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CAPÍTULO I: A MORTE NA CONCEPÇÃO DO CATOLICISMO ROMANO

2 As transformações histórico-antropológicas da morte ocidental: da idade média

2.1 A ritualização da morte no medievo

Sabemos que os rituais estão presentes em todas as esferas de uma organização social. Onde houver grupos de pessoas, seja de qualquer cultura, haverá consequentemente ritos que darão sentido aos mitos, sejam das mais variadas formas, conteúdos, significações e finalidades. O rito é revestido de sacralidade e geralmente contém na sua essência, uma conotação religiosa.

Os rituais que aqui serão apresentados transmitem com fidelidade a visão da morte a partir de uma sociedade acostumada a tê-la como familiar. Conforme Ariès (2003, p. 34-35), as práticas rituais nessa sociedade eram compostas por cerimônias tradicionais na qual o moribundo era a figura central. Estas cerimônias transcorriam com simplicidade, sem dramaticidade e sem exageros nos gestos emotivos. O quarto onde se encontrava o jacente tornava-se palco de uma cerimônia pública e organizada, onde a família, os parentes, os amigos e inclusive as crianças se faziam presentes.

Como já vimos, é notório que naquela época a morte não era temida como na contemporaneidade, pelo contrário, era esperada. Dessa forma, o moribundo pressentia a chegada do seu fim e ele próprio se encarregava de conduzir os atos cerimoniais que eram aceitos e cumpridos. Num primeiro momento do ritual, ele

fazia uma espécie de evocação triste e discreta, como se fosse uma nostalgia de sua vida, era o primeiro ato da cerimônia (cf. ARIÈS, 2003, p. 32).

Em seguida, o ato de penitência, onde o moribundo pedia perdão a todos que estavam no seu leito de morte e ainda recomendavam a Deus os que ali presenciavam. Logo após, pedia perdão a Deus através de preces e depois fazia a recomendação de sua própria alma. Por último, após todos estes atos religiosos, era a vez do ato sacramental32, onde o sacerdote ministrava a absolvição em remissão aos pecados cometidos, aspergindo água benta no jacente (cf. ARIÈS, 2003, p. 32- 33).

Todos estes rituais eram encarados com serenidade pelo fato das pessoas daquela época terem uma concepção de morte diferente da atual. Elas não temiam a morte como se teme hoje, aceitavam-na com tranquilidade, pois eram conscientes da finitude humana. Concebiam a morte como algo próximo e familiar por um lado e por outro, atenuado e indiferente. Dessa forma, as atitudes e os rituais diante da morte permaneceram por vários séculos (cf. ARIÈS, 2003, p. 35).

Geralmente os funerais continham quatro fases fundamentais. A primeira fase das exéquias iniciava-se imediatamente após a morte e era marcada pelas expressões dramáticas de dor. Consistia em atitudes carregadas de dramaticidade exagerada, na qual as carpideiras33 e os participantes “rasgavam suas roupas,

arrancavam a barba e os cabelos, ralavam o rosto, beijavam apaixonadamente o cadáver, caíam desmaiados e, no intervalo de seus transes, faziam elogios ao defunto” (cf. RODRIGUES, 2006, p.105).

A segunda fase consistia na absolvição do cadáver, uma vez que já havia tido a absolvição do moribundo no seu leito de morte. Era a única parte religiosa do ritual, na qual o sacerdote e seu cortejo absolviam o defunto. A terceira fase era constituída do cortejo fúnebre propriamente dito. Após as manifestações de dor e a absolvição, o cadáver era envolvido numa mortalha e seguiam em cortejo,

32 Este ato sacramental se refere ao Sacramento da Penitência e da Reconciliação, administrados

somente pelos bispos e presbíteros da igreja. Seus efeitos espirituais são: a reconciliação com Deus e com a igreja; a remissão da pena eterna devido aos pecados mortais; a remissão das penas temporais devido aos pecados veniais; a paz, a serenidade de consciência e a consolação espiritual; o acréscimo de forças espirituais para o combate cristão (cf. CNBB, 2000, p. 411).

33 As carpideiras eram mulheres contratadas para participar dos velórios, recebendo pagamento por

seu trabalho. Elas desempenhavam a função de comandar alguns atos emotivos do funeral, tais como, choros, lamentos, homenagens, etc.

acompanhados da família e amigos, até o local da inumação. A quarta e última fase era a inumação, que consistia num curto ato sem nenhuma solenidade (cf. RODRIGUES, 2006, p. 105).

Na primeira fase da idade média, os ritos funerários eram eminentemente civis, onde a participação religiosa era importante, mas não dominante, denotando uma herança de um passado pagão. A partir do século XVII é que essa participação se torna mais efetiva, sobretudo após a morte e o enterro, através de recitação de ofícios e celebração de missas (cf. RODRIGUES, 2006, p.105).

Com relação às práticas funerárias, Rodrigues (2006, p.105, 108,110) faz notar a nítida diferença entre o sepultamento dos ricos e dos pobres. Os cadáveres dos ricos eram envoltos num lençol de linho precioso chamado de mortalha e colocados em um ataúde34, já nos cadáveres dos pobres, utilizavam um lençol de tecido simples e o colocavam numa padiola35. Ambos ficavam expostos na casa por certo tempo, para depois serem levados para o local da inumação, obedecendo a um percurso pré-determinado pelo morto ou pelas convenções sociais, no qual se faziam algumas paradas. As inumações nas igrejas constituem um fato essencialmente católico-romano. Os romanos iniciaram essas práticas no campo, em cemitérios rústicos e túmulos independentes situados na beira das estradas.

Alguns costumes precediam e sucediam os funerais. Antes do funeral, os familiares tinham um cuidado todo especial com o cadáver. Segundo Maranhão (1998, p. 8), eles banhavam o corpo, cortavam as unhas, aparavam o cabelo, vestiam a mortalha, entrelaçavam os dedos das mãos e colocava um rosário. Depois o corpo ficava exposto sobre uma mesa durante dois ou três dias para o último adeus dos familiares e amigos, estes por sua vez caracterizados pela vestimenta de luto.

Após o funeral, eles costumavam fechar as janelas da casa, cobriam os espelhos, paralisavam os relógios, acendiam velas e aspergiam água benta pela casa. Essas eram as práticas habituais daquela época e os familiares as cumpriam religiosamente. Quanto às manifestações de luto, os familiares se vestiam

34 Caixão funerário, féretro, tumba.

usualmente com vestimentas totalmente negras36 e não participavam de nenhuma

atividade social, até que ocorresse a cicatrização da ferida causada pela dor da perda e da separação. Todas estas interdições eram cuidadosamente respeitadas até a reintegração dos familiares à vida normal em sociedade (cf. MARANHÃO, 1998, p. 8-9).

Podemos atestar abaixo, todos esses costumes e práticas com Ariès (2003, p. 71).

Aproximadamente desde o século XII, o luto excessivo da Alta Idade Média efetivamente ritualizou-se. Começava apenas após a constatação da morte e traduzia-se por uma indumentária, por hábitos e por uma duração fixados com precisão pelo costume. Assim, do fim da Idade Média ao século XVIII, o luto possuía uma dupla personalidade. Por um lado, induzia a família do defunto a manifestar, pelo menos durante um certo tempo, uma dor que nem sempre experimentava. Esse período podia ser reduzido ao mínimo por um novo casamento precipitado, mas nunca era abolido. Por outro lado, o luto tinha também o efeito de defender o sobrevivente, sinceramente submetido à provação, contra os excessos da dor, pois impunha-lhe um certo tipo de vida social, as visitas de parentes, vizinhos e amigos que lhe eram feitas e no decorrer das quais a dor podia ser liberada sem que sua expressão ultrapassasse, entretanto, um limite fixado pelas conveniências [...] (cf. ARIÈS, 2003, p.71).

Ariès (2003, p. 245,250) diz que, se fosse possível traçar uma curva do luto, esta teria “uma primeira fase aguda, de espontaneidade aberta e violenta, até o século XIII aproximadamente; depois uma fase longa de ritualização até o século XVIII e ainda, no século XIX, um período de exaltado “dolorismo”, de manifestação dramática e mitologia fúnebre”. Contudo, o luto foi e continua sendo uma manifestação de dor, necessária e legítima, por parte daqueles que conviveram com o morto.

3. Uma representação do juízo cristão

A leitura apocalíptica sugere um final dos tempos marcado pelo retorno do Cristo Salvador, onde os eleitos, aqueles que perseveraram na fé cristã, serão separados daqueles que desprezaram essa mesma fé. As distinções entre o bem e

36 A cor negra da vestimenta só surgiu como cor de luto a partir do século XVI, quando se começou a

atribuir ao fim último um caráter sombrio. O uso da cor negra se estende até a primeira metade do século XX (cf. RODRIGUES, 2006, p.156).

o mal estão inseridas no Livro do Apocalipse como mensagem reveladora cristã, de modo extremamente simbólico, através de imagens, figuras, números e símbolos.

No livro do apocalipse, Deus é apresentado como o Senhor Supremo da história, Aquele que reina e julga a humanidade. É perceptível a urgência da propagação do conteúdo da mensagem reveladora a toda a comunidade cristã. De certo modo, o apelo salvífico está centrado na morte e ressurreição do Cristo, como um convite a conversão de todos os crentes. Segundo o Livro do Apocalipse, o julgamento cristão acontecerá no final dos tempos, onde o mesmo é prerrogativa para a salvação (cf. CNBB, 1990, p. 1594,1611).

Aqui Ariès (2003) se refere à escatologia cristã, marcada por um juízo no qual todos serão julgados no final dos tempos. Os mortos que pertenciam ao corpo da igreja, ou seja, os bons, aqueles que realmente professavam a fé cristã, estes aguardavam a ressurreição dos mortos num estado de adormecimento ou descanso, quando finalmente no segundo retorno do Cristo, despertariam para o paraíso. Contudo, aqueles considerados “maus”, que não professavam a mesma fé dos bons, seriam abandonados ao “não-ser”, assim sendo, não despertariam, ficariam mergulhados no sono profundo da morte ( cf. ARIÈS, 2003, p. 47- 49).

Nesse contexto histórico medieval, a representação do juízo final se revelaria através das iconografias37 dominadas pela glória do Cristo, segundo a visão

apocalíptica, as quais expressavam a arte de morrer vislumbrando uma ressurreição dos mortos. A partir do século XII, começa uma transformação quanto à inspiração das iconografias, nelas são retratadas a “separação dos justos e dos malditos” na ressurreição dos mortos (cf. ARIÈS, 2003, p. 48). Num dos tímpanos38 que retrata o

juízo final na Catedral Saint Lazare, em Autun, França, as almas são submetidas a uma pesagem.

Ariès (2003) salienta que no livro Liber vitae, do século XIII, escrito por autores franciscanos, também é utilizado uma balança como símbolo para a pesagem das boas e das más ações das almas. Em princípio, este livro foi concebido como um livro cósmico por ser uma espécie de inventário do universo,

37 É uma arte teológica que exprime sentimentos interiores, tanto visíveis quanto invisíveis através de ícones cristãos.

onde o mundo seria julgado pelo que estava contido nele. Porém, no fim da idade média, adquiriu a conotação de livro de contas individual, no qual está registrada a biografia de cada um (cf. ARIÈS, 2003, p. 48-49).

Retornando ao tímpano de Autun (figura abaixo), o juízo final é representado pelo Cristo entronado no centro de uma mandorla39. Nesta escultura, o Cristo estende sua mão direita em direção aos eleitos, encaminhando-os ao paraíso e com a mão esquerda, sentencia os condenados ao caminho do inferno. Neste frontal, a maioria dos mortos saem nus dos seus túmulos para enfrentar o grande dia, que é o dia do julgamento de Deus. Esta arte sacra é do século XII e foi assinada por Gilesbertus, um escultor francês (cf. TREVISAN, 2003, p. 100-101).

Figura 1: Juízo final no tímpano do portal da Catedral de Saint Lazare, em Autun, França. Fonte: http://sumateologica.wordpress.com

39 Elemento decorativo da pintura e da escultura, caracterizado por uma forma oval semelhante à da

A noção de um juízo no fim dos tempos denota uma existência de um juízo coletivo, onde todos os seres, sem exceção, seriam julgados coletivamente. Todavia, de acordo com Ariès (2003, p. 48), nessa concepção de juízo “não há lugar para uma responsabilidade individual, para um cômputo das boas e más ações”.

Até o século XIV, a inspiração apocalíptica com relação ao juízo final monopolizou o pensamento cristão. Prevaleceu a ideia de um julgamento comum a todos, onde justos e injustos seriam julgados separadamente, de acordo com suas ações na existência. Ariès (2003, p. 49) já observa desde então, uma “recusa inveterada em assimilar o fim da existência à dissolução física”, pois que sempre existiu a crença em uma vida após a morte, só que esta, necessariamente, não perduraria até uma eternidade infinita, mas sim até o final dos tempos, no qual a ressurreição faria ressurgir os mortos (somente os justos) do sono profundo.

A partir do século XV é que começa uma nova concepção acerca do juízo final. Este agora será concebido de forma individual e no leito de morte. Esse rito particular adquire um aspecto dramático em decorrência do tempo escatológico entre a morte e o final dos tempos terem sido suprimidos. Carregado de emoção, o moribundo trava uma luta individual através de uma grande ação cósmica. Nesse momento, o indivíduo revê toda sua trajetória de vida, reconhecendo-se como ser único e responsável pela sua própria história, dando um sentido definitivo à sua biografia (cf. ARIÈS, 2003, p. 53).

Esta nova iconografia, intitulada de Tentação na convicção, é retrata pelas ars moriendi (arte de morrer) dos séculos XV e XVI. As Ars Moriendi faz parte de um corpo da literatura cristã, onde suas gravuras foram difundidas em livros que tratam da arte de morrer no período medieval. A nova concepção acerca do novo juízo, não se trata exatamente do juízo final, até porque o personagem da história é um moribundo e não um morto. Conforme Ariès (2003, p. 50), trata-se de uma luta travada entre as forças do bem e do mal que se passa na consciência do jacente. Esta guerra interior é oculta aos parentes e amigos presentes no quarto do moribundo, que acompanham tudo com nítida indiferença.

Nesta cena, o bem e o mal são representados por seres sobrenaturais. “De um lado, a Trindade, a Virgem e toda a corte celeste e, de outro, Satã e o exército de demônios monstruosos” (p. 50). O que aconteceria no grande dia final, agora

acontece no leito de morte. Duas interpretações são sugeridas nesta gravura das ars moriendi:

A primeira interpretação é de uma luta cósmica entre as potências do bem e do mal que disputam a posse do moribundo, quanto a este, assiste ao combate como um estranho, embora ele mesmo esteja em jogo. [...] a segunda interpretação, Deus e sua corte estão presentes para constatar como o moribundo se comportará no decorrer da prova que lhe é proposta antes de seu último suspiro e que determinará a sua sorte na eternidade. Esta prova consiste em uma última tentação. O moribundo verá sua vida inteira, tal como está contida no livro, e será tentado pelo desespero por suas faltas, pela “glória vã” de suas boas ações, ou pelo amor apaixonado por seres e coisas. Sua atitude, no lampejo deste momento fugidio, apagará de uma vez por todas os pecados de sua vida inteira, caso repudie todas as tentações ou, ao contrário, anulará todas as suas boas ações, caso a elas venha a ceder (cf. ARIÈS, 2003, p. 51-52).

É interessante destacarmos que o juízo no quarto do moribundo se trata de um juízo particular a cada indivíduo, apesar da morte no leito ser um rito eminentemente coletivo, como vimos anteriormente. Estas duas acepções, a individual e a coletiva, aparecem retratadas e reunidas na iconografia das ars moriendi representando “a segurança do rito coletivo e a inquietude de uma interrogação pessoal” (cf. ARIÈS, 2003, p. 52-53).

Ainda de acordo com Ariès (2003, p. 52-53), o rito coletivo no leito de morte, por si só já solenizava essa passagem, representando um fim comum a todos os mortais. Já o juízo individual incorreria numa responsabilidade direta, pessoal e intransferível. Aqui, acredita-se que o indivíduo revê toda sua trajetória no exato momento da morte, como se fosse um filme que passa a sua frente, só que este filme é a sua própria história, construída em cima das boas e más ações durante sua existência.

4. A visão contemporânea da morte

A imagem da morte sofreu e continua sofrendo inúmeras transformações na sociedade ocidental, onde o pavor e a recusa invadiram extensões inteiras dessa civilização. Esta interdição da morte, conforme Ariès (2003, p. 91), teve sua origem provavelmente nos Estados Unidos no início do século XX. Com isso, uma

verdadeira revolução das práticas referentes à morte aconteceu a partir dos séculos XIX e XX, através de uma grande reformulação dos pensamentos e sentimentos a ela relacionada.

A morte que foi exaltada e desejada no período medieval, chegando a ser considerada a coisa mais importante da vida de um homem, como visto anteriormente, agora muda de imagem. Ela vai perdendo no dia a dia todo o encantamento e valor que lhes eram atribuídos, passando a ser encarada com aparente indiferença. Sua decadência é perceptível através do comportamento da sociedade que se expressa de forma pontual a esse respeito.

Segundo Rodrigues (2006, p.164), as práticas e costumes que envolviam a todos numa comoção social através das lágrimas, dos gritos e lacerações, foram sendo tolhidas e substituídas pela proibição da dor. Esse novo jeito de se comportar diante da morte tinha como finalidade poupar a coletividade da dor e de qualquer ato que pudesse incomodá-la.

O luto que era regido por regras coletivas, agora é relegado à iniciativa individual, exigindo do indivíduo enlutado um equilíbrio emocional quanto à expressão de seus sentimentos. Toda e qualquer expressão de exaltação emocional coletiva foi eliminada, desta forma, o luto se privatizou, sendo praticado somente pelos parentes mais próximos. Tudo isso foi apagado em nome da consternação e do cuidado em não perturbar os outros com assuntos tão desagradáveis (cf. RODRIGUES, 2006, p.164).

A morte que era tão presente e familiar, agora se tornara vergonhosa e objeto de interdição. Ela vai sendo apagada do convívio das pessoas, vai se esvaziando quanto ao seu sentido e distanciando-se cada vez mais da vida da sociedade ocidental contemporânea. Ela se torna um tema proibido, algo inominável (cf. ARIÈS, 2003, p. 84,102).

Parece que essa nova atitude diante da morte tem a finalidade de preservar a felicidade, pois as pessoas não estão encontrando mais um padrão de comportamento adequado diante dela. Até as crianças que conviviam com a morte, presenciando todas as suas etapas, agora são afastadas, lhes sendo ocultados os fatos referentes à morte e aos mortos. Dessa forma, podemos inferir com Maranhão

(1998, p.17) que, “[...] Assim, as pessoas vão se retraindo no trato com os mortos e assumindo o mero papel de espectadores”.

Por essa nova postura de indiferença da morte, a sociedade não consegue mais suportar sua ritualização. Os ritos fúnebres foram neutralizados e modificados na sua essência com a intenção de esconder a morte. No passado, as pessoas faziam questão de saber a proximidade da morte para poder preparar-se e cumprir solenemente todo ritual prescrito. Hoje, as pessoas ocultam toda e qualquer informação que digam respeito à morte, elas se tornam cúmplices dos médicos no intuito de não permitir que o outro saiba que está próximo seu fim (cf. MARANHÃO, 1998, p. 12).

Ariès acredita que todas essas mudanças de atitudes tiveram como causa a transferência da morte para os hospitais. Com isso, os ritos que precediam a morte foram exterminados, agora o enfermo não é mais dono do seu destino, um novo ator desponta no cenário, o médico. Ele é quem ditará as regras a partir de agora, amparado por uma tecnologia que tende a prolongar a vida, nem que para isso o enfermo viva de maneira inconsciente (cf. ARIÈS, 2003, p. 85-86).

Os preparativos do funeral, que antes era missão dos familiares, passam para a responsabilidade de terceiros. A família não deseja mais arrumar o cadáver como antigamente, delega agora essa tarefa que era tão familiar para profissionais de casas mortuárias. O cortejo fúnebre, que antes começava no seio da família, rodeado pelos parentes e amigos, transmigrou para as casas funerárias, especializadas na prestação de serviços eminentemente funerários. Se antes o defunto ficava exposto por dias na sala da casa, agora ele não passará mais que algumas poucas horas diante das pessoas que ali se encontram para despedir-se. Tudo isto é perceptível a nossos olhos.

Torna-se cada vez mais comum o caixão no qual o defunto se encontra ficar fechado, longe dos olhares. Uma tendência quanto ao uso do caixão, segundo Rodrigues (2006, p. 114) é que “[...] a generalização do uso de caixões, em que os mortos serão fechados e subtraídos aos olhares (não se trata simplesmente da ocultação do rosto, mas da ocultação do cadáver)”.