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2.2 A Polícia na Sociologia

2.2.1 Trabalho policial e cultura policial

Kleingin (1996 apud HAGEN, 2005) aponta que o trabalho policial, apesar de importante para o público e tendo um código de ética, não requer um conhecimento específico adquirido através de um diploma universitário12, nem dispõe de autonomia

12 O ingresso para a PC e PM se dá via concurso público em que a exigência de escolaridade é a de nível médio para os praças na Polícia Militar e de nível superior para a Polícia Civil e para os oficiais da Polícia Militar. No entanto, o concurso para delegado e para oficiais da PM (fora da área de saúde) são os únicos que exigem a formação específica em direito. Para os cargos de escrivão e inspetor de

e auto-regulação. O estudo de Kleingin (1996 apud HAGEN, 2005) também destaca alguns problemas que ocorrem dentro da profissão policial, por exemplo: o da discriminação entre os pares, o do paternalismo e o da alienação policial em que ele se dedicaria mais aos detalhes e não ao quadro geral de determinado problema.

O trabalho policial também está associado ao corpo do profissional desde o ingresso nas corporações, em que uma das etapas obrigatórias é a da prova de aptidão física; bem como pelo fato de que, no seu cotidiano, o policial está propenso a se envolver, em qualquer momento, em algum tipo de conflito violento (NUMMER, 2005; HAGEN, 2005). Além de preparo físico, é necessário que o policial tenha conhecimento jurídico sobre as demandas legais do seu trabalho para que possa desenvolver as atividades cotidianas laborais. No caso da polícia militar, conforme Rolim (2006, p. 24) o policiamento “remete à atividade específica de patrulhamento preventivo, levada a efeito pela presença visível de policiais uniformizados ou fardados que costumam cobrir áreas geográficas definidas, atendendo a uma estratégia centralizada”.

Poncioni (2003) entende a corporação policial como uma atividade profissional pelo fato deste grupo social partilhar valores e ideais a partir de um ideário comum do que é ser o policial, bem como devido ao reconhecimento social por suas atividades. Um dos aspectos mais discutidos pelos estudiosos da temática é a cultura policial13. Como destaca Hagen (2005, p. 51), ao apontar características da atividade policial que impactam a maneira de viver e de se relacionar em sociedade:

O processo de desenvolvimento da personalidade de trabalho do policial seria o seguinte: o elemento de perigo torna o policial especialmente atento aos sinais que indicam a possibilidade de violência, passando a suspeitar das pessoas em geral. Além disso, tem dificuldade para fazer amizades com pessoas de fora da polícia, na medida em que as normas da amizade poderiam implicar em problemas com as normas de seu trabalho. A necessidade de impor o respeito às normas de um comportamento puritano que muitas vezes não cumpre (tais como não beber em demasia, por exemplo) é outro fator que leva ao isolamento social e ao desenvolvimento da solidariedade interna ao grupo de trabalho. (HAGEN, 2005, p. 51).

polícia na PC não há exigência de nenhuma formação superior específica (tendo sido mencionado em entrevistas formação de PC em história, ciências sociais, educação física, direito, letras, etc). 13 Ou as culturas/subculturas policiais, vide: Skolnick (1993), Reuss-Ianni (1983), Reiner (1992), Bittner

Neste sentido, as características com maior proeminência entre esses profissionais, conforme os estudos de Hagen (2005); Kleinig (1996 apud HAGEN, 2005); Reiner (1992 apud HAGEN, 2005) são: a solidariedade entre policiais, a suspeita para com outros indivíduos que não sejam da corporação, a missão do trabalho, o machismo, o ceticismo e o conservadorismo político e moral, assim como a lealdade entre policiais decorrente das dificuldades de convívio com indivíduos fora das corporações policiais e, por fim, os policiais tendem a ser um grupo profissional mais unido do que o de outras profissões.

Para além das características comuns da profissão policial, Reiner (1992 apud HAGEN, 2005, p. 52) diferencia quatro tipos de orientações policiais:

[...] o “bobby”, policial que aplica a lei baseado no senso comum, procurando manter a ordem pública; o “uniform carrier”, cínico e desiludido, que procura trabalhar o menos possível; o “novo centurião”, dedicado a uma cruzada contra o crime e a desordem, valorizando especialmente o trabalho de investigação, e o “profissional”, ambicioso e preocupado com sua carreira, que avalia de forma equilibrada todas as tarefas do policiamento, desde combater o crime até varrer o chão da delegacia (REINER, 2004 apud HAGEN, 2005, p. 52).

Nesta mesma linha, ao defender a existência de mais de uma cultura policial, Haarr (1997) argumenta que em cada instituição há indivíduos com diferentes propensões ao comprometimento organizacional, denotando vários níveis de “adoção” da cultura policial e de entendimento da conduta policial. Monjardet (2003), por sua vez, enfatiza que todas as instituições trabalham em dois níveis: o formal e o informal. O informal seria onde, de fato, a organização funciona, uma vez que as regras e normas necessitam ser interpretadas para serem colocadas em prática. Essa interação entre formal e informal pode potencializar a transformação de novas características e subculturas dentro do campo do controle do crime.

Por sua vez, Reiner (2004) comenta que a cultura policial não é universal, sendo passível de mudanças conforme o local e tempo da sociedade em questão. Todavia, segundo ele o comportamento policial dá preferência às táticas agressivas, com abordagens coercitivas, pois se defrontam com situações perigosas. Conforme o autor, essa prerrogativa acaba por se expressar como uma manifestação do comportamento conservador e autoritário de parte do policial. O autor complementa mencionando que, em diferentes períodos, conforme as demandas político-sociais, os policiais sofreram (e ainda sofrem) pressão política externa para obter determinados

resultados, o que os pode impelir a agir de forma mais agressiva para atingir o resultado esperado.

Também Monjardet (2003) entende que não há homogeneidade entre os policiais, pois estes possuem objetivos e ocupações diferentes na carreira profissional. Para melhor expressar tal diversidade, o autor propõe uma tipologia das diferentes culturas profissionais na polícia (conforme a relação de um policial com os outros policiais, com as demais agências estatais e com a população). Podendo a cultura policial ser aberta (em diálogo e colaboração com as outras esferas e atores) ou fechada (não aberta a colaborações). No tocante à relação com a lei, a cultura policial pode ser vista como: 1) arbitrária, e usualmente um obstáculo à eficácia policial; 2) necessária e devendo ser seguida, 3) contrato, quando exprime os valores sociais e a adesão a eles. As combinações destes elementos aparecem na Figura 4.

Figura 4 - Tipologia das culturas profissionais

Fonte: Monjardet (2003, p.173).

Neste quadro das tipologias das culturas profissionais de Monjardet (2003) cada algoritmo romano representa um perfil policial (as porcentagens dizem respeito ao estudo desenvolvido pelo autor em território francês que resultou em uma “estimativa” de cada perfil na população estudada). O tipo I é representado pelo policial com uma relação distante da lei, mas aberto ao diálogo com a população. Os policiais deste tipo caracterizam-se pela retração, não gostam de utilizar uniforme, possuem certa rejeição à hierarquia e tendem a não ser agressivos. Já o tipo II e o

tipo V são tipos intermediários, em que os policiais tendem a ser mais legalistas (por uma questão de lógica/razão e não por essência – como ilustrado no exemplo de Monjardet (2003) da compra das passagens de trem que não seria feita por ser uma regra em si, mas por um motivo lógico de que se ninguém pagasse não haveria o trem). Esses dois tipos ideais de policiais escolheriam a profissão por questão de “vocação”, embora se diferenciem pela validação ou não junto ao público. Assim, o tipo II entende que a legitimação perpassa a relação com a sociedade, enquanto o tipo V, baseia-se no distanciamento entre polícia e público.

O tipo III é o do grupo dos que entendem o trabalho como socorrer as pessoas em perigo, e a delinquência como oriunda da deterioração econômica e social, para eles, a lei é imperativa. O tipo IV, por sua vez, é o daqueles policiais que percebem que a missão da polícia é o combate à criminalidade, encarando a lei, muitas vezes, como um obstáculo para “meter medo aos delinquentes” (MONJARDET, 2003, p. 175). Por fim, o tipo VI refere-se ao grupo que defende que a polícia deve fazer respeitar a lei, embora os policiais estejam afastados das outras esferas sociais.

Por sua vez, Reuss-Ianni (1983) identifica dois tipos de policiais nos Estados Unidos: o de rua e o encarregado das funções administrativas. De forma análoga, no caso brasileiro, a polícia miliar é a responsável pelo policiamento ostensivo (o de rua), e sua função se estabelece até o momento em que o suspeito de algum delito é levado para a delegacia, que está a cargo da PC. Um caso especial acontece quando o entendimento é de que algum delito cometido é de menor potencial ofensivo, caso no qual se realiza um termo circunstanciado ao invés do inquérito policial14 (HAGEN, 2005).

No estudo sobre a PC gaúcha, Hagen (2005, p. 141) sintetiza o trabalho que ocorre nas delegacias:

A atividade específica da polícia desenvolve-se em grande parte nas delegacias, onde a população faz o primeiro contato com a instituição. Após apresentar o motivo que a levou a procurar a polícia, a pessoa pode ser instruída a procurar outra instituição, mais adequada à sua necessidade, ou preencher um boletim de ocorrência, documento que inicia os procedimentos policiais posteriores. Os boletins de ocorrência são elaborados a partir dos

14 O termo circunstanciado foi criado pela lei n. 9.099 de 26 de setembro de 1995 (BRASIL, 1995), e engloba infrações penais de menor potencial ofensivo, tais como as contravenções, e cuja pena máxima não seja superior a um ano. Posteriormente, a lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001 (BRASIL, 2001), prescreveu como crimes passíveis de termo circunstanciado aqueles com pena de até dois anos ou multa.

dados apresentados ao policial, que nesse primeiro momento faz apenas o registro, transcrevendo da forma mais objetiva possível as informações que recebe. A pessoa que fornece as informações pode ser a vítima de algum delito, o policial (civil ou militar) que fez o primeiro atendimento à situação ou uma testemunha do fato. Após a elaboração do boletim de ocorrência (referido também como BO), há alguns procedimentos possíveis, conforme o caso:

a) encaminhamento a outra delegacia distrital, para os delitos que aconteceram fora da circunscrição da delegacia onde o fato foi registrado;

b) encaminhamento a uma delegacia especializada (Homicídios, por exemplo);

c) encaminhamento à equipe de investigação da própria delegacia; d) encaminhamento ao cartório da delegacia para instauração de inquérito policial (IP) ou termo circunstanciado (TC);

e) quando se constata não se tratar de delito, o boletim fica na secretaria da delegacia, não dando origem a nenhuma outra atividade. (HAGEN, 2005, p. 141).

Já no que toca à Polícia Militar, os serviços prestados são dependentes de diversas variáveis que direcionam as ações, conforme o quadro apresentado por Fraga (2006, p. 12):

Quadro 1 - Variáveis e aspectos do policiamento ostensivo exercido pelos policiais militares

Fonte: Fraga (2006, p.12). Adaptado do Manual Básico de Policiamento Ostensivo da BM, 1999.

Considerando as suas diferentes atribuições, procedimentos e esfera de atuação, a PM e a PC ocupam posições periféricas no campo de controle do crime. Entende-se que o indiciamento policial não leva necessariamente a uma condenação, e o produto do trabalho policial precisa ser validado por um promotor para que se torne

de fato uma questão jurídica (HAGEN, 2005). Portanto, há desigualdade entre as posições ocupadas pelas instituições pertencentes ao campo de controle do crime, e, também, entre ambas as polícias, como ressalta Hagen (2005, p. 73):

As posições ocupadas pelas polícias civil e militar no espaço jurídico apresentam diferenças, pois a primeira detém maior poder de designar pessoas como sendo passíveis de ingresso no campo jurídico, através do indiciamento em inquérito policial. A polícia militar só pode encaminhar diretamente aos juizados especiais criminais os casos relativos a delitos de pequeno potencial ofensivo. (HAGEN, 2005, p. 73)