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1. Os novos modos e mecanismos de regulação do poder

1.1. Regulação e multirregulação

Face à crise de governabilidade de um Estado Educador/ Providência, que tudo superintendia, assistimos, nos últimos anos, e um pouco por todo o mundo, a uma reconfiguração do envolvimento do Estado central na prestação do serviço de educação e a um enfraquecimento do uso de estratégias centradas na produção normativa e no controlo de meios e procedimentos, passando a valorizar-se novas estratégias de regulação viradas para a responsabilização pelos resultados (Afonso, 2003) e para o estabelecimento de mecanismos de responsabilização social, através do fomento de práticas de envolvimentos de outros atores.

O conceito de regulação, hoje utilizado com valor semântico diferenciado do de regulamentação, embora etimologicamente com sentidos aproximados (do latim

regulare, estabelecer regras) pretende distanciar-se deste pelo carácter apriorístico de

formulação uniforme de regras e procedimentos, oriundos dos organismos centrais, num sentido unívoco. Assim, este termo aparece associado ao propósito de conferir um novo papel ao Estado: de um Estado regulamentador, de cariz burocrático-institucional, de um Estado omnisciente, que tudo prevê, antecipa e regulamenta, a um Estado regulador, que, nas palavras de Joaquim Azevedo (2007b: 12), deve ser um “Estado garantia (…) da liberdade, da avaliação e da qualidade, da igualdade de oportunidades e da eficiência de todo o serviço”.

João Barroso (2005: 734) considera que este processo de reconfiguração do papel do Estado se trata de um " (…) processo compósito que resulta mais da regulação das regulações, do que do controlo direto da aplicação de uma regra sobre a ação dos

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regulados", tornando imprevisível o efeito das regulações institucionais desencadeadas pelo Estado e pela sua administração, concedendo uma grande relevância às estruturas de mediação, modos de regulação interna das escolas, responsáveis pela síntese ou pela superação de conflitos entre as várias regulações existentes: “Thus the regulation process puts in play local process of negotiation and definition of game rules which have been developed in courses of action, beyond institutional arrangements set up by public organization authorities to supervise local practice.” (REGULEDUCNETWORK 2004: 33).6

Os mecanismos de regulação tendem, pelo menos a nível discursivo, a deixar de ser feitos exclusivamente através da lei, regulação burocrática, passando para novos modos de regulação e coordenação institucional, mecanismos pós-burocráticos: consulta, estabelecimento de parcerias, divulgação e encorajamento de boas práticas, avaliação externa e interna, contratualização ou, numa lógica mais de mercado, a privatização: “ (…) we move from a governmental process from ‘top to bottom’ to an integrationist process – a logic of governance.” (ibidem).

Continuando com Barroso (2005), à luz deste “ novo” conceito de regulação, ou multirregulação, o Estado e a sua administração (central e autárquica) deveriam ser a garantia da democraticidade, da igualdade, da equidade e da eficácia do serviço público de educação, provendo a afetação de recursos, a regulação de processos, o estímulo ao desenvolvimento e à mudança, procedendo à avaliação de resultados e à compensação das assimetrias. Também aos alunos e às suas famílias caberia zelar pelos seus direitos de cidadãos, participando no controlo social sobre a escola, na responsabilização, nos debates, nos acordos, nos compromissos, nas decisões, enfim, na definição e consecução do projeto comum da Escola, de cada escola em particular. O mesmo autor (2006) afirma que o processo de recomposição do papel do Estado e consequente redefinição das funções dos outros atores sociais, no governo das escolas, é um processo lento e complexo, propondo para a sua análise a sustentação de três níveis de regulação.

A primeira, que designa de transnacional, traduz-se no conjunto de normas, discursos e instrumentos gerados por especialistas, discutidos nos fóruns internacionais

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de decisão, particularmente dos países centrais, que são adotados pelos políticos, sobretudo dos países periféricos ou semiperiféricos, como forma de justificação e legitimação para a sua importação. Estes procedimentos decorrem de uma lógica de globalização. Lembremos as inúmeras formas, mais ou menos subtis, de efeito regulador: programas internacionais de cooperação, apoio, investigação, criados no seio de organizações e fundações como, por exemplo, o Banco Mundial, a OCDE etc. No caso português, para além destes efeitos de contaminação internacional, temos que considerar a nossa integração na União Europeia que condiciona as políticas educativas, quanto mais não seja pelas contingências de ordem financeira necessárias à sua implementação.7

A segunda, a nacional, equivale à regulação estatal, institucional, a forma como a administração pública exerce o controlo, através da formulação de regras e de verificação de procedimentos burocráticos. Em Portugal, esta racionalidade assentou, durante um largo período de tempo, de forma explícita, no poder formal e na autoridade estatal, passando por uma aliança entre o Estado e os professores, numa atuação corporativista, profissional, refratária à participação de atores externos à escola.

Nas últimas décadas, face à (s) crise (s) no funcionamento dos sistemas educativos, o Estado vai-se abrindo e aproximando dos outros agentes sociais, incentivando, pelo menos ao nível do discurso político, a sua participação no governo das escolas, numa terceira lógica de regulação, a local, de microrregulação.

Assim, esta multirregulação resulta num complexo jogo de interações, de negociações, quer numa ótica vertical, quer numa ótica horizontal (Friedberg, 1995), num processo compósito de estabelecimento de redes entre os diferentes intervenientes (Lima, 2007). Contudo, este jogo estabelecido entre várias fontes de regulação nem sempre resulta num sistema organizado de ação conjunta: “ Multi-regulation can also generate disorder and contradiction.” (REGULEDUCNETWORK, 2004: 34).

Nesta linha de pensamento, também Azevedo (2007a: 47) explicita o seu conceito de sistema educativo mundial, recorrendo a contributos das abordagens sistémicas dos sistemas “ (…) como conjunto de dimensões ou variáveis que são

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dotadas de autonomia e que simultaneamente interagem, interligando-se por um conjunto de relações.” O sistema educativo mundial é, então, um “ (…) modelo sociocultural transnacional, que se espalha, copia e impõe em todo o mundo” (ibidem), apresentando um conjunto de variáveis mais ou menos comuns, mais ou menos padronizadas, decorrentes de variadas razões como: a institucionalização e a massificação da escolarização, no modelo do Estado-nação; a crença na ideologia da modernização e do progresso subjacente à escolarização para todos; a externalização das políticas dos sistemas educativos nacionais, como forma de legitimação, associada aos fenómenos crescentes da globalização, de uma retórica económica, cultural e política mundial idêntica; a expansão da comunicação científica, consubstanciada na publicação de estudos e de trabalhos apresentados em fóruns internacionais, por companhias multinacionais de edição; o contributo inigualável da Internet, o acesso facilitado a bases de dados mundiais; a ação uniformizadora das grandes organizações internacionais, OCDE, UNESCO, Banco Mundial; a realização de estudos comparativos em educação, por exemplo, desenvolvidos, de modo cada vez mais intensivo, na rede de informação em educação, EURYDICE.

Azevedo (2007a: 108-109) considera que é necessário repensar a regulação em educação, as suas dimensões transnacional, nacional e local e as suas inúmeras ligações, alertando para os “efeitos perversos” derivados do facto de que “ao mesmo tempo que se propaga em cascata uma retórica transnacional (…) permanece no plano local um sem-número de contradições, conflitos e modos de regulação (…) que chamam a atenção para a necessidade de não trocar o desejo e o cenário transnacional pela realidade concreta das relações sociais envolventes num determinado território.” Para este autor, há uma tensão latente entre duas forças que se interpenetram, a da

globalização e a da glocalização, isto é, uma “centrípeta e homogeneizadora” e outra

“centrífuga da preservação da diversidade local e nacional.”

A redefinição do papel do Estado tem assumido várias configurações, nos diversos países, umas de tendência neoliberal, que remetem para o Estado o papel de avaliador, mais do que o de educador, outras de cariz burocrático e centralizador, com uma acentuada intervenção normativa por parte do Estado, como acontece em Portugal, apesar da bondade retórica das intenções mescladas de descentralização. Para Azevedo

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(idem: 113), há uma inevitável articulação entre os múltiplos processo de regulação, mas o caminho terá de ser feito passando pela centralidade da regulação sociocomunitária, uma regulação local, “resultante dos (re) conhecimentos, das interações, dos conflitos e dos interesses, racionalidades e estratégias inscritos nos vários atores sociais, em presença”, isto é, entre as instituições e as pessoas, concretas, numa perspetiva horizontal, de participação política e cidadã, no tempo e com tempo.

A realização de estudos comparativos tem permitido mostrar a coexistência de elementos comuns no domínio das políticas educativas internacionais, decorrentes como já dissemos, da chamada globalização, transmitida em fóruns de consulta e de decisão política mundial, ou transferida através das agências internacionais dos países ditos desenvolvidos para os designados países da periferia. Barroso (2003)8 destaca três desses efeitos, o de contaminação, o de hibridismo9 e o mosaico.

O primeiro reside na tendente facilidade em transportar soluções rápidas de um país para outro, importando aquilo que parece funcionar bem nesse contexto e aplicá-lo às mudanças, ou reformas, pretendidas noutro contexto. O segundo diz respeito “à sobreposição ou mestiçagem de diferentes lógicas, discursos e práticas, na definição e ação políticas, o que reforça o seu caráter ambíguo e compósito.” (Barroso, 2003: 29), isto é, acentua a pluralidade, o caráter misto das reformas educativas, quer a nível interno, num mesmo país, pela coexistência de modelos oriundos de sistemas educativos diferentes, quer ao nível das relações entre países, pressupondo a aplicação mais ou menos passiva das soluções dos países centrais pelos outros considerados menos desenvolvidos. Este hibridismo existente na definição e execução das políticas educativas dificulta uma análise linear dos modos de regulação. O terceiro, a metáfora

8 Estudo realizado no âmbito do projeto REGULEDUCNETWORK (Changes in Regulation Modes and

Social Production of Inequalities in Education Systems: a European Comparison),subsidiado pela

Comissão Europeia, no âmbito do programa “Improving the socio-economic knowledge base”, que contemplou cinco países/regiões – Inglaterra, Bélgica (comunidade francófona), França, Hungria e Portugal, mas com múltiplas referências a estudos realizados noutros países.

9 Para Azevedo (2008: 16), a regulação de controlo em Portugal encontra- se num estado de degradação,

de “desresponsabilização em cadeia” “mais do que em hibridismo”. (…). O mesmo autor diz que “ se acrescentarmos a esta degradação uma regulação autónoma incipiente e necessariamente fragmentada, corremos o risco de cair numa situação de anomia”.

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do mosaico, aponta para a adoção de um conjunto de medidas avulsas, isoladas, de remendo ou remediação, para substituir outras que falharam, que já não servem, no seio da reconsideração de novas formas de regulação, desregulação ou mesmo privatização. Ainda no âmbito do mesmo programa, Afonso (2003), num estudo consagrado à evolução da regulação da educação nos cinco países europeus participantes, constata que, face à crise de governabilidade de um Estado Educador, que tudo superintendia, assistimos, de forma particular, nos últimos anos, e um pouco por todo o mundo, “ (…) a uma retração do envolvimento do Estado Central na prestação direta do serviço de educação e um enfraquecimento do uso de estratégias de regulação centradas na produção normativa e no controlo de meios e procedimentos” (Afonso, 2003: 49-50) assistindo, assim, à passagem, de um modo mais ou menos gradual, conforme os contextos, de uma lógica burocrática para uma lógica de controlo de resultados, ou à coexistência híbrida de vários mecanismos de regulação, muitas vezes conflituantes.

Enquanto o centralismo burocrático, um modelo hierárquico, piramidal, assenta em meios administrativos, cujo desenho organizacional é regulado por regras pré-definidas, oriundas de decisões políticas superiores, que vão passando por patamares ordenados de modo decrescente, obedecendo a uma lógica de subordinação gradual, com a justificação da garantia da unidade de ação, da potencialização dos recursos materiais e humanos, ignorando a morosidade dos processos de decisão/aplicação, o caráter pessoal das decisões e a inclusão dos interesses e opiniões dos outros atores, a lógica de mercado, gestionária, afirma, pelo menos retoricamente, a valorização da horizontalidade das relações entre os diferentes agentes, numa ótica de concorrência, de autogoverno e mesmo de privatização, numa ótica continuada de controlo, ao serviço de interesses, mais ou menos camuflados, de alguns grupos ou clientelas e do próprio Estado, embora de forma mais subtil, mas não menos eficaz.

A Nova Gestão Pública, justificando-se com a modernização do Estado, pretende aplicar aos serviços públicos mecanismos próprios do mercado, designadamente, a profissionalização da gestão, o estabelecimento de padrões de desempenho, através de indicadores de medida, com vista à gestão por resultados, a racionalização dos custos, a livre concorrência, a liberdade de escolha dos consumidores. Contudo, revela-se “uma faca de dois gumes” (Lima, 2007), por um

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lado, preconiza a descentralização de competências e de responsabilidades e, por outro, estabelece mecanismos de controlo sobre o funcionamento global do sistema, daí que, no dizer de Afonso (2003) o recuo do estado na provisão direta dos serviços públicos não significa, linearmente, o enfraquecimento do controlo desta provisão, ela permanece, embora, sob outros métodos, mais ou menos explícitos.

Em termos práticos, no caso português, basta que consideremos a existência dos inúmeros serviços do Ministério da Educação e Ciência, sediados em Lisboa, para que nos apercebamos da múltipla teia que coordena e continua a centralizar as decisões e a condicionar a definição estratégico-política das escolas, agora na figura dos Diretores, até aqui “acompanhados e apoiados” por estruturas regionais, DRES (Direções Regionais de Educação), diretamente comandadas pelos serviços centrais (Direções Gerais) em termos de planeamento, de orçamento, de avaliação de resultados, de recrutamento de recursos humanos, pessoal docente e não docente, de constituição de turmas, de organização de horários letivos e não letivos, de rede escolar, etc., numa lógica de eficácia, com recurso, cada vez mais centralizador, a plataformas informáticas sofisticadas e mais controladoras, de telecomando à distância, numa espécie de big

brother institucional.

No nosso país, neste início do século XXI, a situação é bastante híbrida, coabitando um quadro político e administrativo com grande protagonismo estatal, próprio de uma organização burocrática, e um discurso descentralizador, autonómico, observável nos vários normativos publicados pelos sucessivos governos, nos últimos trinta anos, derivando numa “mistificação legal”, que faz com que a tão apregoada e decretada autonomia não tenha passado de uma “ficção ainda que necessária” (Barroso, 2004), ao ficar-se pelo campo das intenções, verificando-se a implementação de medidas avulsas, de reajustamentos contínuos face às exigências nacionais, também mundiais, mas adiando a “democratização” da organização escolar, por não reconhecer às escolas e aos seus diferentes atores a capacidade efetiva de definirem normas e regras próprias nos domínios políticos, administrativos, financeiros e pedagógicos.

Para Azevedo (2008: 18), defensor da regulação sociocomunitária, trata-se de um novo modelo de regulação de controlo, “apenas retoricamente mais ‘participado’, mas que não ultrapassa na prática, uma regulação de controlo desregulada”.

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O mesmo autor reafirma este bloqueio, acusando as políticas de governos sucessivos, de hipocrisia e simulacro, quando afirma que “O sistema educativo diz que serve para uma coisa e faz outra (…). O Ministério da Educação decreta que as escolas são autónomas, mas atua reforçando o seu poder (…).” (Azevedo, 2009: 9).

Se a lógica centralizadora se tem revelado ineficaz, perante o avolumar das exigências decorrentes da massificação do ensino e dos gastos e problemas daí advindos, a segunda também encontra muitas dificuldades em transpor diretamente as suas práticas gestionárias, para as organizações educativas, dada a sua especificidade no seio das outras organizações públicas.

Barroso (2004), a propósito desta recomposição de relações, derivada da diversidade de instâncias de decisão e do envolvimento de um maior número de atores, afirma a necessidade de ser o Estado a exercer uma nova regulação de modo a que, embora respeitando a individualidade e a diversidade, não se dilua o sentido da coesão social, necessária à sobrevivência da sociedade, propósito intrínseco à educação.

1.2. Mecanismos de regulação de poder no quadro da reconfiguração do