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4.3.3 | Reutilização Espacial

No documento Cenografias urbanas e cidades cenário (páginas 187-197)

‘’Allegories are, in the realm of thoughts, what ruins are in the realm of things.’’265

As ruínas representam na cidade, as memórias de lugares esquecidos ou perdidos no tempo. São monumentos que aos poucos foram perdendo a sua função e, progressivamente se foram tornando em objectos medidores do tempo. Assim as ruínas despertam mais emoção que estruturas intei- ramente novas e aptas, porque já não possuem o seu sentido racional e funcional:

‘’Ruins have a special hold on our emotions because they chal- lenge us to imagine their forgotten faith.’’266

Assim, a ruína representa um esqueleto de uma memória, uma presença melancólica:

‘’When the instruments are broken and unusable, when plans are blasted and effort is useless, the world appears with a chil- dlike and terrible freshness without supports, without paths. It has maximum reality because (…) defeat restores to things their individual reality (…) The defeat itself turns into salvation. For exemple, poetic language rises out of the ruins of prose.’’267

265 Tradução livre: ‘‘As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas.’’ BENJAMIN, Walter -Allegory and Trauerspiel, The Origin of Ger- man Tragic Drama, p.177 e 178.

266 Tradução livre: ‘‘As ruínas têm uma força especial sobre as nossas emoções porque nos desafiam a imaginar a sua fé perdida.’’ PALLASMAA, Juhani , op. cit., p.79. 267 Tradução livre: ‘’Quando os instrumentos estão partidos e inutilizáveis, quando o

esforço é inútil, e o mundo surge sem a presença de um padrão. Tudo isso transpare- ce uma realidade (…) porque a derrota devolve às coisas a sua realidade individual. A derrota em si mesma, torna-se na salvação. Por exemplo, a linguagem poética deriva da ruína da prosa.’’ SARTRE, Jean-Paul (acerca do poder emocional da erosão e da derrota) cit. por PALLASMAA, Juhani, op. cit., p.82.

Neste sentido podemos considerar o aspecto da desintegração enquanto processo fundamental, capaz de evidenciar os aspectos temporais da ruína, seja ela natural ou cultural. Para Jane Rendell (2006), a ruína não se limita a um signo passado no presente, mas sim marcas de um momento em que o agora se torna no que já foi. 268

A experiência do Palais de Tokyo é a de uma ruína exposta. A estrutura de betão à vista e a vegetação, pertencem a um conjunto dinâmico de vá- rias acções não premeditadas. No entanto, este local não funciona apenas enquanto espécime de teor melancólico tradicional da ruína. Ao adicionar vida e vitalidade, ao edifício em ruína, os fragmentos foram combinados de uma forma que pode ser considerada alegórica no tema da desintegração. O que vemos é uma montagem justaposta entre a decadência do antigo e a vitalidade do novo.

268 ‘’(…) which what is now becomes what has been.’’ RENDELL, Jane, op. cit., p.111

e 112.

Figura 63.

Perspectiva interior, Palais de Tokyo, Paris.

Figura 64.

Átrio principal, Palais de Tokyo, Paris.

Figura 65.

Outro local cuja abordagem arquitectónica se focou em manter o objecto pré-existente sem, no entanto, exaltar o aspecto da desintegração mas sim, utilizando-o para criar algo diferente é a LxFactory em Lisboa.

A Lx Factory situa-se na zona de Alcântara, a história do local remete para um passado industrial onde existiram algumas das mais importantes uni- dades fabris, da cidade de Lisboa no século XIX. Ali encontrava-se a Antiga Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense, tendo esta sido a primeira empresa a fixar-se naquela zona. O edifício principal, projectado pelo ar- quitecto português João Pedro da Fonte em 1849, foi a primeira constru- ção, do que viria a ser o empreendimento final, que hoje constitui o Lx Factory.

Com a contínua evolução das áreas industriais, a zona do Calvário, que era frequentemente associada às suas quintas, palácios e conventos, foi gradual- mente convertendo-se numa zona maioritariamente industrial. À medida que a empresa foi crescendo surgiu a necessidade de ampliar o espaço e assim, entre 1851 e 1855, foram construídos mais cinco edifícios. Devido à necessidade de alojar os trabalhadores e respectivas famílias, construiu-se em 1873, a primeira vila operária naquela zona.

No ano de 1910 a Companhia enfrentou algumas dificuldades económicas que se viriam a agravar com a crise de 1917, este processo culminou na dissolução da empresa cujos edifícios seriam posteriormente vendidos a outras empresas (Companhia Industrial de Portugal e Colónias, Tipografia Comercial de Portugal e Gráfica Mirandela).

O local encontrava-se abandonado e fechado ao público até que em 2009, o grupo MainSide Investiments SGPS S.A269 abriu os 23 mil metros qua-

drados ao público (provisoriamente). Actualmente este local é ainda tute- lado pela mesma empresa e tem vindo a acolher diferentes usos e eventos. O nome do projecto (Factory) deriva do nome que o artista Andy Wa- rhol (1928-1987), atribuiu ao seu atelier e habitação na East 47th Street em Manhattan, Nova Iorque. Este local era um espaço de encontro, onde

se reuniam os mais variados artistas da época, por ali passaram pintores, escultures, músicos, actores, bailarinos, e todos os que procuravam e res- piravam criatividade. O conceito seguia o modelo de oficina renascentista em que Andy Warhol era o mestre. Warhol procurava promover incursões nos mais variados campos artísticos nomeadamente a música e o cinema, no qual também assumiu várias vezes o papel de realizador.

A Factory era um espaço de criação e fusão artística, foi lá que os Velvet Underground270, começaram a ensaiar e onde conheceram o futuro ícone

do rock, a cantora Nico. Entre os assíduos deste espaço multidisciplinar, contavam-se também algumas figuras ainda hoje reconhecidas e importan- tes na História nomeadamente o pintor Jean Michel Basquiat271, o escritor

Jack Kerouac272 ou até o poeta Allen Ginsberg273.

270 The Velvet Underground foi uma influente banda de rock Americana. Foi a banda

que revelou Lou Reed e John Cale, formada em 1964 por Lou Reed (voz e guitarra), Sterling Morrison (guitarra), John Cale (baixo), Doug Yule (que substituiu Cale em 1968), Nico (voz), Angus MacAlise (bateria) e Maureen Tucker (que substituiu Angus MacAlise).

271 Jean-Michel Basquiat (1960 – 1988) foi um artista, músico e produtor Americano. 272 Jean-Louis Lebris de Kerouac (1922 - 1969), mais conhecido por Jack Kerouac, foi

um escritor norte-americano.

273 Irwin Allen Ginsberg (1926 –1997) foi um poeta Americano, que ficou conhecido

pelo seu livro de poesia Howl (1956).

Figura 66.

Untitled, The Velvet Years: Warhol’s Factory, 1965 -1967 USA, Stephen Shore.

Figura 67.

Capa do primeiro álbum de Velvet Underground & Nico, por Andy Warhol, 1967.

Foi em 2007, que o Lx Factory, abriu as portas com mais de 50 empresas e indústrias criativas, desde a Arquitectura ao Design, passando pela Moda, Publicidade, organização de eventos e espectáculos e comércio.

O facto do Lx Factory ter começado por ser um projecto temporário, ou seja, os edifícios não poderiam sofrer muitas intervenções, acabou por li- mitar a indústria às áreas criativas, que através de métodos não incisivos, conseguiram personalizar e reabilitar todo aquele espaço sem intervir na estrutura e características base dos edifícios industriais.

A ocupação é a primeira forma de reabilitação. E foi através desta dinami- zação empreendedora e cultural, que a ilha criativa274 do Lx Factory, tem

vindo a demonstrar que é possível rentabilizar e contornar problemas de uma forma inteligente e criativa, numa Lisboa repleta de prédios e espaços devolutos.

274 SALAZAR, Tiago; LOUREIRO, Pedro (2009) A ilha criativa, p.30 a 35.

Figura 68.

Reutilização espacial de um antigo ar- mazém no Lx Factory. Imagem da auto- ra, 2015.

Figura 69.

Pormenores da Reutiliza- ção espacial de um antigo armazém no Lx Factory. Imagem da autora, 2015.

Figura 70.

Perspectiva geral da Reutili- zação espacial de um antigo armazém no Lx Factory. Ima- gem da autora, 2015.

É relativamente fácil encontrar fábricas que se encontrem desactivadas, devido à mudança de paradigma da sociedade. Neste sentido a reintro- dução destes espaços na vida urbana poderá passar por uma reatribuição de funções, podendo estas estar relacionadas com a cultura e o comércio, como é o caso do Lx Factory. Desta forma, a reutilização espacial é possível ao mesmo tempo que se preserva uma memória industrial da cidade pela sua Arquitectura.

Ao intervirmos em locais históricos, pela sua personalidade típica de um determinado período, neste caso industrial, esta intervenção acaba por se tornar num método potenciador e reabilitativo do local em questão. As realizações temporárias podem classificar-se em várias categorias. Por vezes os usos temporários espontâneos, acabam por tornar-se em usos per- manentes devido à sua relevância. Mesmo que o uso não chegue a ser permanente, por vezes, verifica-se a transição desse mesmo uso para outro local, salientando uma vez mais a sua importância.

Destacamos a relevância deste projecto pelo enorme impacto cultural e também económico que tem vindo a adquirir na cidade de Lisboa.

Figura 71.

Lx Factory, Lisboa.

Figura 72.

4.4 SÍNTESE CONCLUSIVA

A memória transmite-nos sempre uma certa vertente emocional, associada a processos nostálgicos e orgânicos que constituem todo o nosso imaginá- rio, sendo por isso fundamental a sua presença no espaço urbano, admitin- do a cidade enquanto um palimpsesto. Neste sentido, podemos afirmar que a preservação histórica se interessa pelo contexto.

A partir daqui, poderemos assumir o papel da memória, enquanto elemen- to extremamente relevante na cidade, que ao transformar-se ao longo de progressivas mutações orgânicas permite que a permanência de aconteci- mentos e lugares anteriores vivam na memória.

Para Françoise Choay (2011), existem vários sinais de uma certa esterili- zação colectiva (museificação, disneylandização, pastiche) derivada de uma incapacidade na construção de alternativas progressivas. No quadro actual de crescente e contínua globalização, o problema coloca-se:

‘’(...) sob pena de perder, desta vez, não a nossa identidade cul-

tural, mas antes uma identidade humana cuja diversidade de culturas é a indissociável condição.’’ 275

Pelos três exemplos apresentados (museu Judaico de Berlim, cidade de Veneza e o Lx Factory em Lisboa) conseguimos identificar metodologias distintas, visando todas elas o mesmo fim: a preservação da memória na cidade. A partir daqui poderemos afirmar que nos encontramos perante uma generalizada preocupação contemporânea no que toca a restauração e recuperação de edifícios e locais históricos, uma vez que estes procuram resgatar tempos e espaços. No entanto, estas recuperações, não são apenas reconstruções arquitectónicas, mas também, recuperações a nível cultural e histórico. Recuperações de identidades.

A Arquitectura torna-se indissociável da memória porque um lugar nunca é de um tempo só. Assim destacamos a importância da preservação da

memória na cidade através da sua Arquitectura, sendo no entanto, funda- mental, a sua readaptação à vida contemporânea.

Com a análise das três distintas hipóteses de preservação da memória na cidade, podemos concluir que é essencial o facto de que, o programa de intervenção e usos seja sempre relacionado com o lugar em que se insere, potenciando assim as características do lugar antigo.

Frequentemente somos surpreendidos com a gestação de um novo tipo de cidade que colocou fora de contexto a ideia de permanência, agora reduzida à permanência do consumo276.

O exemplo da cidade de Veneza demonstra que o revivalismo não con- segue recuperar o passado, no entanto, pode remeter-nos para ele, estas questões demonstram-se extremamente importantes para os estudos acerca das dinâmicas actuais que fazem parte da temática do turismo.

É importante também, a análise dos signos absorvidos pelo olhar, tendo esta uma forte influência na forma de experienciar a cidade. Assim, adqui- rimos a cidade enquanto ambos, palco e cenário, matriz decisiva para a concretização do turismo, pois todo o espaço que serve para a experiência turística é um cenário onde se desenvolve uma performance, exterior ao indivíduo que não pertence àquele lugar. É neste cenário que a noção de uso e de valor de troca se tornam fundamentais para uma experiência tu- rística saudável:

“A cidade do palco como cenário do olhar e ser olhado vive sob o primado do valor de uso. A cidade como o olhar a paisagem constrói-se sob o valor de troca.” 277

A reutilização espacial, no caso do Lx Factory em Lisboa, demonstra-se enquanto uma possibilidade de intervenção espacial que ao manter uma memória de um espaço industrial na cidade de Lisboa, corresponde com uma nova oferta cultural e diversificada, cativando assim um público cada vez mais variado e distinto.

276 BRANDÃO, Pedro, op. cit., p.38. 277GASTAL, Susana, op. cit., p.207.

O caso de estudo do LX Factory, é um exemplo de um local gerido como se fosse uma grande empresa, que trabalha com inúmeras associações e in- dústrias criativas. Este pode demonstrar-se relevante por dinamizar alguns eventos culturais independentes.

Estas intervenções têm a capacidade de introduzir uma certa provocação no discurso da cidade podendo gerar novas dinâmicas de intervenção e discussão pública.

Assumimos então a pertinência da consumação do espaço público enquan- to registo contemporâneo de actuações, que visam a permanência da me- mória na cidade contemporânea, esta que por sua vez, através dos seus fluxos urbanos poderá continuar a ser difusora de uma cultura local a uma escala global.

Deste modo podemos concluir, como afima Paulo Pereira (2014) que, a cidade passa por uma operação, que envolve, por contrato social, a preser- vação do passado e a inserção de rupturas e descontinuidades, de memória e da falta dela (da possibilidade de esquecer, também, de refazer, fazer e reconstruir)278.

Esta operação a que se refere Paulo Pereira, é uma operação mental, no sentido que, a cidade pressupõe um complexo sistema de representação, no qual tempo e espaço são assumidos e experienciados. Estes são factores de extrema relevância, na procura de uma melhor compreensão acerca das dinâmicas que constituem os fluxos que compõem a contemporaneidade.

CAPÍTULO V

No documento Cenografias urbanas e cidades cenário (páginas 187-197)