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Responsabilidade civil pela perda de uma chance

3 A TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE E A RESPONSABILIDA CIVIL

3.3 Responsabilidade civil pela perda de uma chance

A perda de uma chance pode ser definida como aquela ocasionada por um ato ilícito, o qual impossibilita alguém de obter uma situação futura melhor. Pode-se dizer que é uma lesão que ocorre em virtude da privação da possibilidade – séria e real – de se alcançar uma vantagem ou de se evitar um prejuízo:

Caracteriza-se essa perda de uma chance quando, em virtude da conduta de outrem, desaparece a probabilidade de um evento que possibilitaria um benefício futuro para a vítima, como progredir na carreira artística ou militar, arrumar um melhor emprego, deixar de recorrer de uma sentença desfavorável pela falha do advogado, e assim por diante. Deve-se, pois, entender por chance a probabilidade de se obter um lucro ou de se evitar uma perda. (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 81, grifo nosso).

Para Fernando Noronha (2003, p. 665), a perda de uma chance pode ser descrita da seguinte maneira:

Quando se fala em chance, estamos perante situações em que está em curso um processo que propicia a uma pessoa a oportunidade de vir a obter no futuro algo benéfico. Quando se fala em perda de chances, para efeitos de responsabilidade civil, é porque esse processo foi interrompido por um determinado fato antijurídico e, por isso, a oportunidade ficou irremediavelmente destruída.

Por sua vez, Daniel Amaral Carnaúba (2013, p. 17) conceitua a perda de uma chance como uma evolução da responsabilidade civil:

Seria possível afirmar que a perda de uma chance não passa de uma simples categoria de prejuízo, reconhecida, como tantas outras, pelo Direito da responsabilidade civil. Nessa medida, não haveria nada de extraordinário ao seu encontro. Visto que o prejuízo é uma noção ampla no Direito Francês, os juízes gozam de uma grande

liberdade para reconhecer diversas espécies: os lucros cessantes, as perdas de rendimentos profissionais, os sofrimentos físicos, os prejuízos estéticos... a perda de uma chance. A expansão dos prejuízos reparáveis é um dos principais vetores da evolução da responsabilidade civil é natural que mais e mais espécies de prejuízos sejam paulatinamente reconhecidos.

Nessa senda, destaca-se que, para a caracterização desse tipo de responsabilidade, deve-se observar os elementos básicos da responsabilidade civil anteriormente conceituados: a conduta do agente, o resultado que se perdeu ou um prejuízo ocorrido (dano) e o nexo de causalidade entre a conduta e as chances perdidas. No entanto, o dano e o nexo causal serão analisados de forma distinta, necessitando existir uma probabilidade conjuntamente com a ideia de certeza, ou seja, que a chance aconteceria ou que a vantagem perdida ocasionaria um prejuízo.

Em seu estudo, Silva (2013, p. 12) enfatiza: “característica igualmente importante e essencial para diferenciar a chance perdida com outras espécies de dano é a total falta de prova de vínculo causal entre a perda dessa aposta e o ato danoso, pois a aludida aposta é aleatória por natureza.”

Noronha (2003) refere que a chance perdida pode advir de duas situações, sendo, portanto, dividida em duas modalidades: a perda de uma chance de se obter uma vantagem futura e a perda de uma chance de ter evitado um prejuízo.

A perda de uma chance conhecida como clássica é a que impossibilita a vítima de obter uma vantagem futura, conforme se pode exemplificar: o advogado que perde o prazo de recurso por erro na publicação de uma nota de expediente; ou o candidato que deixa de realizar a última prova de um concurso por erro da organização do certame.

Nesta modalidade, a oportunidade é perdida em face de fato antijurídico, que interrompe uma situação que estava em andamento e que teria a probabilidade de levar a um evento benéfico futuro. Pela interrupção ocasionada não há mais como saber o resultado, se a vantagem seria alcançada ou não. Assim, conforme menciona Silva (2013, p. 86), “as chances são uma ‘suposição legítima do futuro’, que podem ser mensuradas através das características do fato concreto e das estatísticas e presunções a ele aplicadas.”

De outra banda, a perda de uma chance de ter evitado um prejuízo (segunda modalidade) se refere à possibilidade concreta de se ver o dano minorado ou até mesmo impedido. Como forma de ilustração, parte-se do hipotético furto em uma loja, a qual, mesmo possuindo alarmes, não os teve acionados por culpa de um defeito qualquer. No referido caso, se o sistema de alarme tivesse disparado, o assalto poderia ter ocorrido da mesma forma, “entretanto a falha da empresa responsável pelo sistema antifurto retirou do estabelecimento

comercial a possibilidade de não ser assaltada.” (NORONHA, 2003, p. 671). Como se pode verificar, embora a vítima tenha tomado as devidas precauções, em razão da conduta de outrem, não consegue evitar o evento danoso.

Realizando um cotejo entre as duas categorias, pode-se destacar que: na perda de uma chance de obter uma vantagem futura o fato antijurídico interrompe o andamento de um processo aleatório, originando-se o dano dessa interrupção; na modalidade de perda de uma chance de ter evitado um prejuízo, o dano acontece justamente porque o processo em andamento não foi interrompido, o que possivelmente poderia ter evitado a lesão. Outro aspecto que difere as modalidades é que a primeira se dirige ao futuro (algo que poderia acontecer) enquanto a segunda está relacionada com o passado (fato que poderia ter sido evitado).

Pode-se verificar que a problemática do instituto da perda de uma chance se assenta na constatação de sua possibilidade fática. Apesar de ser permitida a indenização independentemente da certeza do resultado, esta probabilidade deverá ser calculável e presumível, e, portanto, devidamente constatável. “Normalmente, a apuração da certeza vem ligada à atualidade. O que se exclui de reparação é o dano meramente hipotético, eventual ou conjuntural, isto é, aquele que pode não vir a concretizar-se.” (PEREIRA, 2018b, p. 65).

Portanto, somente as chances sérias e reais são aptas a ensejar a indenização. Dessa forma, cada situação deverá ser analisada individualmente para avaliar se o caso em concreto se refere a uma chance perdida real ou mera hipótese subjetiva:

Para tal, em primeiro lugar importa averiguar se a chance perdida era real e séria: se for, haverá obrigação de indenizar; se ela tiver caráter meramente hipotético, não. E para saber se a oportunidade era real e séria, haverá que recorrer às regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece, como se dispõe no art. 335 do Código de Processo Civil. (NORONHA, 2003, p. 674).

Nessa esteira, Pereira (2018b, p. 66, grifos do autor) analisa a questão:

É claro, então, que se a ação se fundar em mero dano hipotético, não cabe reparação. Mas esta será devida se se considerar, dentro na ideia de perda de uma oportunidade (perte d’une chance) e puder situar-se a certeza do dano. Daí dizer Yves Chartier que a reparação da perda de uma chance repousa em uma probabilidade e uma certeza; que a chance seria realizada, e que a vantagem perdida resultaria em prejuízo.

A reparação advinda, no entanto, não é do dano em si (in totum), mas sim da perda da chance de obter benefício futuro ou evitado prejuízo passado. Conforme expõe Cavalieri Filho (2012, p. 84, grifo do autor), “a indenização deve corresponder à própria chance, que o juiz

apreciará in concreto, e não ao lucro ou perda que dela era objeto, uma vez que o que falhou foi a chance, cuja natureza é sempre problemática na sua realização.”

Sendo assim, o valor da condenação da indenização pela perda de uma chance será aferido com base no grau de probabilidade de concretização do resultado esperado, o qual se traduzirá em uma porcentagem sobre o valor do dano. Assim, em regra, o valor do quantum indenizatório não poderá ser igual ao valor que perceberia caso a hipótese se concretizasse, pois como assinala Sérgio Savi, citado por Gonçalves (2017, p. 321): “se fosse possível afirmar, com certeza, que o recurso acaso interposto seria provido, a hipótese seria de indenização dos lucros cessantes e não da perda da chance.”

Por conseguinte, muitos doutrinadores entendem que a indenização da chance perdida deverá ser sempre inferior ao valor do resultado esperado:

Desse modo, pode-se afirmar que a regra fundamental a ser obedecida em casos de responsabilidade pela perda de uma chance prescreve que a reparação da chance perdida sempre deverá ser inferior ao valor da vantagem esperada e definitivamente perdida pela vítima. Mesmo nas espécies de dano moral, tal regra deve ser obedecida. Caso o agente tenha retirado as chances da vítima de não perder um braço, as chances perdidas representarão apenas uma percentagem do valor que seria concedido se houvesse nexo causal entre a ação do agente e a efetiva perda do braço. (SILVA, 2013, p. 143).

Importante mencionar que, pela falta de legislação específica, a natureza jurídica da perda de uma chance ainda é uma questão controvertida na doutrina e jurisprudência brasileiras. Em algumas oportunidades, os tribunais indenizam a perda de uma chance como hipótese de lucro cessante; outras vezes reconhecem como modalidade de dano moral. Como anota Cavalieri Filho (2012, p. 84):

Há forte corrente doutrinária que coloca a perda de uma chance como terceiro gênero de indenização, a meio caminho entre o dano emergente e o lucro cessante. Entre um extremo e outro caberia uma graduação, que deverá ser feita em cada caso, com critério equitativo e distinguindo a mera possibilidade da probabilidade. De qualquer forma, a indenização deve corresponder à própria chance, que o juiz apreciará in concreto, e não ao lucro ou perda que dela era objeto, uma vez que o que falhou foi a chance, cuja natureza é sempre problemática na sua realização.

Assim, esse instituto ora pode ser considerado como modalidade de dano moral ora como indenização de natureza patrimonial, tendo em vista que por vezes é classificado como hipótese de lucro cessante, e, não raras vezes, como dano emergente. Ainda, a perda de uma chance pode acarretar conjuntamente danos morais e materiais à vítima. Nesse sentido, cabe

ressaltar que a indenização deve corresponder à própria chance, sendo que cabe ao julgador analisar o caso em concreto.

Como tentativa de disciplinar o instituto da perda de uma chance no ordenamento jurídico brasileiro, em 06 de junho de 2018 foi apresentado, em Plenário, o Projeto de Lei nº 10.360/2018, pelo Deputado Augusto Carvalho (SD-DF), o qual pretendia acrescentar ao artigo 927 do Código Civil os seguintes parágrafos:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

§ 2º A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais.

§ 3º A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos. (BRASIL, 2020a, p. 1, grifo nosso).

A justificativa apresentada à Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania foi fundamentada no Enunciado 444 da V Jornada de Direito Civil que dispõe sobre a responsabilidade civil pela perda de uma chance. Baseou-se igualmente no fato de a teoria já estar sendo aceita e utilizada pela doutrina e jurisprudência, sendo que a finalidade do projeto era incorporá-la de maneira definitiva ao ordenamento jurídico nacional:

A V Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, em maio de 2002, sob a Coordenação-Geral do Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, Ruy Rosado de Aguiar, apresentou inovadoras abordagens sobre os seguintes tópicos do Código Civil: Parte Geral, Direito das Obrigações, Responsabilidade Civil, Direito da Empresa, Direito das Coisas e Direito de Família e Sucessões. Na Comissão de Trabalho sobre Responsabilidade Civil, coordenada pelo então Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e hoje Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Paulo de Tarso Sanseverino, foi apresentado o Enunciado 444, que aborda a teoria da perda de uma chance, nos seguintes termos:

Enunciado 444. A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos.

A teoria da chance é uma construção doutrinária aceita em nosso ordenamento jurídico como uma quarta categoria de dano, “dentro do tema responsabilidade civil, ao lado dos danos materiais, morais e estéticos. Embora bastante utilizada na prática forense, ainda é tema de controvérsias. Isso porque se trata de um dano de difícil verificação. O dano que se origina a partir de uma oportunidade perdida está lidando com uma probabilidade, uma situação que possivelmente aconteceria caso a conduta do agente violador não existisse. Por isso, aproxima-se dos danos eventuais que não são passíveis de indenização”. (BRASIL, 2020a, p. 2-3, grifo nosso)

Todavia, o Projeto de Lei nº 10.360/2018, o qual buscava regularizar o instituto da perda de uma chance, restou arquivado em 31 de janeiro de 2019 nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados que dispõe: “Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e

ainda se encontrem em tramitação, bem como as que abram crédito suplementar, com pareceres ou sem eles, salvo as [...]” (BRASIL, 2020b, s.p.). E, posteriormente, devolvido à Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania.

Inobstante a frustrada tentativa de inserção da hipótese em nosso ordenamento, ocasionando a inexistência de lei regulamentadora sobre o tema, nada impede a aplicação da teoria da perda de uma chance, visto que cada vez mais esse instituto se mostra presente na doutrina, sendo plenamente aceito e utilizado pelos tribunais nacionais. Diante disso, constata- se a importância do instituto, eis que consagra a devida reparação para casos não anteriormente abarcados pela nossa legislação, tornando indenizáveis a probabilidade de vantagem futura, bem como a reparação de prejuízo evitável, a exemplo do que já é aceito em outros países. Sempre salientando que a vítima pode ser indenizada tanto a título de danos morais, como por danos patrimoniais.

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