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RESERVA DO POSSÍVEL COMO LIMITE IMANENTE AOS DIREITOS

No documento Direitos Sociais e Processo Judicial (páginas 59-64)

3.1 RESERVA DO POSSÍVEL COMO RESTRIÇÃO EXTERNA

3.1.2 Reserva do possível: limite imanente dos direitos fundamentais sociais ou

3.1.2.1 RESERVA DO POSSÍVEL COMO LIMITE IMANENTE AOS DIREITOS

Um conceito de reserva do possível como limite imanente, pode ser encontrado no seguinte trecho de Ana Carolina Lopes Olsen:

A reserva do possível diria respeito justamente à apreciação desta escassez como condição de possibilidade de reconhecimento do direito: se for possível deduzir a viabilidade prática do âmbito normativo do direito, então se pode falar em direito subjetivo exigível do Estado; se não

for possível fazê-lo, a pretensão não estaria dentro do âmbito normativo, e por esta razão, não gozaria de proteção jurídica.149

Essa vinculação dos custos para a existência do direito, teve desenvolvimento relevante na obra de Cass Sustein e Stephen Holmes150, segundo os quais todos os direitos têm algum custo, sejam eles direitos de liberdade ou de solidariedade. Partindo dessa premissa, e admitindo a escassez dos recursos públicos, tais autores redefinem o direito subjetivo, em cujo conceito passa a constar a existência de recursos financeiros suficientes para a sua satisfação.

No Brasil, Gustavo Amaral e Flávio Galdino, ao realizarem a análise econômica do direito, incluíram a reserva do possível como elemento caracterizador do direito fundamental. Significa dizer que não sendo financeiramente possível implementar determinado direito, ele não se configura como tal.

Gustavo Amaral procurou estabelecer critérios jurídicos aptos a justificarem as escolhas alocativas realizadas pela Administração Pública diante da escassez dos recursos públicos.

Assim sendo, afirma que toda decisão alocativa é trágica tendo em vista a infinidade de tarefas a serem realizadas pelo Estado para dar efetividade aos direitos fundamentais.

Nesse passo, seriam vários os “critérios e metodologias para a tomada das decisões alocativas”151, pelo que a escolha em investir em determinado direito, inevitavelmente, acarretará a não efetividade de um outro152.

Desse modo, considera o autor que o Judiciário não pode solucionar problemas relacionados à macrojustiça com os métodos próprios da microjustiça:

149OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível.

Curitiba: Juruá, 2008. p. 188.

150HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York:

WW Norton & Company, 1999.

151 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de

recursos e as decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 95.

152 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de

O conflito entre critérios adotados numa ótica de microjustiça e critérios adotados numa ótica de macrojustiça põe em questão um somatório de escolhas individuais racionais que produzem um resultado coletivo irracional153.

Ao fazer essa afirmativa, tendo em vista a impossibilidade material de garantir, a todos, a efetivação dos direitos fundamentais, Amaral opta “por algo menos”, em que o destino dos recursos públicos passa a ser apenas uma decisão política154.

Nesse sentido, entende o autor que o Judiciário não tem condições adequadas para se imiscuir nas decisões alocativas realizadas pelos demais poderes:

Todo o modo de funcionar da judicatura, a iniciativa por provocação, o impulso oficial, a linearidade do procedimento e as regras de preclusão não constituem procedimentos apropriados para lidar com a dinâmica das decisões alocativas. Tais decisões são sempre mutáveis em função da evolução dos fatos, do conhecimento que deles se tenha e da percepção daí advinda155.

Conquanto realize uma série de objeções em relação à atuação da magistratura em demandas desse naipe, Amaral admite, amplamente, a tutela coletiva como forma de controle dos critérios de escolha utilizados pelo administrador156.

Quanto à tutela individual, Gustavo Amaral estabelece duas variáveis que deverão pautar a interferência do Judiciário nas decisões alocativas do administrador: grau de essencialidade da pretensão e grau de excepcionalidade da situação concreta. Desse modo, afirma que “quanto mais essencial for a prestação, mais excepcional deverá ser a razão para que ela não seja atendida”157.

Ricardo Lobo Torres, ao comentar a posição de Amaral, ressalta as dificuldades que poderão surgir no preenchimento, pelos magistrados, dessas duas cláusulas gerais (grau

153 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de

recursos e as decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 97.

154 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de

recursos e as decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 111.

155 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de

recursos e as decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 114.

156 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de

recursos e as decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 116.

157 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de

de essencialidade da pretensão e grau de excepcionalidade da situação concreta), de complexa definição158.

Nesse passo, é de bom alvitre advertir que, se se admite a tutela individual das escolhas alocativas do administrador, apenas no que pertine ao mínimo existencial, como fazem alguns autores159, inclusive Gustavo Amaral, a análise do critério do grau de excepcionalidade ficará prejudicado, porquanto a prestação dificilmente não poderá ser considerada essencial.

Insta salientar que, em recente publicação, Gustavo Amaral alterou, parcialmente seu entendimento, para admitir a reserva do possível como uma restrição externa ao direito fundamental e não mais como um limite imanente160.

Flávio Galdino também admite que a reserva do possível deve ser encarada como um limite imanente aos direitos fundamentais, e, partindo da premissa de que todos os direitos têm um custo, admite que:

A consciência de que os direitos custam implica ipso facto a conscientização de que as pessoas somente possuem direitos na medida em que um Estado responsavelmente recolha recursos junto aos cidadãos igualmente responsáveis para custeá-los, mostrando-se incorreta a tese atomista de que os direitos inculcam a irresponsabilidade para com os deveres sociais. Ao invés, os direitos, corretamente compreendidos, promovem a responsabilidade no respectivo exercício161.

158TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 76. 159 Dentre eles: TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009

e BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

160 “No passado, isso nos levava a divergir de Sarlet (2007, p. 305) para entender que ante o caráter

expansionista do chamado ‘direito à vida’, a escassez faz parte da definição, da delimitação em concreto do próprio direito, ou, como afirmado antes, da densificação e decisão quanto ao atendimento da pretensão (cf. cap. 4), pelo que a chamada ‘reserva do possível’ seria elemento integrante. (...). A questão da escassez tem papel mais relevante na aplicação do direito do que na especificação de seu conteúdo sem ser em vista de um caso concreto”. E, em nota de rodapé de mesma página, o autor alerta que essa observação se refere a todos os direitos fundamentais, e não apenas ao direito à vida. AMARAL, Gustavo. Post scriptum: voltando ao tema, quase dez anos depois. In: ____________. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 151.

161GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores. Rio

Nesse sentido, a tese de Flávio Galdino enxerga o Direito como um instrumento para se alcançar a máxima eficiência na alocação de recursos públicos, admitindo a superioridade da Economia sobre o Direito162.

Assim, pela análise econômica do Direito, segundo o autor, a “afirmação de direitos irrealizáveis”163 tem escopo meramente ideológico e gera verdadeira frustração social, motivo pelo qual a existência do Direito deve depender da existência de recursos públicos:

Deste modo, antes de se afirmar que uma pessoa determinada possui um direito fundamental determinado, há que se analisar os custos desse direito, e, somente diante da confirmação de que há possibilidades reais de atendimento ao ainda então invocado direito, reconhecer-se tal postulação como direito fundamental.164

Galdino justifica o seu posicionamento ao afirmar que, sempre que o direito existisse in abstrato e não pudesse ser realizado no caso concreto, ocorreria ruptura no sistema. Entendemos, contudo, que, se se compreende que o direito fundamental também pode estar veiculado na forma de princípio, e como tal, é um mandado de otimização, na esteira do que defende Alexy165, são absolutamente naturais alterações no âmbito de aplicação do direito fundamental, porquanto o direito definitivo sempre será diferente, e, sob certo aspecto, menos abrangente, do que o direito prima facie.

Note-se que, segundo os entendimentos acima expostos, a reserva do possível seria um limite ao direito fundamental inerente ao próprio conceito do direito, isto é, existente alocação financeira específica estaria presente determinado direito fundamental.

Admitir a reserva do possível como limite imanente representa sujeitar os direitos fundamentais ao arbítrio do administrador, numa completa inversão: em vez de se

162GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 242-243.

163GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 339.

164GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 342.

165ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:

entender os direitos fundamentais como escolhas constitucionais, passa-se a entendê-los como escolhas políticas, insindicáveis judicialmente166.

Desse modo, seriam o administrador e o legislador aqueles que definiriam o que é o direito fundamental, e não mais a Constituição. Voltaríamos à concepção de Lasalle, segundo a qual a constituição real são apenas as relações de poder existentes na sociedade167.

A adoção da teoria interna não impede o subjetivismo, na medida em que o administrador vai dizer (sem ponderação, e até mesmo sem fundamentação) o que é o direito fundamental, enfraquecendo os direitos fundamentais que ficam restritos a pequeno rol168.

Portanto, refutamos a tese que enquadra a reserva do possível como limite imanente ao direito fundamental, e admitindo a supremacia da constituição e a sua eficácia normativa, compreendemos a reserva do possível como restrição externa ao direito fundamental a ser aferida no caso concreto pelo Judiciário. É o que veremos a seguir.

3.1.2.2 RESERVA DO POSSÍVEL COMO RESTRIÇÃO EXTERNA AOS DIREITOS

No documento Direitos Sociais e Processo Judicial (páginas 59-64)