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A reutilização do palco italiano no teatro de Brecht e a expressão no espaço digital

Habitamos o espaço digital como habitamos uma casa e nosso corpo, alimentando-o com imagens, sons, sensações e realizando uma frequente interação com tudo que ali colocamos ou que aparece. Por sua centralidade na organização da comunicação contemporânea, a tecnologia modela esse espaço da relação comunicacional, à medida que determina elementos para o aspecto narrativo, funciona como organizador da percepção. A tecnologia percorre, assim, o espaço inteiro, modelando desde a criação até a interação.

A percepção do espaço, para Kant, era uma condição a priori da percepção. Assim como o tempo, não conseguimos ver ou tocar a “concretização” do espaço [o espaço em si], ele é o resultado de uma abstração natural. Só é possível a intuição de realidades que possam ser enquadradas no espaço e no tempo. Elas são sensíveis, porque são modeladoras do Acontecimento; tempo e espaço são formas

a priori da sensibilidade, não são intuições, são relações, por isso sofrem

mediações. Nesse sentido, o espaço [meio] digital em si não é bom nem mal, precisamos modelar esse novo espaço de acordo com o modo como queremos estabelecer nossas relações.

Mesmo que possa ocupar, no espaço “real” [tridimensional], grande parte de nosso tempo e nossas emoções, o espaço digital possui características próprias, as quais o caracterizam como um espaço distinto. Embora, muitas vezes, pareça um espelho do espaço real [livros, fotos, filmes, música etc.], ele possui características únicas, como a alta capacidade de armazenamento de dados, sendo sempre possível estender esse espaço, que é modificado em um instante com a simples mudança de um endereço [www]. As mensagens ocupam lugares distintos e estão fora do controle de quem diz, sobretudo, o espaço digital possui uma nova

geometria, dada, principalmente, pela palavra e pela hipertextualidade que abre o texto para novas conexões.

Esse novo espaço foi chamado de modos diferentes em diferentes modelos teóricos. McLuhan chamou de aldeia global; Töffler, de terceira onda; Piere Lévy, de ciberespaço e mundo virtual; Castells, de sociedade-rede; todas elas definindo o fim da limitação do espaço físico real. A expressão “à distância de um clique”, antes objeto da ficção científica, torna-se realidade, com a internet; assim, na contemporaneidade, podemos atuar, ser “virtualmente” [realmente] em quase todo o planeta.

A organização que escolhemos para nosso espaço, nosso quarto ou nossa mesa de trabalho, diz muito a respeito de nós mesmos e da sociedade na qual vivemos. O espaço digital ainda será exaustivamente explorado e modificado, talvez nunca assuma uma forma definida; de qualquer forma, devemos, na contemporaneidade, perceber com mais clareza que tipo de espaço estamos construindo, onde estamos vivendo e definindo o pensamento moderno. Estamos só utilizando os modelos comunicativos básicos ou, de algum modo, estamos realmente em comunicação? A evolução tecnológica traduz, em formato industrial, nossa competência comunicativa e nos remete à construção de novas práticas por meio das diferentes linguagens midiáticas. Pensar os elementos técnicos é compreender a complexidade dos discursos [relações de poder e contexto histórico] que os formam, é pensar os modos como a tecnologia vem moldando a cultura. Modificar o espaço digital é transformar a cultura. Nossas performances [mediações] são transformações do tempo e do espaço digital, são as consequências do processo de “antropofagia cultural” que nasce da relação da identidade com a tecnologia.

A única forma de “ser” no universo digital é realizando essa antropofagia diária de nossa identidade. O próprio manifesto antropofágico carrega o paradoxo dos desafios de cada cultura; perguntando em inglês “Tupi, or not tupi? that is the

question”, Oswald de Andrade entra no processo de digestão [diálogo] de outra

cultura, a encruzilhada da identidade com a alteridade é exposta. A antropofagia cultural não entra em confronto com o que os outros impõem ou oferecem, não nega, nem se submete; devora, reprocessa o outro e vai modelando uma nova identidade. Nunca “puramente tupi”, nunca inteiramente o outro, a existência é

participativa, tudo faz parte de tudo. O outro é parte do que penso, assim como eu participo da terra, e o planeta representa para a humanidade seu sustento e sua morada. Do mesmo modo, acontece no espaço [universo] digital; interligados por redes sociais, temos a “obrigação” da interatividade para existir, não somos independentes do outro, somos em relação, ocupamos o mesmo espaço e precisamos modelar esse espaço.

No caso da performance poética, o uso da tecnologia na arte permite uma transformação geral, modifica as metodologias, as técnicas, as ferramentas e os materiais usados tradicionalmente e, assim, possibilita a criação de novas formas de expressão. A convergência entre a arte e a tecnologia oferece amplas oportunidades para artistas e produtores, isso porque o espaço digital é colaborativo e permite um aprofundamento interdisciplinar. O espaço digital exige uma nova compreensão da arte e novas adaptações a conhecimentos técnicos, constantemente, e um bom modo de superar isso é utilizando a própria rede de relações.

Bertolt Brecht, escritor e diretor de teatro alemão, foi uma influência para Walter Benjamin na construção de sua visão da arte e da tecnologia na modernidade; intelectuais de inspiração marxista, os dois pensadores acreditavam em uma transformação social causada por um novo uso dos espaços de comunicação. Outros intelectuais da “Escola de Frankfurt”, como Adorno e Horkheimer, que conviveram com o poeta [como alemães exilados nos USA], não tinham tantas afinidades com o Brecht que não apreciava suas construções teóricas sofisticadas e distantes da prática. Para o teatrólogo, a inspiração essencial de Marx exigia que a elaboração teórica, em algum momento do seu desenvolvimento, se inserisse na prática popular, mesmo que precisasse ser simplificada. Incomodava-o também o fato de o instituto dirigido por Horkheimer receber dinheiro de empresários. O teatrólogo escreveu em seu diário suas impressões acerca do fato, talvez pensando em utilizar como argumento para um poema ou peça:

Um velho rico especulador de trigo morre, angustiado com a miséria do mundo. Ele doa, em seu testamento, uma quantia respeitável de sua fortuna para a fundação de um instituto que deve investigar as fontes dessa miséria, que se encontra, obviamente, em si mesmo. (BRECHT in FREITAG,1990, p. 12).

Procurando encontrar uma função política e social para o teatro, sua crítica se volta inicialmente contra a forma como este vem sendo utilizado, principalmente em

relação à hegemonia do palco italiano e às suas possibilidades de ilusão proporcionadas pelo desenvolvimento técnico. Realizando uma analogia entre palco e vida social, Brecht concebe um teatro que revela as próprias estruturas; e, negando o caráter ilusionista do teatro burguês, revela, com seu palco científico, racional, os mecanismos constituintes da própria sociedade burguesa. Brecht optou, portanto, em não abandonar o espaço hegemônico do palco italiano, mas em utilizá- lo de modo a questioná-lo e denunciá-lo, o palco transforma-se em linguagem, faz parte de sua estética.

A principal crítica que o mestre fez em relação ao palco italiano foi em relação à posição estática do espectador [causada principalmente pelos recursos de ilusão que apoiam o discurso do ator], o que levaria o público à emoção e a não intervir racionalmente, refletindo a respeito da ação apresentada. Naquele momento, assim como a internet é hoje, o palco italiano funcionava para o teatro quase como uma estrutura natural, inerente à própria essência da comunicação teatral, imutável, e não como um sistema aberto que pode ser transformado e aperfeiçoado. Brecht investiu contra a ilusão das encenações naturalistas, transformou o palco em uma área de jogo, um espaço concebido em função da representação do ator. Para Brecht, não é necessário rejeitar a arquitetura à italiana, basta fazê-la trabalhar a seu favor. Exibindo os recursos técnicos, por exemplo, Brecht ajuda [com esse recurso de “não teatralidade”] o espectador a quebrar a emoção e chegar ao raciocínio. O público tem constantemente consciência de estar assistindo a uma representação, mantém-se diante de e não dentro de.

Ao escrever a respeito do espaço da ação teatral, Brecht propõe modificações técnicas na construção do espaço ideal para a realização do teatro, seria uma arquitetura polivalente, suscetível de infinitas modificações. Embora possamos pensar tecnicamente em novas formas de construir o espaço digital, o uso do ambiente atual, com suas limitações e ideologias, carrega possibilidades de novos usos e significações. Parafraseando Brecht: não é a mídia que transforma a sociedade é o usuário; o espaço digital não pode ser visto como um fator limitante, deve permitir a comunicação. Ele é um espaço em construção, o modo como ele será construído é o modo como nos relacionamos com ele.

Reconhecer que somos sistemas determinados em nossa estrutura não deve imobilizar-nos. Tal reconhecimento não suprime nem nossas experiências espirituais, nem aquelas que chamamos de psíquicas. Ao contrário, permite-nos reconhecer que estas, como já disse, não pertencem

ao corpo, e sim ao espaço de relações em que se dá a convivência (MATURANA, 2002, p. 28)

A realidade da comunicação contemporânea exige que os sujeitos saibam lidar com uma imensa gama de informação em sua vida cotidiana e saibam se adequar constantemente a novas plataformas dentro do espaço digital. Para se subverter o espaço digital, é necessário lidar com o impacto desse fluxo acelerado de informações e, principalmente, com as novas plataformas e ambientes virtuais, ou seja, interpretá-los e integrando-os na nossa vida cotidiana e em nossa dimensão ética [visão do mundo]; isso parece ser uma tarefa inevitável dos sujeitos modernos. O desenvolvimento de habilidades com uma variedade de veículos e de conteúdos da mídia [textuais e não textuais] tornam mais difícil entender e definir até onde a ideia de inclusão e alfabetização digital se refere. No artigo intitulado “As múltiplas

alfabetizações midiáticas”, Joshua MEYROWITZ (2001), sugere que existem pelo

menos três diferentes tipos de alfabetização midiática, cada uma delas ligada a diferentes concepções de mídias.

1. A ideia que as mídias são condutores que nos trazem mensagens sugere a necessidade de uma alfabetização midiática de conteúdo.

2. A noção de que as mídias são linguagens com gramáticas distintas destacam a necessidade da alfabetização midiática das variáveis de produção.

3. A concepção das mídias como ambiente nos alerta para a necessidade de compreendermos a influência das características do meio, alfabetização dos meios.

A comunicação digital está se convertendo em um espaço estratégico a partir do qual se pode pensar as necessidades para se vencer os bloqueios e as contradições que separam a sociedade, o desafio é vencer o dilema entre um subdesenvolvimento social e uma modernização compulsiva. Como essas alfabetizações podem influenciar, por exemplo, não só as práticas poéticas, mas as educacionais que possam equacionar essa questão em um futuro próximo? É necessário desenvolver a autonomia do usuário em todos os aspectos, não só para se expressar em situações pré-estabelecidas [curtir, compartilhar]. O desenvolvimento da autonomia passa pela liberdade de articular a capacidade prática de autoconstituição, possuindo domínio de todas as etapas do processo.

No mundo acolchoado, maleável e informe da elite global dos negócios e da indústria cultural, em que tudo pode ser feito e refeito e nada vira sólido, não há lugar para realidades obstinadas e duras como a pobreza, nem para a indignidade de ser deixado para trás, nem tampouco para a humilhação que representa a incapacidade de participar do jogo do consumo. (BAUMAN, p. 59).

Arlindo Machado em seu livro Arte e Mídia (2010) busca esclarecer a inserção desse novo conceito de arte na vida atual e a necessidade das constantes adaptações, apresentando alguns aspectos de nossa relação com a tecnologia, definindo o termo “artemídia” como as formas de expressão artística que se apropriam de recursos tecnológicos e das mídias para propor alternativas qualitativas e como expressão da cultura de nosso tempo. Para isso os usuários devem ultrapassar os limites das máquinas e reinventar seus programas e suas finalidades.

Para essa alfabetização acontecer, é preciso, além de modificações no conceito de alfabetização digital, ampliar o acesso sem limitações econômicas, assim poderão brotar articulações entre práticas de comunicação, movimentos sociais, para as diferentes pluralidades de matrizes culturais. Como esse é um sonho futuro, hoje temos de criar em condições estabelecidas e com conhecimento imperfeito, mesmo assim, as subversões são possíveis, igual a realizada pelo grupo Coletivo transverso no facebook [imagem 2] e outros grupos que vamos analisar a seguir. A imagem a seguir lança a pergunta sobre os locais da poesia, o espaço onde ela é escrita, no caso os espaços se relacionam, se fundem, são o texto, a garrafa, a foto, o espaço digital, imagético etc.