• Nenhum resultado encontrado

Nos poemas para crianças pequenas, o ritmo apresenta-se mais simples e os textos devem ser mais breves; já para as crianças maiores, tornam-se encantamento a repetição e longos versos, elas se envolvem na sonoridade, no texto, na rima, seja nas parlendas ou nas adivinhas. O rítmo vai funcionar como canal de abertura para a audição e fruição e imaginação.“De repente as palavras vestem seus disfarces e num piscar de olhos estão envolvidas em batalhas, cenas de amor e pancadarias. Assim as crianças escrevem, mas assim elas também leêm seus textos” (BENJAMIN, 2002, p. 70). As crianças apreciam as cantigas de roda, as quais apresentam rimas acompanhadas de dança e movimentos dos mais variados, cujos textos associam-se ao corpo.

De acordo com Neusa Sorrenti, em seu livro A poesia vai à escola (2007), as crianças menores apreciam a música e a poesia pela cadência e pela sonoridade que elas proporcionam. “O ritmo é o elemento imprescindível num texto poético. O poema pode não ter rima, mas sempre terá um ritmo, um jogo sonoro” (SORRENTI, 2007, p. 73). Ainda para essa autora, a sonoridade torna-se responsável pela iniciação poética e deverá agradar o ouvido da criança, independente do que venha a significar. As brincadeiras e a musicalidade se misturam poeticamente por meio da escrita.

Bordini ressalta, em seu livro, algumas cantigas, como o “caranguejo não é peixe”; “que torre é essa”, dentre outras, que levam a criança a ler do seu jeito. Isso também ocorre com a cantiga de roda

“se eu fosse um peixinho e soubesse nadar”, a qual reaviva e traz para as crianças uma atmosfera rítmica e sonora do poético (1991, p. 14).

Essas são formas recitadas e vivenciadas pelas crianças, cujos corpos envolvem-se ao texto. O ritmo dá movimento ao texto, fazendo com que a criança não se canse com a leitura, mesmo que haja uma longa e extensa narrativa. A musicalidade, o ritmo auxilia no encadeamento da história.

O que vimos até aqui foram autores que trabalharam com poemas, sendo que muitos deles escreveram não só para as crianças, mas também para os adultos. Eles e muitos outros ampliam e enriquecem a experiência dos pequenos leitores sem menosprezá-los ou apresentar uma literatura ingênua ou infantilizada. Assim, são alguns deles que irei citar durante a tese.

Esses poetas escreveram sem que a qualidade dos poemas produzidos para as crianças se encolhesse para corresponder à estatura dos leitores. A questão da abrangência de público - poetas capazes de escrever tanto para adultos quanto para crianças -, o fato de o autor de poemas infantis não ser um meio-poeta, porque compõe, também, para um público menor (CADEMARTORI, 2009, p.109).

É preciso sensibilidade ao selecionar poemas ou narrativas para as crianças. "Os sons relacionados no poema, o ritmo dos versos, a força das imagens são suficientes para que crianças e adultos sintam-se atraídos pela composição" (CADEMARTORI, 2009, p. 112). A poesia infantil deve ser capaz de mirar a infância sem subestimá-la e valorizar a decisiva experiência com a linguagem que, nessa etapa, se pode viver.

Não é uma tarefa fácil ultrapassar os caminhos convencionais de seleção e apresentar textos expressivos às crianças, criando uma atmosfera poética, na qual ela possa "desconstruir o texto" e estabelecer novas construções, como ressalta Ligia Morrone Averbuck (1993, p. 53).

John Huizinga no seu livro Homo Ludens (2008) confirma que a poesia tem origem no jogo32. Eliane Debus, ressalta que o jogo que se apresenta entre o texto e o leitor, na brincadeira com a escrita poética, contribui para que a criança construa novos significados. Também Sorrenti acredita nessa ludicidade. Para ela, a criança exerce o faz de

32

O jogo a que me refiro neste capítulo, não é jogo didático, no qual vem pré estabelecida uma regra, mas sim o ato lúdico.

conta, reinventando e brincando com o poema. Podemos também lembrar aqui de Octávio Paz (1982) ele afirma que a poesia deve chegar até a criança do mesmo jeito que chega o conto, a dança: de forma desafiadora, como um agente sedutor.

Segundo Bachelard, nos devaneios da criança, a imagem prevalece acima de tudo. As experiências só vêm depois. Elas vão à contravento de todos os devaneios de alçar voo. A criança enxerga grande, a criança enxerga belo.

Muitos são os poetas que dedicam a brincar com as palavras apresentando à criança a ludicidade do texto poético, com as suas rimas, os seus ritmos, as suas sonoridades. A palavra poética é transgressora ao desautomatizar as coisas cotidianas; nesse mundo do poetar, as coisas inanimadas ganham vida, e tudo se torna encantamento numa lógica ilógica (DEBUS, 2006, p. 55).

Pensando nessa ludicidade do texto poético, citado por Debus, cito Jacques Roubaud33 em um de seus poemas que traz uma ironia sutil.

O poema trabalha bastante com o processo de criação, um soneto que na verdade põe em questão sua própria forma. Com o poema “O micróbio”, o poeta sugere essa mescla, na qual o verso deriva da figura do animal em foco. E tudo é feito com muita leveza e bom humor, bastando ver o poema, que traz, no alto, uma página em

branco e, embaixo, uma na nota de rodapé, em que se lê: "O poema está

aqui, mas para vê-lo precisamos de um microscópio".

O poema apela para o visual, quando o poeta nos incita a ver, desafiando o leitor a olhar o que não está visível a olhos nus.

33

Jacques Roubaud é um dos mais conhecidos e reconhecidos poetas franceses contemporâneos não só em seu país, mas no estrangeiro. Aos vinte e dois anos, abandonou seus estudos de literatura para dedicar-se à matemática. É chamado de “fabricante de matemática e de poesia". Os animais de todo mundo, é uma obra conhecida no Brasil, Ilustrado por Fefe Talavera e tradução de Paula Glenadel e Marcos Siscar. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

Percebemos que não existe um poema, a página está em branco, mas, ao mesmo tempo, o poema se faz presente na sua ausência e é na sua impossibilidade que temos a dimensão possível do poema. Existe aqui o potencial para mais um poema. É característica de Roubaud brincar com as palavras que estão ou não presentes no texto. A ilustração que não está presente sugere mais que representa, deixando espaço para o imaginário do leitor.

O que me parece é que o poeta abre um espaço para o leitor, dando possibilidade de criação, ele interage com o leitor quando sugere o microscópio. O próprio Jacques Roubaud afirma que “Não há, portanto forma fixa e definitiva enquanto tal", portanto, para ele, não existe uma única forma de fazer e apresentar o poema.

Para Marina Colasanti, a rima, na poesia infantil, é como uma escada rolante: cada palavra vai conduzindo outra semelhante. Muitos são os recursos, muitas são também as possibilidades temáticas, os tons e as feições da poesia infantil. Há composições de poesia infantil que apenas brincam com os sons: "Tratam a língua como material e convidam a criança a jogar com a sonoridade, sem se importar com significados". (CADEMARTORI, 2009, p. 115).

De uma outra perspectiva, ainda é possível observar que a poesia vem acompanhando o ser humano desde a sua mais remota infância, são exemplos disso: os jogos de ninar, no Brasil; as cantigas de macuru, para os indígenas; a canción de cuña ou ninera, na Espanha; os lullaby, na Inglaterra e nos Estados Unidos; e a berceuse, na França e na Bélgica. Essas canções foram e são entoadas pelas mães e babás para adormecer bebês. Também podemos citar os jogos de palavras, fonemas e canções populares, preservando a magia natural do ser humano e libertando-o das convenções. Ressoam nos nossos ouvidos parlendas, quadrinhos, cantigas rimadas, que acabam sendo transmitidas de geração a geração.

Ao repetir versos, aliterações e sonoridades, a criança realiza suas primeiras aproximações efetivas com a poesia. Muitas vezes ela será capaz de repetir e apreciar um poema sem mesmo apreender toda extensão de seu significado. A primeira fase de seu contato com a poesia é, pois a do domínio das sonoridades. (SORRENTI, 2007, p.21).

O poeta precisa aventurar-se para trazer uma nova possibilidade de enunciar o que quer dizer. “Poeta e criança vivem a experiência poética do mundo e desvelam a vida dentro de uma dimensão lúdica” (SORRENTI, 2007, p. 24). Ainda para essa autora, o brinquedo é um objeto que leva a criança a experiências imaginárias, o texto poético também traz o ludismo rompendo com os valores instituídos.

Uma das ações mais ligadas à caracterização da infância é jogar. Não se trata de jogo na exclusiva acepção de atividade organizada segundo regras, mas de jogo como um modo e uma condição de realizar ações, de considerar o lúdico dessa ação. Portanto a valorização do aspecto lúdico impulsiona a expansão da poesia endereçada à criança, introduz, nos versos e nas estrofes, a perspectiva da diversão, do jogo e da brincadeira."Toda poesia tem origem no jogo: o jogo festivo da corte amorosa, o jogo marcial da competição, o jogo ligeiro do humor e da prontidão. (...) um jogo com as palavras e a linguagem" (HUIZINGA, 2008, p. 143).

Existe uma afinidade entre jogo e poesia, e ela se manifesta na própria estrutura da imaginação poética. Na elaboração de uma frase e no desenvolvimento poético há sempre uma intervenção de um elemento lúdico. “Tanto o conflito quanto o amor implicam rivalidade ou competição, e competição implica jogo” (Idem, 2008 p. 148). Segundo o autor, o que a linguagem poética faz é usar desse elemento lúdico, jogar com as palavras, harmonizá-las e projetar mistério em cada uma delas, de forma que cada imagem apresenta e soluciona um enigma. “A imaginação poética oscila constantemente entre a convicção e a fantasia, entre o jogo e a seriedade” (HUIZINGA, p. 156).

Regina Zilberman, em seu livro Literatura infantil autoritarismo e emancipação (1984), aduz que é preciso pensar literatura a partir da atividade que a criança desenvolve quando lê, ouve um texto. Assim, a autora faz relação entre o ato lúdico e a iniciação literária, particularmente a "experiência com a poesia" (1984, p. 25).

As palavras como um instrumento para o jogo e para o ato de jogar. Transformam-se em peças que possibilitam essa ludicidade, conduzindo as crianças à brincadeira. Mesmo o jogo não sendo uma atividade exclusiva da infância, é neste período de desenvolvimento que a atividade lúdica mais se manifesta.

A brincadeira e o jogo sempre estiveram presentes, em todos os tempos, na poesia, na dança, no culto e no próprio cotidiano. A arte foi estimulada por esse fermento da vida que é a expressão lúdica. (...) O artista, assim como a criança, faz uso de seu potencial de jogar com a fantasia, concretizando-a através de suas realizações, transformando desse modo a realidade que o rodeia (ALMEIDA, 1994, p. 23). O texto poético infantil carrega a conotação de jogo semelhante às cantigas, aos trava-línguas e às parlendas. As rimas, a sonoridade, as aliterações, o preenchimento das imagens transmitidas pelas metáforas constituintes são recursos da linguagem que se aproximam do lúdico e conquista a criança por tornar sua leitura uma espécie de jogo, uma brincadeira com as palavras. Afinal, como nos lembra Girardello, sonhamos através dos textos, devaneamos, lembramos, desejamos, desesperamo-nos, odiamos, criticamos, aprendemos e muito mais, no contato com a obra, pois é o texto que vai oportunizar muitas fantasias e imaginações.

Podemos lembrar aqui de Todorov, em que nos alerta sobre o perigo que hoje ronda a literatura. Ele expressa a preocupação da literatura "não mais participar da formação cultural do indivíduo, do cidadão" (TODOROV, 2012, p. 08). Há que se pensar na urgência de trabalhar, lado a lado, com o professor, oferecendo-lhe cada vez mais momentos de formação continuada, com subsídios para que sua prática docente seja consciente e alicerçada em pressupostos teóricos.