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Religião, política e território: o exemplo judeu

No documento MESTRADO EM FILOSOFIA São Paulo 2010 (páginas 33-38)

1. Política e religião nos povos antigos: “O Deus político”

1.3 A delimitação da ação nos povos antigos: Religião, política e território

1.3.1 Religião, política e território: o exemplo judeu

Rousseau cita o exemplo do domínio dos babilônicos sobre o povo Hebreu68. Os judeus naquele momento constituíam um exemplo semelhante aos povos pagãos, mesmo sob a crença em um Deus único69 o que ainda não havia se configurado como um monoteísmo de caráter rígido70, pois os judeus ainda reconheciam a existência de outros deuses que não o deles, mesmo que

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O Exílio, que aconteceu no século VI aC, foi fruto da expansão territorial imperialista da Babilônia, mas antes da Babilônia convém fazer colocações sobre a Assíria. Judá já havia se livrado da destruição Assíria por volta do ano 701, ficando somente sob o estado de vassalagem, o que aconteceu devida uma política interna estável e boas relações externas. Já no período próximo à invasão babilônica, a situação política de Judá estava um tanto instável. No século VII aC., Manassés tinha imprimido um regime opressor ao povo (2Rs 21, 1-18;21-16). Após a sua morte, o seu sucessor é assassinado por seus ministros ( 2Rs 19 – 26), o que causa grande tensão interna e proporcionará a intervenção do povo da terra, ou seja, os chamados Judaítas, que entronam uma criança de oito anos, Josias. Isso implica o “povo” no poder. Josias instala uma reforma que visa a atender parte das reivindicações do povo da terra, contudo acontece nessa reforma uma centralização do culto e investidas militares, que desembocou na vitória dos egípcios em 609 aC. Nessa época Josias é morto, e os Javistas voltam a proclamar um rei, dessa vez é Jeocaz, que ocupou o trono por três meses, foi deposto pelo Egito (Jr 22, 10-12), que impõe Joaquim como rei, iniciando mais um período de opressão para o povo de Judá, exploração tributária e repressão, até sua morte em 598aC. Seu filho Joaquimé quem colherá o fruto de sua política externa e aparente diplomacia. Joaquim vai investir em uma política contra a Babilônia , o que vai ressaltar na ação Babilônica para evitar avanços do Egito, em 597 ac Jerusalém é desmilitarizada e cerca de 10 mil pessoas são deportadas (2Rs 24, 14-16). Por volta de dez anos depois Zedequias é o líder político imposto e que vai se rebelar contra os Babilônicos, resultando na destruição e desurbanização de Judá em 587 e conseqüentemente o segundo exílio, mas ao que indica Jeremias (52,30) aconteceu outro exílio em 582, chegando a somar 15 mil pessoas de Jerusalém na Babilônia. In: BRIGHT. JOHN. História De Israel. São Paulo: Paulus, 2006

69 Surgido da religião mosaica, o judaísmo, apesar de suas ramificações, defende um conjunto de

doutrinas que o distingue de outras religiões: a crença monoteísta em YHWH (às vezes chamado Adonai ("Meu Senhor"), ou ainda HaShem ("O Nome") como criador e Deus e a eleição de Israel como povo escolhido para receber a revelação da Torá que seriam os mandamentos deste Deus. Dentro da visão judaica do mundo, Deus é um criador ativo no universo e que influencia a sociedade humana, na qual o judeu é aquele que pertence a uma linhagem com um pacto eterno com este Deus. Cf: BRIGHT. JOHN.

História De Israel. São Paulo: Paulus, 2006.

70 Dentro das três religiões que descendem de Abraão, o Judaísmo e o Islã, qualificam a imagem de Deus

como único, e indivisível, Deus é absoluto, simplesmente É. O cristianismo, porém, tem em sua relação com o Deus de Israel, uma diferença com relação ao Islã e ao Judaísmo, reconhece na figura de Deus um monoteísmo trinitário, ou seja, Deus é Deus, mas também é Filho (o Cristo) e Espírito Santo. São três sem deixar de ser um.

esses outros deuses fossem inferiores ao Deus judeu71, como o livro do Êxodo expõe: “Agora sei que o SENHOR é maior que todos os deuses; porque na coisa em que se ensoberbeceram, os sobrepujou”.72

Ora, os judeus, mesmo configurados como monoteístas, na visão de Rousseau, representavam de forma clara e absoluta a união entre o poder espiritual e secular73. Moisés é o grande representante dessa aliança, firmada não somente entre homens para com homens, mas há uma sacralização da ideia de poder, tornado-o assim absoluto, pois desobedecer a um dos dois lados consequentemente é declarar guerra à unidade da sociedade74.

A relação estabelecida por Moisés segue a ordem clássica da antiguidade. Após a fuga do Egito75, Moisés sente a necessidade de fundar uma nova ordem e identidade para aquele povo. O que ocorre é que durante o domínio dos egípcios os Hebreus tinham como ponto de referência a identidade e a autoridade do Faraó, que não só falava em nome dos deuses, mas ele mesmo era referenciado como um deus. O Faraó unia em seu cetro as duas referências, política e religiosa. A lei, a política e a religião no Egito seguiam o mesmo padrão: não reconhecer essa unidade era um ato de rebeldia.

Como os hebreus estavam sob o domínio dos egípcios, sua identidade enquanto povo estava atrelada a eles e a sua unidade política e religiosa, também. No momento da fuga, liderada por Moisés, a coisa muda de figura. Longe da unidade do Faraó, quem agora de fato representa a unidade é Moisés. Moisés possui uma sublime percepção como Legislador; entende que se não reunificasse o processo entre política e religião, sobre a retomada de um território, perderia o poder. Ao perceber que sua autoridade junto ao povo estava ameaçada, recorre imediatamente à unificação entre o que é divino e o que é humano, como cita Rousseau:

71 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo. Livro IV, Capítulo VIII. p. 138. 72 Cf: Êxodo 18:11.

73 Cf. PACKER, J. I. TENNEY, M. G. WHITE, JR. W. O mundo do antigo testamento. São Paulo: Vida.

p. 78.

74 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. P. 138. 75 Os Judeus foram levados cativos para o Egito por volta de 1700 a.C, o povo judeu migra para o Egito,

porém são escravizados pelos faraós por aproximadamente 400 anos. A libertação do povo judeu ocorre por volta de 1300 a.C. A fuga do Egito foi comandada por Moisés, que recebe as tábuas dos Dez Mandamentos no monte Sinai. Durante 40 anos ficam peregrinando pelo deserto, até receber um sinal de Deus para voltarem para a terra prometida, Canaã. Cf: BRIGHT. JOHN. História De Israel. São Paulo: Paulus, 2006.

Desse modo, pois, o Legislador, não podendo empregar nem a força nem o raciocínio, recorre necessariamente a uma autoridade de outra ordem, que possa conduzir sem violência e persuadir sem convencer76

Desse modo, Moisés recorre ao mesmo raciocínio usado pelos egípcios, e uniu sobre si a autoridade política de seu povo, com a força religiosa, promulgando o decálogo77. As tábuas da Lei, na visão de Rousseau, não constituem um mero evento de ordem religiosa, mas dão ao Legislador autoridade política divina, pois ele exercerá o poder em nome de Deus, e assumir Deus é sem dúvida alguma assumir a sua Lei:

O Legislador age como se fosse um emissário divino ou um deus feito homem, mas na verdade é a razão encarnada e sua atividade é puramente racional. Individualidade encarnada e sua atividade é um simulacro da divindade (...)78

Os judeus, mesmo monoteístas, configuravam em sua estrutura uma religião nacional, não separavam a ideia de um código civil, (as tábuas da Lei) de um código religioso (a torá). As duas coisas são uma e mesma coisa, a lei para o judeu vale não somente para o templo, mas para a sociedade como um todo:

Nessa perspectiva, o autor mostra que todas as antigas religiões, até mesmo a judaica, foram nacionais na sua origem, foram apropriadas e incorporadas ao Estado, formando sua base ou pelo menos fazendo parte do sistema legislativo”79

Ora, os judeus tinham uma unidade em sua sociedade, e uma unidade densa que mesmo diante de vários exílios, conseguiu manter-se longe das tentações de miscigenação das raças. Isso explica, segundo Rousseau, alguns motivos para as perseguições sofridas durante a sua história. Aqui vamos seguir o raciocínio de Rousseau com relação ao exílio na Babilônia.

A religião é, portanto, a identidade de um povo, a representação do poder divino em formas humanas; assumir uma religião nacional é assumir um

76 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro II, Capítulo VII. p. 59. 77 Cf: Êxodo 20:2-17. É repetido novamente em Deuteronômio 5:6-21, usando palavras similares. 78 FORTES. L. R. S. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Editora Ática. p. 100.

Estado e colocar o seu deus à frente dessas bandeiras. A guerra entre os povos era um conflito de guerra político-teológica80, perder a guerra era obrigar-se a assumir a religião dos vencedores, pois assim seria configurada a sua relação de obediência à autoridade dos conquistadores.

Logo, afirma Rousseau “(...) a obrigação de mudar de culto era a lei dos

vencidos, necessário se faz por vencer [um povo81] antes de falar nisso”.82 Ora o domínio político e territorial demarcava a introdução de uma nova ordem sustentada pela tríade política, religião e território; os dominados haviam de encarar a sua existência não mais como uma realidade apenas de seus limites, mas no momento em que eram anexados por algo maior, sua Tríade havia de ser abandonada e deveriam assumir a relação de poder advinda do dominador. O que ocorre nessa experiência é que no momento da conquista de um povo por outro, o que estava em jogo não era meramente a imposição de uma crença religiosa, mas a manutenção da ordem do corpo político. Assumir os novos deuses é, de forma clara e categórica, assumir as novas leis, pacificar o ambiente e estabelecer a manutenção do Estado.

O conflito com os judeus na Babilônia, tomado como exemplo, não fora representado meramente por um conflito religioso, e Rousseau parece decretar o destino dos judeus, pois como aconteceu na antiguidade permanece na época moderna. A perseguição contra os judeus se dá pelo fato de que esse povo recusa-se a reconhecer a autoridade das leis advindas dos conquistadores e de seu projeto pacificador. Os judeus não conseguiram abandonar a Lei e pagaram um alto preço por isso.

Quando, porém, os judeus, submetidos aos reis da Babilônia e em seguida aos da Síria, obstinadamente não quiseram reconhecer nenhum outro Deus além do seu, essa recusa, considerada como uma rebelião contra o vencedor, incitou contra eles a perseguição que se encontram na sua história e das quais não se conhece outro exemplo antes do cristianismo83

O ato de desobediência dos judeus a essa situação passa longe de ser um ato de inspiração religiosa. Recusar uma nova dimensão religiosa no caso

80 Isso indica que o objetivo do conquistador não estava centrado somente na imposição de sua dimensão

religiosa, via um proselitismo, mas a conquista era também política e territorial.

81 Grifo meu.

82 ROUSSEAU. J.J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural. Livro IV, Capítulo VIII. P. 140. 83 Ibidem. P. 138 e 139.

a dos babilônicos, nada mais seria do que a quebra da unidade social daquele povo. Aceitar um “novo deus” seria aceitar uma nova lei, que os condenaria à dissolução ou à incorporação completa por parte daquele Estado. Logo, o conflito entre os judeus e os povos que os submeteram não é propriamente um conflito de religião, destaca Rousseau, afinal, não se trata aqui de um embate entre duas confissões de um mesmo credo, ou de um embate proselitista, mas há uma crise com relação à tríade religião, política e território. Não se tratava de desobedecer ao Rei meramente, mas parece aqui configurar uma espécie de insubordinação clássica, uma desobediência civil, visto que o Rei e a religião se equivalem.84

Contudo, a experiência judaica com relação ao território é clara e objetiva: quando se reconhece a unidade dentro do Estado, não existem dois senhores, mas um somente.

O efeito desse modelo de intolerância religiosa politicamente apresenta- se, com o passar do tempo, como um grande complicador. Se conquistar um povo é também submetê-lo às leis e a religião do conquistador, isso já nos alerta que essa relação não será de modo algum de fácil identidade.

Os povos conquistados possuíam uma identificação territorial, religiosa e política, e mesmo sendo afastados de seu território, como é o caso dos judeus, a unidade política e religiosa, os mantinha vivos na esperança de reconquistar o seu território e ali prosseguir com o culto ao seu deus e a sua regulação política e social.

Submeter política e religiosamente um povo conquistado apresentou-se ao longo da história como um grande problema. Se dois deuses não podem coexistir por tratar-se de religiões nacionais, um teria que dar lugar ao outro. As resistências aí eram ferozes, o que provocava um estado de conflito permanente, afinal o discurso teológico é o discurso político. Isso tornava esse modelo de religião complexo de ser sustentado quando um Estado possuía objetivos conquistadores. Rousseau reconhece esse problema:

As religiões nacionais são úteis ao Estado como partes de sua constituição, isso é incontestável, mas elas são nocivas ao gênero humano e mesmo ao Estado, em um outro sentido85

84 Ibidem.

Por conta dessas objeções sobre a pacificação dos povos, observamos o advento de uma nova forma de religião nacional, o modelo romano.

Os romanos trazem em sua experiência de conquista um ponto de referência novo com relação aos demais povos antigos, até mesmo os gregos. Ao contrário dos gregos, os romanos não reconheciam nos deuses estrangeiros semelhanças entre os seus deuses e os deles, muito pelo contrario, os romanos usavam de uma espécie de diplomacia para com esses deuses, os convidando a fazer parte de seus inúmeros espaços territoriais. Este será o tema abordado a seguir.

No documento MESTRADO EM FILOSOFIA São Paulo 2010 (páginas 33-38)