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4 O CAMPO DE CONTROLE DO CRIME E O SUBCAMPO DAS AGENCIAS

4.1 Representações sociais

O campo do controle do crime examinado em capítulo anterior, como qualquer outro campo proposto por Bourdieu “deve ser considerado como um solo fértil para a produção das representações sociais. Tanto a natureza do campo, como suas disposições e crenças são constitutivas das representações sociais, assim como são constituídas por elas” (FREIRE; AZEVEDO, 2010, p.10).

Para Porto (2010), o conceito de representações sociais surge da reinterpretação do conceito durkheimiano de representações coletivas20 por Serge Moscovici, que desenvolveu os seus trabalhos na área da Psicologia Social. Enquanto o conceito de Durkheim destaca a coerção, a generalidade e a exterioridade dos fatos sociais que tornam a sociedade coesa, preservada e estática; Moscovici (2003) destaca a dinamicidade dos fatos sociais, investigando tanto a conservação quanto a mudança social. Como a vida social se constrói e adquire sentido através de processos sociais, que funcionam como uma ponte entre o indivíduo e o coletivo, as

20Segundo Pinheiro Filho (2004, p. 141): “Durkheim associa a oposição encontrável nos fatos entre corpo e alma àquela que desenvolve nas Formas entre sagrado e profano. Existe uma hierarquia entre as funções psíquicas que redunda numa sacralização da alma em relação à pouca nobreza do corpo profano: ‘A dualidade de nossa natureza não é portanto senão um caso particular daquela divisão das coisas em sagradas e profanas que encontramos na base de todas as religiões, e ela deve se explicar segundo os mesmos princípios’ (Id.:327). Ora, as coisas sagradas têm uma autoridade que impõe às vontades individuais como efeito da operação psíquica de síntese das consciências individuais em que se dá sua gênese. Os estados mentais gerados nesse processo encarnam-se em idéias coletivas que penetram as consciências individuais permitindo sua comunicabilidade. Para além das manifestações da biologia humana, esses estados da consciência ‘[...] nos vêm da sociedade; eles a traduzem em nós e nos atam a alguma coisa que nos supera. Sendo coletivos, eles são impessoais; eles nos dirigem a fins que temos em comum com os outros homens’ (Id.: 328). A dualidade da natureza humana guarda uma homologia estrutural com a dualidade de fontes que conformam o homem; quais sejam, o corpo biológico e a sociedade”.

representações não são fixas, mas resultantes da interação entre os diferentes sujeitos.

Segundo este autor, representações sociais são:

[...] um sistema de valores e práticas, com uma dupla função: primeiro, estabelecer uma ordem que possibilitará às pessoas orientar-se em seu mundo material e social e controla-lo; e, em segundo lugar, possibilitar que a comunicação seja possível entre os membros de uma comunidade, fornecendo-lhes um código para nomear e classificar, sem ambiguidade, os vários aspectos de seu mundo e da história individual e social. (MOSCOVICI, 2003, p. 21).

Em linhas gerais, o conceito refere-se à concepção de um indivíduo ou de um grupo sobre algum assunto, sendo ela ao mesmo tempo individual e coletiva, e se refletindo sobre as condutas cotidianas e os valores sociais. Aprofundando o conceito, Porto (2004, p. 254) detalha que as representações sociais:

[...] a) embora resultado da experiência individual, [...] são condicionadas pelo tipo de inserção social dos indivíduos que as produzem; b) expressam visões de mundo objetivando explicar e dar sentido aos fenômenos dos quais se ocupam, ao mesmo tempo em que, c) por sua condição de representação social, participam da constituição desses mesmos fenômenos; d) em decorrência do exposto em ´b´, apresentam-se, em sua função prática, como máximas orientadoras de conduta; e) em decorrência do exposto em ´c´ pode-se admitir a existência de uma conexão de sentido (solidariedade) entre os fenômenos e suas representações sociais, que, portanto, não são nem falsas nem verdadeiras mas a matéria prima do fazer sociológico. PORTO, 2004, p. 254)

A autora (PORTO, 2010, p. 68) ressalta, ainda, que o conhecimento adquirido através das representações sociais é oriundo de uma releitura do social, sendo, portanto, de segundo grau. Esta característica não desmerece esse tipo de estudo, uma vez que, em sua visão, apreender a realidade a partir do que se pensa sobre ela é essencial para o desenvolvimento das ciências.

Em sua elaboração pela Psicologia Social, o conceito emergiu evocando não apenas o indivíduo, mas também o contexto de socialização, onde são produzidas as representações:

[...] as imagens, as ideias e a linguagem compartilhadas por um determinado grupo sempre parecem ditar a direção e o expediente iniciais com os quais o grupo tenta se acertar com o não-familiar. O pensamento social deve mais à convenção e à memória do que à razão; deve mais as estruturas tradicionais

do que às estruturas intelectuais ou perceptivas correntes. (MOSCOVICI, 2003, p. 57).

Na figura subsequente é apresentado o esquema elaborado por Spink (1993) acerca das representações sociais e de como elas se tornam uma forma de conhecimento prático, em suas múltiplas dimensões como formas de conhecimento. Enquanto no primeiro eixo as formas de conhecimento prático são “orientadas para a compreensão do mundo e para a comunicação”; no segundo “elas emergem como elaborações (construções de caráter expressivo) de sujeitos sociais a respeito de objetos socialmente valorizados.”. (SPINK, 1993, p. 301). Tais dimensões problematizam a centralidade do conhecimento formal, uma vez que as representações sociais se associam ao conhecimento prático, do senso comum.

Figura 7 - Esquema sobre a produção de representações sociais

Fonte: Spink (1993, p. 301).

O estudo de Spink (1993) enfoca a “teia de significados que sustenta o nosso cotidiano e sem a qual nenhuma sociedade pode existir [...] [tratando] sobretudo, de situá-la como teia de significado capaz de criar efetivamente a realidade social.” (SPINK, 1993, p. 303). Assim, as formas de pensamento/conhecimento prático são socialmente estruturadas (e a compreensão delas perpassa as suas condições de produção), assim como se constituem em núcleos estruturantes da realidade social, tendo um papel criador. No primeiro caso – em que as estruturas já estão estruturadas – percebe-se uma continuidade entre passado, presente e futuro; entretanto, em

pesquisas empíricas, “frequentemente, a concomitância de conteúdos mais estáveis e de conteúdos dinâmicos, mais sujeitos à mudança [...], são tanto a expressão de permanências culturais como o locus da multiplicidade, da diversidade e da contradição.”. (SPINK, 1993, p. 305). Acrescenta-se que as representações são produzidas e apreendidas pela dinamicidade da comunicação social.

Neste aspecto, Spink (1993) elabora outro esquema (vide Figura 8), que demonstra a permanência e a continuidade do imaginário social. Percebe-se que para essa autora (idem) o imaginário social é permeável às representações hegemônicas (epistéme) de determinada época histórica; as quais, por sua vez, são reinterpretadas pelas disposições adquiridas pelos indivíduos de determinado grupo social (habitus), assim como pelo sistema de normas. No entanto, tanto as representações hegemônicas quanto as reinterpretações são “alimentadas” pelos produtos da ciência:

Aceitar a diversidade implícita do senso comum, entretanto, não significa abrir mão do consenso, pois algo sempre sustenta uma determinada ordem social: pressupostos de natureza ideológica, epistémes historicamente localizadas ou, até mesmo, ressonâncias do imaginário social. Afinal, as representações são elaboradas a partir de um campo socialmente estruturado e são frutos de um imprinting social. Mas, como aponta Morin (1983), há zonas fracas neste

imprinting que permitem com que haja movi- mento, mudança, abertura à novidade, novas formas de ancorar fatos pouco familiares. Ou seja, parece lícito afirmar que, se de um lado buscamos os elementos mais estáveis, aqueles que permitem a emergência de identidades compartilhadas, de outro trabalhamos com o que há de diferente, diverso e contraditó-rio no fluxo do discurso social. (SPINK, 1993, p. 306).

Figura 8 - As representações sociais na teia de significados construídos pelo homem ao longo da

História

Por outro lado, quanto à ideia de que as representações seriam também núcleos estruturantes, Spink (1993) destaca o processo enquanto práxis, funcionalidade e manutenção da ordem social. Ou seja, elas orientam as condutas e as comunicações (função social), protegem e legitimam identidades sociais (função afetiva), permitem a familiarização com o estranho (função cognitiva).

No tocante à função cognitiva, Spink (1993) retoma os princípios de ancoragem e objetivação, elaborados por Sergei Moscovici (2003). O primeiro é entendido como a inserção orgânica do estranho no pensamento já constituído; ou a domesticação do diferente. Em suas palavras:

Ou seja, ancoramos o desconhecido em representações já existentes. Moscovici (1978) a concebe como um processo de domesticação da novidade sob a pressão dos valores do grupo, transformando-a em um saber capaz de influenciar, pois “nos limites em que ela penetrou numa camada social, também se constitui aí num meio capaz de influenciar os outros e, sob esse aspecto, adquire status instrumental”. Em suma, a ancoragem é feita na realidade social vivida, não sendo, portanto, concebida como processo cognitivo intra-individual. (SPINK, 1993, p. 306).

Já o segundo princípio, o da objetivação, é descrito como o processo posterior à ancoragem, pelo qual as representações sociais são cristalizadas em imagens, transformando-se de abstratas em concretas. Esse processo envolve três momentos “a descontextualização da informação através de critérios normativos e culturais; a formação de um núcleo figurativo, [com] a formação de uma estrutura que reproduz de maneira figurativa uma estrutura conceitual; e a naturalização”. (SPINK, 1993, p. 306). Em adendo, Spink (1993, p. 307) lembra que “O indivíduo, nesta perspectiva, seguindo a tradição vigotskiana (VIGOYSKY, 1978), é sempre uma entidade social e, como tal, um símbolo vivo do grupo que ele representa”:

Assim, o indivíduo no grupo, próprio das abordagens quantitativas, pode ser abordado como sujeito genérico — como o grupo no indivíduo —, contanto que tenhamos uma compreensão adequada do contexto social por ele habitado: seu habitus e a teia mais ampla de significados na qual o objeto de representação está localizado. É esta, possivelmente, a contribuição mais valiosa da Psicologia Social para o estudo das representações sociais: a ênfase no processo de elaboração das representações a partir das práticas sociais que as definem e que são por elas definidas, bem como a abertura da possibilidade de se trabalhar o particular como expressão do universal, através de estudos de caso social e historicamente contextualizados. (SPINK, 1193, p. 307).

Utilizar as representações sociais como um conceito teórico-metodológico se faz relevante nessa pesquisa pois possibilita compreender os entendimentos que balizam as atividades no subcampo das polícias e do controle do crime, da mesma forma que acaba evidenciando a práxis inerente a tal espaço social. Deste modo, a partir desse conhecimento prático é possível desvelar as estruturas e relações de poder subjacentes às distintas posições do subcampo, uma vez que o conhecimento advindo das representações sociais a partir daquilo que os próprios agentes destacam como relevante em suas práticas sociais.

5 ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EMERGENTES DA PESQUISA