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Relatório de acompanhamento psicológico (Jorge 29/05/2015)

No documento Relatório de estágio (páginas 132-135)

José Miguel Gonçalves Nascimento

Relatório de acompanhamento psicológico (Jorge - 29/05/2015)

O Jorge passou esta semana em casa do pai e da avó com a autorização da comunidade terapêutica, tendo regressado à mesma no dia de hoje durante a manhã. Deste modo, a primeira parte da sessão de acompanhamento psicológico foi dedicada a perceber como correu a semana e como esteve e se sentiu o Jorge em casa dos familiares (não biológicos). O Jorge apresenta desde logo uma novidade: a sua mãe tem estado a viver com uma irmã desde a saída do hospital e passou este fim-de-semana na casa do pai do Jorge para poder estar também com o filho. Assim estiveram juntos durante esta semana o Jorge, a avó e o pai (não biológicos) e a sua mãe.

O Jorge começa por expressar o quão bem se sentiu com os familiares, como é sempre agradável estar com a avó e o pai, mas também como foi especialmente gratificante rever e poder passar alguns dias com a sua mãe. Concedi naturalmente um espaço ao utente para lhe permitir falar livremente sobre isto durante um momento, introduzindo gradualmente maior diretividade. Procurei compreender e desconstruir o significado atribuído pelo utente ao “estar bem” com os familiares e reconstruir um contexto relacional e de pertença, ao que apurei um significativo despertar de consciência e de empenho nesta tarefa essencial, porém também identifiquei uma certa idealização do utente – que já vem sendo manifesta em algumas sessões desde o início – quanto ao seu conceito de família e que tem que ver com uma visão algo restrita e limitativa da mesma. O utente representa a família enquanto um contexto relacional no qual deve prevalecer por excelência o suporte afetivo, negligenciando um pouco as demais propriedades e funções da mesma, revelando uma visão de desequilíbrio entre os polos – ético e afetivo – e as funções fundamentais e originárias da família, para além de um sentido de pertença que parece não contemplar as dimensões do legado familiar transgeracional (Cigoli & Scabini, 2006; Scabini & Cigoli, 2000) em detrimento de um presente «órfão» e baseado neste suporte afetivo e emocional muito imediato. Ora, tendo em conta a história de vida do utente, esta visão que apresenta poderá resultar de uma demanda perante a sua própria carência afetiva – transversal na maioria do seu percurso – mas penso que também resultará muito provavelmente da própria ausência das raízes do utente no que à sua esfera de relações diz respeito, pois vejam-se os cortes relacionais perpetrados ao nível da

ͳʹͷ família alargada e até da família nuclear, ao ponto de os únicos laços mantidos com a família biológica se reportarem apenas à mãe e à irmã C..

Levando o utente a refletir sobre estes aspetos chamei a sua atenção para a importância de ter em conta os mesmos na reconstituição relacional e familiar que se encontra em curso. Visivelmente absorvido na sua chave de leitura de uma família idealizada o Jorge continuou a sustentar a centralidade da necessidade de um (mito do) bom entendimento (Relvas, 1998) entre os familiares num hipotético cenário de vazio histórico-relacional: “Eu percebo isso tudo, mas o importante agora é a união entre todos, a gente fazer por nos darmos bem uns com os outros e andar para a frente” – dizia várias vezes. Compreendendo a sua perspetiva e o perigo latente da ilusão existente na mesma reportei-me à dimensão mais «crua» e menos idealizada no utente, tentando fazer desta um recurso: “E as mágoas que sentes relativamente ao teu passado? Os vários cortes existentes entre a família? A raiva que verbalizavas até há três meses atrás quanto à tua mãe? Onde fica isso tudo? Não achas que isso precisa de ser resolvido de alguma forma?”. O utente ficou algo pensativo referindo posteriormente “Sim mas… tenho de começar por algum lado não é? Também não posso chegar à beira da minha família e obriga-los a darem-se todos bem uns com os outros”. Clarifiquei que naturalmente não era isso que se pretendia mas antes que, à luz do que viemos a discutir nos acompanhamentos, o Jorge se tentasse colocar numa perspetiva de reflexão, compreensão e integração da sua história de vida como um continuum necessário e identitário em detrimento do (já identificado e discutido em sessão) padrão repetitivo de corte e recorrentes “tentativas de recomeço” num caos relacional que encontra na mitologia do vazio histórico da família e na necessidade do bom entendimento (Relvas, 1998) a defesa para o evitamento do confronto com tais conteúdos e dinâmicas familiares insuportáveis.

Em relação com estes aspetos coloquei o utente a considerar a possibilidade de abordar gradualmente estes temas com os familiares mais próximos e significativos, nomeadamente a mãe e o pai, advertindo-o – pela primeira vez de forma manifesta – do perigo de deixar tais fantasmas numa dimensão latente – a do segredo familiar (Cigoli & Scabini, 2006) – mascarados sob a mitologia (Andolfi & Angelo, 1989; Andolfi, Angelo, Menghi, & Nicolo-Corigliano, 1989; Fleming, 2001; Minuchin, 2009; Relvas, 1998) sob pena de “tal como no passado, voltarem sempre a ressurgir e a provocar novos cortes relacionais (como vês ao longo da tua história) enquanto não forem debatidos, explicitados e resolvidos” – referi. Perante isto o utente revelou que nesta última viagem da comunidade para casa, durante a última parte do percurso que fez já com a sua mãe, os dois tiveram uma conversa

ͳʹ͸ sobre mágoas igualmente sentidas por ambos: desde os percursos realizados pelos dois após a infância do Jorge, a morte do pai biológico deste, o abandono dos filhos pela mãe, os consumos de drogas, as sucessivas institucionalizações do Jorge e a separação de toda a família. O Jorge referiu ainda que ele e a sua mãe realizaram um mútuo pedido de desculpas. Com esta surpresa já perto do final da sessão, aproveitei para reforçar a necessidade deste tipo de dinâmicas que se enquadram justamente no que foi abordado durante a sessão, ou seja, a identificação e explicitação dos fantasmas, ressentimentos, sentimentos e demais conteúdos que precisam ser tornados manifestos e, em última instância, contribuírem para a resolução e integração da história de vida do utente e da própria família bem como para a abertura das fronteiras relacionais (Minuchin, 1990, 2009). O Jorge manifestou compreender estas necessidades e comprometeu-se inclusivamente a refletir durante a semana no sentido de abordar a mãe e o pai nas próximas visitas.

Referências bibliográficas

Andolfi, M., & Ângelo, C. (1989). Tempo e mito em psicoterapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.

Andolfi, M., Angelo, C., Menghi, P., & Nicolo-Corigliano, A. (1989). Por Trás da Máscara Familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.

Cigoli, V., & Scabini, E. (2006). Family identity: ties, symbols, and transitions. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates.

Fleming, M. (2001). Família e Toxicodependência. Porto: Edições Afrontamento.

Minuchin, S. (1990). Famílias: funcionamento & tratamento. Porto Alegre: Artes Médicas. Minuchin, S. (2009). Familias y Terapia Familiar. Barcelona: Gedisa.

Relvas, A. (1998). Histórias de famílias, história familiar e toxicodependência. Da compreensão à intervenção. Revista Toxicodependências, 3, 81-88.

Scabini, E., & Cigoli, V. (2000). Il famigliare: legami, simboli e transizioni. Milano: Raffaello Cortina Editore.

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No documento Relatório de estágio (páginas 132-135)