⊥. O absurdo é assim tratado como uma constante lógica como as demais. Por

isso mesmo, acreditamos, seu comportamento deveria ser/estar elucidado por meio de regras de dedução.

Como já vimos na citação de Negri & Von Plato, por exemplo, para os intuicionistas naturais a proposição absurda será definida como aquela da qual não há nenhuma prova direta/canônica ou da qual uma prova direta é impossível. No que se segue, procuraremos analisar essa perspectiva.

Parece-nos criticável a proposta de definir a proposição ⊥ como aquela proposição da

qual não há nenhuma prova canônica, ou ainda da qual uma prova direta é impossível. Em

primeiro lugar, se quiséssemos admitir esse tipo de definição, deveríamos mostrar como esse fato pode ser evidenciado por meio das regras de dedução natural. A formalidade das regras de dedução natural serve de garantia a que nenhum conteúdo semântico entre desavisadamente de contrabando na elucidação proposta. Assim, é preciso questionar como poderíamos apresentar formalmente o fato de que não pode haver nenhuma prova de ⊥, quando a formulação sintática é usada de modo a não deixar conteúdos semânticos encobertos. A resposta tradicional a essa questão tem sido a de que o caso de ⊥ é um caso limite, para o qual não haveria regra de introdução, já que não existe prova canônica de ⊥. Como, do ponto de vista intuicionista, as regras de introdução determinam o que é uma prova canônica ou uma prova direta de uma asserção para uma determinada constante lógica e como não pode haver prova do absurdo, então não haveria, segundo os intuicionistas naturais, uma regra de introdução para o absurdo. Assim, o próprio "silêncio sintático" tem sido tomado como regra de introdução para essa proposição.

Todavia, o fato de assumir que não existe nenhuma regra de introdução porque não existem provas do absurdo parece introduzir um elemento ontológico-existencial na concepção das regras. Já que não existiriam provas, não poderiam existir descrições de como o absurdo seria provado. Porém, traçando um paralelo com os animais fantásticos, isso seria o mesmo que dizer que já que não existem unicórnios, também não poderíamos descrever quais características teriam esses animais se existissem, o que é falso. Certamente, ninguém tem o direito de caracterizar um unicórnio como bípede, mas estará correto ao caracterizá-lo como um quadrúpede. Além disso, embora um grifo seja intensionalmente um quadrúpede, grifos e unicórnios são intensionalmente coisas diferentes.

Além dessa questão, há um segundo problema. Devemos perguntar, adicionalmente, como poderíamos garantir a unicidade do significado da proposição ⊥ ao defini-la como aquela

proposição da qual não há prova direta/canônica. Segundo os intuicionistas, as provas

diretas/canônicas de uma proposição devem ter uma conexão íntima com o significado da proposição. Provas diretas para proposições de significados distintos deveriam ser distintas entre si. A questão que se apresenta é: poderíamos admitir que a proposição absurda fosse confundida com outras proposições? Num sentido intuitivo, não existem provas diretas de quaisquer proposições que tenham sido demonstradas como falsas. Como então poderíamos saber que, ao apontar para aquela proposição da qual não há prova direta/canônica, estaríamos apontando para uma única proposição?

Se as regras de introdução ou a ausência delas determinam semanticamente o significado das proposições, então, provavelmente, deveríamos identificar de um modo forte todas as proposições falseáveis, já que para todas elas não existirão provas e a fortiori não existirão provas diretas/canônicas. Assim, se pudéssemos considerar que todas têm o mesmo significado, elas deveriam ser consideradas interderiváveis e, portanto, talvez, pudéssemos aceitar a unicidade da expressão aquela proposição da qual não existe prova direta/canônica. Porém, se as considerássemos interderiváveis, a demonstração da falsidade de uma deveria servir de demonstração da falsidade da outra. Ora, a partir de proposições falseáveis distintas entre si não há, usualmente, como empregar a demonstração da falsidade de uma dessas proposições para demonstrar a falsidade de outra. Proposições falsas devem poder ser distinguidas quanto ao seu significado e, da mesma forma, deveríamos poder distinguir os critérios para determinar o que seria uma prova ou uma refutação de cada uma delas. Por exemplo, não vemos por que, de forma geral e abstrata, a prova da falsidade de "π é um número algébrico" seria uma prova da falsidade de "√2 é um número racional". Por outro lado, se não pudéssemos fazer essa identificação entre as proposições falseáveis, não vemos por quê ⊥ deveria ser considerada uma proposição definida pelo fato de que dela não existem provas diretas.

Parece-nos que cada proposição significativa deve ter associado um critério de identidade que permita distinguir o que seria sua putativa prova85, nem que seja de modo parcial. Se uma proposição é falsa, ou foi demonstrada como falsa, o conjunto de suas provas será claramente vazio. Nem por isso estaria assegurado que proposições falsas distintas teriam os mesmos critérios de identificação para suas putativas provas. Assim, em resumo, parece-nos que há, no mínimo, um problema de unicidade na expressão aquela proposição da qual não há prova

direta/canônica.86

Para toda proposição significativa que não tenha sido nem provada, nem refutada − por exemplo, a proposição de que todo número par é a soma de dois primos − deveríamos ter de antemão critérios que permitissem identificar se algo é ou não é uma prova dessa proposição. De outra forma, jamais poderíamos provar nem refutar nada. Os critérios nos dariam o que podemos chamar de critérios canônicos para a seleção/rejeição de uma estrutura candidata ao posto de

85 Os dicionários Houaiss e Aurélio da Língua Portuguesa dão o significado de atribuir falsamente ao verbete

putativo. Segundo o Houaiss, esse termo vem do latim putativus,a,um : imaginário. Ao usar a expressão putativa prova, estaremos nos referindo às entidades que, se existirem, cairão sob os critérios que definem o que seria a prova

de uma determinada proposição. A idéia é que os critérios dão uma descrição intensional do objeto e é possível que essa descrição não seja aplicável a nenhum objeto. Assim, nosso uso diverge parcialmente dos usos descritos por Houaiss e Aurélio.

86 Observe-se de passagem que, se esta expressão é considerada uma definição da proposição absurda, nela faz-se uso da negação e, desta forma, a compreensão do absurdo já pressuporia uma certa compreensão da negação.

prova dessa proposição. Ocorre que, da forma como os intuicionistas naturais entendem esses critérios, eles podem ser confundidos com a existência da própria prova (canônica), no caso das proposições que podem ser demonstradas. Ou seja, ao invés de tomá-los como simples critérios, temos a impressão de que os intuicionistas estão, na verdade, descrevendo uma ontologia de provas. Assim, desse ponto de vista, é compreensível que um intuicionista natural pense estar definindo uma proposição falsa ao dizer que o conjunto das suas provas canônicas é vazio. Porém, como todas as proposições falsas não são demonstráveis e, a fortiori, o seu conjunto de provas canônicas é vazio, se tomássemos como definição de uma proposição a inexistência de provas canônicas, então todas as proposições falsas significariam a mesma coisa ou, pelo menos, não poderíamos distinguir os seus respectivos usos/significados.

Ao que parece, podemos perfeitamente distinguir os diferentes usos de proposições distintas e que sejam ao mesmo tempo demonstradamente falsas. Consideremos as proposições "π é um número racional" e "π é um número algébrico". Embora as duas envolvam, por assim dizer, o mesmo objeto π, seu significado é distinto, embora sejam ambas demonstradamente falsas. Aliás, dado que a cada uma dessas proposições está associado um significado, independente de saber se elas são falsas ou não, temos certeza de que a primeira implica a segunda, pois todo número racional é algébrico, ao passo que a segunda não implica imediatamente a primeira. Ou seja, não é imediatamente verdade que todo número algébrico seja racional. Só poderíamos dizer que a segunda implica a primeira, se usássemos como princípio de inferência válido o princípio de ex falso quodlibet. Lembramos que esse princípio é objeto de investigação da nossa tese e está sob julgamento. Contudo, é preciso notar, ao dizer que a primeira proposição implica a segunda, estamos fazendo uma afirmação cuja justificativa independe da validade do princípio, pois efetivamente existe uma construção que mostra essa implicação, como vimos.

Se ⊥ é tratada como uma constante lógica proposicional e os sistemas de dedução natural descrevem completamente o comportamento dessas constantes por meio de regras de introdução e de eliminação, parece-nos deveria haver uma regra de introdução correspondente para essa constante. Aparentemente, Dummett é da mesma opinião, pois oferece uma regra infinitária de introdução para ⊥ ([Dum91], pág. 295):

É usual não impor nenhuma regra de introdução sobre ''; a motivação para isso seria presumivelmente o princípio de consistência, desde que se, para alguma sentença A, ambos ela e ¬A⌝ são asseriveis, então também seria, e reversamente. A partir de nossa discussão prévia, no entanto, é claro que a regra de introdução apropriada é

B1 B2 B3 ...



onde os Bi são como antes.

A constante sentencial não é mais problemática do que o quantificador universal: ela é simplesmente a conjunção de todas as sentenças atômicas.87

Contudo, a regra oferecida contrasta fortemente com as demais regras de dedução natural, pois, em nenhum outro caso, a condição de aplicabilidade da regra contém uma infinidade de premissas. Pior ainda, levando em conta que as premissas da regra são todas atômicas/básicas, se consideramos uma linguagem formal rudimentar, em que não existam parâmetros, em que todos os termos sejam ou zero ou sucessor de um termo (0, 0', 0'', ...), em que por definição todas as proposições básicas tenham a forma τ=τ (onde τ é um termo), em que exista unicamente um axioma 0=0 e a regra τ=τ /τ'=τ', então, nessa linguagem, ⊥ poderia ser inferido aplicando a regra de Dummett. A proposição ⊥ corresponderia, segundo as palavras do autor, à conjunção infinita

0=00'=0'.... Porém, essa conjunção infinita será verdadeira, se os termos forem interpretados

da forma usual como números naturais. Isto não corresponde ao conceito de absurdo. O exemplo usado para contra-argumentar pode ser questionado quanto a forma sob a qual as fórmulas básicas foram definidas. Todavia, nesse caso, seria preciso mostrar porque não disporíamos de liberdade para definir a linguagem da forma como o fizemos.

Na verdade, é possível apresentar uma regra de introdução para ⊥ mais adequada que aquela de Dummett, oferecendo, ao mesmo tempo, um critério de identificação para as putativas provas de ⊥. Como sabemos, a negação pode ser introduzida como um símbolo lógico não- primitivo por meio do absurdo: ~AdfA→⊥. A partir dessa definição, podemos subdividir as

regras de introdução da negação e eliminação da negação que oferecemos anteriormente de modo a obter regras específicas para ⊥:

87 It is usual to impose no introduction rule on ''; the motivation for this is presumably the principle of consistency,

since if, for some sentence A, both it and ⌜¬A⌝ are assertable, then so will be, and conversely. From our previous discussion, however, it is plain that the appropriate introduction rule is

B1 B2 B3 ...



where the Bi are as before.

The constant sentence is no more problematic than the universal quantifier: it is simply the conjunction of all atomic sentences.

Γ,[A]i ∇ B —— ⊥ ——i i→ ~A A ~A ——— e→ ⊥ —— C Figura I-18

Assim, se B é um parâmetro proposicional que não ocorre em Γ e não ocorre em A, as regras de

introdução de absurdo (i⊥⊥⊥⊥) e grande eliminação de absurdo (E⊥⊥⊥⊥) seriam como abaixo:

i⊥: Γ ∇ B —— ⊥ E⊥: ∆ ∇ ⊥ —— C Figura I-1988

Observamos adicionalmente que, na literatura, a regra de eliminação do absurdo é freqüentemente representada como ⊥i, que se lê regra de absurdo intuicionista.

A regra i⊥ acima pode ser derivada da regra de Dummett, mas a regra de Dummett não pode ser derivada de i. Se tivéssemos a dedução de um parâmetro proposicional A a partir de um conjunto Γ de suposições, tal que A não ocorra em Γ, então derivaríamos i⊥ usando a regra de Dummett da seguinte forma:

Γ Γ ... ∇[A/B1] ∇[A/B2] ... B1 B2 ... —————————— ⊥ Figura I-20

De modo formal, a seguir deveríamos adicionar as cláusulas para definir o conceito de conseqüência dedutiva para a proposição ⊥ na Definição I-2. Logo, as cláusulas para a negação poderiam ser removidas dessa definição e, assim, a negação passaria a ser considerada um símbolo definido. As cláusulas seriam as seguintes:

(vii) caso Γ⊩B, onde B é um parâmetro proposicional que não ocorre em Γ, então Γ⊩⊥.

(xiv) casoΓ⊩⊥, então Γ⊩C.

88 A regra i é estruturalmente similar àquela usualmente considerada como uma introdução do absurdo em segunda ordem feita com base na regra de introdução de universal. Na regra de eliminação, a subderivação subsidiária da premissa imediata poderia ser dipensada.

Do nosso ponto de vista, ⊥ é um artifício útil que permite uma elucidação econômica da negação e do conceito de impossibilidade. Dizemos que ele é um artifício, pois sua postulação permite separar duas componentes em cada uma das regras de introdução e eliminação para a negação, como acima. Vemos que uma dessas componentes subentendida na negação corresponde a uma implicação, conforme a Figura I-18. Isso pode ser muito esclarecedor se consideramos que, freqüentemente, a diferença entre a lógica intuicionista e a lógica clássica é apresentada em termos da validade/invalidade de certas regras envolvendo a negação. Uma forma de identificar mais precisamente a diferença entre a lógica clássica e o intuicionismo consistiria em notar que a diferença radica na aceitabilidade de uma regra que envolve a implicação, no caso a regra de dedução indireta P, ou seja, o axioma de redução de Russell. Esse tema será mais explorado nos próximos capítulos.

Agora que estamos de posse das regras de introdução e de eliminação para a proposição

⊥, se adotássemos uma postura similar à de Hilbert, poderíamos dizer que ⊥ é um elemento ideal, uma proposição ideal que não encontramos propriamente entre as proposições usuais da matemática ou alhures, mas uma forma de criação teórica que nos permite elucidar, de modo elegante e simples, a relação de conseqüência dedutiva em certos passos atômicos/elementares. Nesse sentido, dizer que ⊥ é uma proposição parece-nos um compromisso ontológico da mesma natureza que o compromisso com a existência do número √-1. Por outro lado, parece impossível sustentar que ⊥ seja considerada uma sentença ou oração. Ao menos, se assim o considerássemos, teríamos que revogar todas as gramáticas do mundo, já que essa oração não tem nem sujeito nem predicado.

Claro está que não é razoável admitir duas formas distintas e desconexas de regras de introdução para a proposição ⊥. Em nossa opinião, nossa proposta apresenta algumas vantagens sobre a proposta que considera ⊥ como aquela proposição da qual não existe prova canônica. De fato, inclusive, quem adotar nosso ponto de vista estará apto a mostrar, mais adiante, que não pode existir prova de ⊥, tomando por base unicamente a regra de introdução para o absurdo e, assim, a fortiori, demonstrar que tampouco pode existir prova canônica de ⊥, o que quer que isso signifique. Em outras palavras, o que vários dos intuicionistas naturais tomam como uma definição de ⊥ pode ser demonstrado a partir da definição do uso dedutivo de ⊥ por meio das regras de introdução e eliminação dadas acima.

Como última observação, notamos que Prawitz ([Pra65], págs. 58 e 59) já havia observado que ⊥ é fracamente definível por meio de um parâmetro proposicional. Um operador lógico é considerado fracamente definível quando, para uma fórmula A, existe uma

transformação resultando noutra fórmula A*, tal que A* não contém este operador e tal que A é demonstrável se e somente se A* é demonstrável. Um operador será fortemente definível quando as duas fórmulas forem interderiváveis. Outrossim, ele nota que o operador ⊥ é fortemente definível em segunda ordem ([Pra65], pág. 67). Acreditamos que nossa proposta de definição dos usos dedutivos de ⊥ explicitam por que ele é fracamente definível em primeira ordem e fortemente definível em segunda ordem.