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A REORGANIZAÇÃO DO HOSPITAL E O DISCIPLINAMENTO DOS CORPOS: O PODER COMO EXERCÍCIO E O SABER COMO

3 EM BUSCA DE TÔNUS TEÓRICO ÀS INQUIETAÇÕES DA PESQUISADORA

3.4. A GENEALOGIA DAS PRÁTICAS DE CUIDADO E SUAS CONFIGURAÇÕES HISTÓRICO-SOCIAIS

3.4.3 A REORGANIZAÇÃO DO HOSPITAL E O DISCIPLINAMENTO DOS CORPOS: O PODER COMO EXERCÍCIO E O SABER COMO

REGULAMENTO

Sendo a medicina uma prática aliada aos interesses políticos, o avanço da medicina vem “favorecer a reorganização dos hospitais que agora irão desempenhar importante papel, não só como agentes da manutenção da força de trabalho, mas também como empresas produtoras de saúde.” ( GEOVANINI, 2002, p. 23-24).

O capitalismo, juntamente com a Revolução Industrial, levou a um aumento expressivo da população urbana, crescimento desordenado das cidades, em que as condições de higiene, alimentação e moradia eram precárias. Com a demasiada valorização do capital e da produção, a recuperação da força de trabalho foi enfatizada a tal ponto que o homem nesse sistema tinha que produzir e para isso necessitaria de um corpo livre de doença.

A doença era vista como um obstáculo à produtividade, e o corpo, como objeto/instrumento à mercê de tais expectativas. Assim, a saúde passou a ser tratada como um objeto de consumo, como forma de fortalecer o poder econômico com vistas à produção de riquezas, conforme já foi referido na segunda configuração

Portanto, o corpo precisaria ser disciplinado para ser manipulado. Tratava- se de submeter o indivíduo de um espaço fechado a outro, produzindo-se uma demarcação nos sentidos espacial e temporal.

No que se refere ao aspecto espacial, espaços de confinamento foram organizados (escola, fábrica, caserna, prisão, hospital) sob vigilância constante.

Os hospitais, concebidos como locais de cura, adotaram como princípio a constante observação da doença e do doente, por meio de registros contínuos, possibilitando, assim, auxiliar a medicalização de tal espaço, havendo uma

transformação do sistema de poder no seu interior, que até meados do século XVIII estava a cargo de pessoal religioso. Segundo escritos de Foucault, em 1792, a Assembléia Legislativa da época, apesar de ter declarado a dissolvição de todas as corporações religiosas e de mulheres e homens eclesiásticos ou leigos, no que tange à assistência aos pobres e doentes, manteve na maioria dos hospitais tais ordens religiosas ou leigas, apoiada no decreto que rezava:

Nos hospitais e casas de caridade, as mesmas pessoas continuarão como antes o serviço dos pobres e o cuidado dos doentes a título individual, sob a vigilância dos corpos municipais e administrativos, até a organização definitiva que o Comitê de Assistência apresentará incessantemente à Assembléia Nacional.(2004, p. 46).

Dessa forma, o modelo dito monástico perdurou até o século XVIII, não havendo um rompimento brusco, mas uma transformação nos mecanismos de poder do Estado, em que se estabeleceram os princípios de vigilância e controle das ordens religiosas e organizações leigas responsáveis pelas práticas de cuidado.

O médico dos séculos XVII e XVIII permanecia a distância dos doentes, observando apenas as marcas superficiais e imediatamente visíveis, sem um maior contato direto. Foi a partir do final do século XVIII que houve uma expressiva mudança: o mesmo se aproxima do doente em busca de logo atrás da superfície visível, através das técnicas de palpação e ausculta rumo a uma maior fidelidade a dados sensíveis. Estabelece-se, assim, uma relação entre sujeito cognoscente e

objeto conhecido, norteada pelos princípios da racionalidade. (FOUCAULT, 2004).

Segundo Foucault (1979), a medicalização do espaço hospitalar não se deu em busca de uma ação positiva sobre o doente e sobre a doença, mas buscava anular os efeitos negativos do hospital, normatizando e regulamentando o espaço em questão, distribuindo os doentes de modo que pudessem ser vigiados por meio de registros sistemáticos.

Assim, a disciplinarização do espaço hospitalar é garantida pela distribuição espacial dos indivíduos no seu interior, pela vigilância perpétua e pelo controle do desenvolvimento das ações, utilizando um esquema administrativo composto por um conjunto de técnicas em busca do alcance dos objetivos.( FOUCAULT, 1979).

Em relação ao aspecto temporal, uma outra demarcação proposta pelo capitalismo, os corpos são automatizados, mecanizados no interior dos dispositivos institucionais (escola, fábrica, caserna, prisão, hospital), tolhendo assim a capacidade de criação humana no processo produtivo, onde o corpo se constituía em peça de uma maquinaria multissegmentar (redução funcional).

Silva ensina que “o poder disciplinar se encarregará então de vincular cada indivíduo a uma identidade bem determinada de uma vez por todas, e criar assim a idéia de uma subjetividade privatizada”. (2001, p. 35).

As disciplinas, de acordo com Foucault (2003, p.180), “devem ser tomadas como técnicas que permitem ajustar, segundo esse princípio, a multiplicidade dos homens e a multiplicação dos aparelhos de produção (e como tal deve-se entender não só a ‘produção’ propriamente dita, mas a produção de saber e de aptidões na escola, a produção de saúde nos hospitais, a produção de força destrutiva do exército)”. Nesse contexto, vê-mos emergir a instituição de uma rede de micropoderes, incluindo o uso do espaço, as práticas cotidianas e o tempo, objetivando dividir o corpo em partes, treiná-lo rumo a uma maior eficiência, integrando o corpo na vida social e econômica.

Para ilustrar, ainda traz-se em foco as próprias fábricas com suas linhas de produção, priorizando estudos de tempos e movimentos através da divisão do trabalho.

diferentes formas de organização do processo de trabalho, sendo que a valorização do capital é uma dinâmica própria da sociedade capitalista. Nesse tipo de sociedade, a divisão do trabalho constitui-se numa primeira forma de organização, segundo os objetivos.

Particularmente, no que tange ao hospital, esse também adotou os princípios da Escola Clássica e Científica da Administração visando a racionalizar o trabalho, pelos princípios (espacial e temporal) primeiramente utilizados na organização do trabalho nas indústrias, trazendo uma nova configuração para a própria realização do cuidado e sua gestão, em uma lógica de subjetivação capitalística.

Vale dizer, que a evolução crescente dos hospitais não melhorou, entretanto, suas condições de salubridade, havendo um alto número de doenças infecto-contagiosas, e à falta de pessoas preparadas para o cuidado.

Em meio às transformações aqui ventiladas, a partir do século XIX, na Inglaterra, surge a Enfermagem como profissão, tendo como precursora Florence Nightingale que institucionalizou o ensino de enfermagem, criando a primeira Escola de Enfermagem em 1860, que formava ladies nurses para se responsabilizarem pela administração dos hospitais e as nurses para prestarem assistência aos pacientes. Surge, assim, conforme aponta a literatura, a divisão técnica e social do trabalho de enfermagem, ou seja, as ladies nurses deveriam pensar em administrar o trabalho, e as nurses deveriam executá-lo.

Pode-se analisar também, seguno Geovanini, a “presença da mulher na enfermagem e à subordinação da classe à categoria médica, essencialmente masculina. Posto que as tarefas femininas, historicamente falando, sempre tiveram menor prestígio social e sempre estiveram dissociadas do saber intelectual.” (2002,

p. 27).

Nessa época, as práticas de cuidado começam a ser realizadas adotando um estilo de gerência com ênfase na normatização do “ambiente terapêutico segundo os princípios da unidade de comando, do controle, da divisão e especialização do trabalho, aplicados até então, somente nas indústrias”. (SPAGNOL, 2002, p.119).

Pensando na divisão técnica e social do trabalho na época de Florence, é preciso lembrar que tal divisão/dicotomia já existia de certa forma em momentos históricos anteriores, mas com um pano de fundo diferente em relação ao século XIX. A própria sociedade primitiva já apontava uma divisão social do trabalho no seio familiar (trabalho entre homens e mulheres). Um outro fato pode ser trazido pelos próprios sacerdotes, no período mágico-religioso, com a instituição de categorias intra-sacerdotais, segundo os saberes adquiridos, aparecendo claramente uma valorização do trabalho intelectual. Ressalta-se, ainda, a ocorrência de uma estratificação social (ricos versus pobres) em se tratando de acesso no atendimento pelos sacerdotes.

Portanto, a institucionalização da Enfermagem manteve viva a divisão técnica e social do trabalho, exercitada em outras sociedades/em outros momentos da História, não se caracterizando como algo novo, mas com uma roupagem diferente, tendo em vista as necessidades impostas pelo capitalismo. Florence, diante de um contexto em que as práticas de cuidado eram responsabilidade, em sua grande parte das religiosas, procurou organizar tal espaço.

Baseando-nos nos estudos de Foucault acerca das transformações do hospital, no que tange ao poder e à disciplina, pode-se dizer que Florence procurou ajustar a profissão ao momento histórico vigente, considerando que o hospital

passava por várias transformações, em especial as da estrutura do poder, quando o médico assume a responsabilidade pelos hospitais, e a Enfermagem -- que atuava independentemente no referido espaço -- passa a reparti-lo com o médico numa situação de inferioridade hierárquica; conseqüentemente, há uma construção de conhecimentos do senso comum.

Tomando ainda como referência a institucionalização da Enfermagem e a divisão técnica e social do trabalho, o foco da atuação das chamadas ladies nurses não era essencialmente o cuidado, visto que as mesmas recebiam um ano de instrução, incluindo-se no currículo aulas sobre administração e chefia, bem como a realização de mais dois anos de prática. Em relação às nurses, o curso não oferecia preparo em administração, estando programado um ano de instrução e mais três anos de prática supervisionada.

Nightingale, em sua obra Notas sobre a Enfermagem explicita o

conhecimento de administração como essencial, atribuindo, portanto, relevância significativa à função gerencial do enfermeiro:

Todos os benefícios de uma boa enfermagem apresentados nestas notas podem ser completamente anulados por deficiência, por exemplo, na administração básica, ou melhor, por se ignorar como proceder para que o que é feito quando se está presente o seja também quando se está ausente. (1989, p. 43).

Os princípios de fraternidade, abnegação e amor a Deus propalados por Florence surgiram como forma de afastar a visão que se tinha (na Europa) de um cuidado que era exercido por pessoas imorais, ficando assim o mais próximo possível do que realizavam as associações religiosas, porém laicas.

Os fundamentos que nortearam a criação da escola de enfermagem como: regras, normas, horários rígidos, divisão do ensino por classes sociais, eram o reflexo do próprio sistema social, político e econômico da época, com ênfase na disciplina e no controle.

Vale lembrar que o poder disciplinar da referida época, confiado ao médico, no que tange às funções controladoras do pessoal de Enfermagem, passa a ser delegado ao enfermeiro que, “imbuído da falsa convicção de participar da esfera dominante, será subtilizado em benefício da manutenção da ordem e da disciplina, indispensáveis à preservação do monopólio do poder institucional”. (GEOVANINI, 2002, p. 24-25).

É importante mencionar que a Enfermagem moderna enfatizou mais o treinamento disciplinar do pessoal hospitalar do que propriamente o início da produção do saber de enfermagem, havendo uma economia de tempo e movimento, para dar conta das tarefas hospitalares.

A criação da profissão enfermagem na Inglaterra coincide com as transformações evidenciadas por Foucault no espaço hospitalar, estabelecendo o vínculo entre o saber de enfermagem e o saber médico, numa situação de subordinação, reforçando aqui mais uma vez que até o século XVIII, quem dominava o espaço hospitalar eram as Irmãs de caridade.

Assim, a Enfermagem apresenta a característica da divisão técnica do trabalho, com uma prática parcelada em tarefas, procedimentos e responsabilidades diferentes, cabendo também essa execução parcelada a diferentes agentes.

Com essa nova hierarquia, nasce uma dicotomia entre concepção e execução do trabalho de enfermagem, existente até os dias atuais. Portanto, pode- se dizer que a prática de enfermagem não tem sido exercida em toda sua extensão pela figura do enfermeiro, o que pode significar um espaço perdido ou ainda não- conquistado. No trabalho existe uma unidade de concepção e execução que,

não é inviolável a unidade entre a força motivadora do trabalho e o trabalho em si mesmo, podendo esta unidade ser dissolvida. A concepção pode ainda continuar e governar a execução, mas a idéia concebida por uma pessoa pode ser executada por outra. (ALMEIDA; ROCHA, 1986, p.71).

Fica nítido que a dicotomia entre concepção e execução (intelectual e manual) traz como conseqüência uma alienação em relação aos processos de produção do trabalho, mas, por outro lado, reforça a concentração de poder, aumentando o controle capitalista.

Para Guattari (1995, p. 33), a produção capitalística abarcou distintos campos da vida, “ampliando o seu domínio sobre o conjunto da vida social, econômica e cultural – e em ‘intenção’-- infiltrando-se no seio dos mais diversos modos de se produzir, sentir, pensar e de cuidar”. Portanto, o referido modo de produção é também produtor de subjetividades que se encontram comprometidas.

Dentro da mencionada lógica de produção, visualiza-se a formação da

terceira configuração das práticas de cuidado: práticas de cuidado sistematizadas,

circundadas por mecanismos disciplinares, abarcando o incremento das novas tecnologias advindas dos princípios capitalistas, com uma intensa mudança entre as forças produtivas e os meios de produção, baseadas em um trabalho normativo, apoiadas ainda em um regime de verdade, tendo o poder como exercício e o saber como regulamento.

No modo capitalista, a saúde é tida como mais um bem a ser comercializado e que, paradoxalmente, ao ser consumida como mercadoria se esgota.

As instituições, com destaque aqui para o espaço hospitalar, são conceituadas como modelagem de regras e normas. Da fragmentação emerge a necessidade da equipe numa perspectiva de restabelecimento que também se esfacela numa outra instituição: a divisão técnica e social do trabalho, com base normativa e que se compõe de regras e manuais.

sujeitados, ou seja, capturados numa dimensão imaterial que impede a criação de uma maquinaria de guerra através de mecanismos coletivos de inibição que consistem, segundo Deleuze e Guattari :

distribuir aos homens um espaço fechado, atribuindo a cada um sua parte e regulando a comunicação entre as partes [...] dentro de um espaço sedentário que chamam “espaço estriado”, cercado por muros, limitado nas suas partes, as quais são atribuídas direções constantes, opostamente ao que denominam de “espaço liso”, “um espaço aberto, conforme freqüências e ao longo dos percursos. (2002, p. 51-88).

Os mesmos autores tecem, ainda, que:

o que nos interessa são as passagens e as combinações, nas operações de estriagem, de alisamento. O espaço é constantemente estriado sob a coação de forças que nele se exercem, mas também como ele desenvolve outras forças e secreta novos espaços lisos através da estriagem. Mesmo a cidade mais estriada secreta espaços lisos; habitar a cidade como nômade, ou troglodita. Às vezes bastam movimentos, de velocidade ou lentidão, para recriar espaço liso. Evidentemente os espaços lisos por si só não são liberadores. Mas é neles que a luta muda, se desloca, e que a vida reconstitui seus desafios, afronta novos obstáculos, inventa novos andamentos, modifica os adversários. Jamais acreditar que um espaço liso basta para nos salvar. (2002, p. 214).

Portanto, há um processo de captura sobre fluxos, de populações, de mercadorias e de capitais que necessita de trajetos bem definidos, fixos que mensurem nos seus detalhes os movimentos relativos dos sujeitos e dos objetos.

Para que o sistema capitalístico opere tendo em vista as transformações dos modos de valorização dos bens e das atividades humanas, é imprescindível que se apóie em um regime de verdade, o qual, que segundo Foucault, diz respeito a um “conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se vinculam ao verdadeiro efeito específico do poder”. (1975, p. 26).

“Entre o poder e o saber há diferença de natureza, heterogeneidade; mas há também pressuposição recíproca e capturas mútuas; e há finalmente, o primado de um sobre o outro.” (DELEUZE 19-- p. 102).

SILVA aborda que há uma relação íntima entre o modo de subjetivação capitalístico e o sistema de racionalidade, visto que

há uma complementaridade intrínseca entre ambos e que esse sistema de racionalidade vai dar, de certo modo, uma “legitimidade científica” ao princípio de equivalência generalizada que se encontra na base do novo tipo de relação consigo caracterizado pela invenção do indivíduo moderno.(2001, p. 39).

Desse modo, cada formação histórica apresenta em sua particularidade determinados atravessamentos, a partir das relações que se estabelecem entre os poderes, saberes e verdades e, no que concerne à sociedade capitalista, há uma captura das subjetividades, tornando-a serializada e dominada dentro de uma tal lógica de produção, apoiadas por princípios de racionalidade, enquanto expressão da verdade, transformando notavelmente a relação consigo.

Essa dinâmica à racionalidade impõe uma separação entre sujeito e objeto, dada pela conformação de um método científico que garanta a objetividade do conhecimento produzido, paradigmaticamente imaginado, como aquele que poderá fazer sentido e significar verdades para os outros, mesmo que esses não saibam disso, e, assim, validando-se como ciência e conhecimento cientificamente legitimado (construção de formas de conhecimento e de saberes enquadráveis no campo legitimado e validado como científico).

3.4.4 O FORTALECIMENTO DAS PRÁTICAS MÉDICO-HOSPITALARES: A