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Sidpa Bardo: uma elucidação do estado intermediário de renascimento

CAPÍTULO II: A MORTE E O MORRER NO BUDISMO TIBETANO

3.3 Sidpa Bardo: uma elucidação do estado intermediário de renascimento

3.3. Sidpa Bardo: uma elucidação do estado intermediário de renascimento

Sequenciando os dois primeiros estados intermediários (do momento da morte e de realidade), veremos agora o terceiro, que é o de renascimento. Este estado está dividido em três partes: introdução ao corpo mental; obstrução das entradas para o ventre e a escolha para uma entrada para o ventre. A cada parte, várias introduções são recitadas, sempre trazendo um apelo de se alcançar a iluminação através do reconhecimento da natureza da realidade.

Neste estado, o falecido continua tendo todo o suporte do mestre espiritual quanto à recitação das introduções, para que, através das palavras, possa novamente recordar os ensinamentos sagrados e reconhecer as visões divinas como a verdadeira natureza da realidade. Segundo Coleman & Jinpa (2010, p. 241), esse estado é chamado de “corpo mental da experiência manifestacional do estado intermediário”. Dependendo do domínio no qual o falecido esteja para nascer, experimentará o campo manifestacional correspondente.

Apesar da consciência do falecido ter passado por dois estados intermediários propícios para libertação – os quais forneceram muitas chances de reconhecimento - ainda assim, neste ele terá novamente a oportunidade de reconhecer a natureza essencial da realidade, se libertar e parar de vagar pelas seis classes de seres. Não será uma tarefa fácil, ao contrário, será muito difícil, pois a negatividade de suas ações passadas persiste e tenta desviá-lo do caminho da libertação. Não se sabe ao certo a duração deste estado, mas Rimpoche (1997, p. 32) diz que dura em torno de vinte e quatro dias, podendo variar, até porque isso dependerá das ações passadas de cada indivíduo. Coleman & Jinpa (2010, p. 242,244) diz que o sofrimento neste estado tem a duração de vinte e um dias.

Com relação às introduções, especificamente as que se referem ao “corpo mental”, estas devem ser aplicadas reiteradamente objetivando um reconhecimento diante da grande dificuldade encontrada pelo falecido devido suas ações negativas passadas. As introduções se reportam a uma capacidade miraculosa - baseada nas ações do passado - que agora o corpo mental do falecido possui. Essa capacidade miraculosa “é um estado de percepção Intensificada que tem sua origem nas tendências habituais passadas (vásaná)”. Também se atribui a esse corpo mental uma “clarividência pura”, permitindo aos que “estão destinados a uma forma de renascimento percebam os seres que pertencem a essa mesma forma”. (Ver anexos p. 252-254) as “introduções e a prece de aspiração referente ao corpo mental” (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p. 242-243).

Dotados de capacidade miraculosa e clarividência pura, o falecido experimenta intenso sofrimento neste estado. Como num sonho, ele vê e escuta o choro dos parentes e chega definitivamente à conclusão de que está efetivamente morto. Tudo isso o leva a um desespero profundo, gerando sofrimento e medo. Por ter o corpo mental grande percepção, o falecido poderá ser lançado rapidamente de um estado a outro, isto é, de um estado beatífico a um estado de sofrimento, ou vice-versa. Exemplificaremos abaixo com dois pequenos trechos da introdução ao corpo mental (cf.COLEMAN & JINPA, 2010, p. 243, 247).

É possível que estejas prestes a renascer nos domínios superiores, mas, no momento em que ocorrem as percepções dos domínios superiores, teus parentes ainda vivos, agora deixados para trás, estão fazendo sacrifícios e oferecendo vários animais em teu favor, dedicando [essas atividades] a ti, o falecido. Por isso surgirão percepções corruptas e elas poderão ter como consequência o surgimento [dentro de ti] de uma intensa aversão, que formará um elo com um nascimento nos domínios infernais (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p. 248).

Mesmo que estejas prestes a renascer nas existências inferiores, [se mantiveres a pureza de percepção] e perceberes os parentes que deixaste para trás praticando os ensinamentos virtuosos, sem mácula de negatividade, e vires teus mestres espirituais praticando em pureza os rituais com seu corpo, fala e mente virtuosos, sentirás grande alegria. Com essa simples [experiência de grande alegria], mesmo que estivesses prestes a cair nas existências inferiores, essa [alegria] formará um elo que certamente te fará voltar para os domínios superiores (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p. 249).

Todos os sentimentos e percepções impuras deverão ser combatidos pelo cultivo de uma profunda devoção e pela manutenção da pureza de percepção. Neste estado, tanto a percepção virtuosa quanto a não virtuosa surgem de forma bastante poderosa. Todas as introduções deste estado possuem diferentes níveis e são específicas para cada uma das partes acima citadas. As introduções referentes às duas primeiras partes “corpo mental” e “obstrução das entradas para o ventre” continuam chamando a atenção do falecido para que ele não se distraia e tampouco sinta pavor, apenas reconheça a natureza essencial dessa experiência. O objetivo destas instruções é livrar o falecido do renascimento e consequentemente conduzi-lo a libertação (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p. 247,249).

Já as introduções referentes à terceira parte “escolha de uma entrada para o ventre”, como o próprio nome sugere, é uma exortação para que o falecido escolha um ventre que lhe seja apropriado. Contudo, em dado momento da introdução, se livre de qualquer apego e se meditar eficazmente na divindade de meditação Mahákárunika105, ainda é possível atingir o estado búdico neste estado (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p. 240-257).

Voltando as atenções para a segunda parte do estado intermediário de renascimento, a “obstrução das entradas para o ventre”, verificou-se que para se obstruir as entradas para o ventre, ou seja, obstruir o renascimento para se ter a chance de atingir o estado búdico, o falecido terá que meditar novamente na sua divindade de meditação e no esplendor interno, para que isto o leve a se dissolver na própria consciência pura. Todavia, diante de seus olhos surgirão seis luzes que representam os seis domínios dos seres. Uma das luzes chamará sua atenção por seu brilho mais intenso, em outras palavras, ele será conduzido para o domínio que irá renascer. Aqueles que não tiveram ou tiveram muito pouco envolvimento com uma prática meditativa, sentirão dificuldades em compreender as instruções fornecidas, mesmo tendo sido repetidas vezes, e continuarão vagando em direção as entradas do ventre. (Ver anexos p. 254) uma das “introduções que obstruem o renascimento” (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p. 250-251).

Nesse momento, o lama continua tentando introduzir as orientações, só que agora baseadas num profundo ensinamento oral que induz, através de cinco

métodos, a obstrução do renascimento. Destes cinco métodos de obstrução, os dois primeiros são os principais. O primeiro método se designa a “fechar a pessoa que está para entrar no ventre”; o segundo, “fecha o ventre que está para se entrar”; o terceiro, “reverte o apego e a aversão”; o quarto, “sobre a natureza irreal e ilusória de todos os fenômenos”; e por fim, o quinto, “pela meditação no esplendor interno”. Estes métodos são extremamente importantes, visto que, quando introduzidos, exorta o falecido a despertar de sua memória as virtudes praticadas no passado, levando em conta a potência residual de suas ações virtuosas passadas (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p. 251-253).

Apesar de terem fracassado os esforços para se fechar as portas do ventre, inicia-se a terceira parte do estado intermediário de renascimento, que é “a escolha de uma entrada para o ventre”. Neste, é chegada a hora de tomar um corpo, porém deve-se fazer a escolha, sem distração, por um ventre apropriado. As instruções dadas pelo mestre espiritual fornecem indicações sobre quais ambientes são propícios para o renascimento. Dentre todos especificados na instrução, o melhor ambiente é aquele onde floresce os ensinamentos sagrados. (Ver anexos p. 256) “Instrução oral para a escolha de uma entrada para o ventre” (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p. 257).

Contudo, a instrução ainda persiste para que o falecido recorde os métodos de reversão para obstrução das entradas para o ventre, no intuito de se libertar da existência cíclica. Não será uma tarefa fácil, pois nesse momento, ele será aterrorizado e perseguido pelas forças vingadoras das leis de causa e efeito. Vale perceber, através da instrução, que ainda no último momento do processo de morte, ou seja, no final do último estado intermediário, oportunidades ainda são dadas ao falecido para que ele alcance o estado búdico (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p. 258- 259).

Coleman & Jinpa (2010), sintetiza bem este estado intermediário quando diz:

Este ensinamento [sagrado], quando encontrado no estado intermediário de renascimento, é uma instrução [oral] que liga [o falecido] com sua herança residual de ações passadas virtuosas. É por isso que [se diz que] este ensinamento se assemelha a um tubo que [restabelece a continuidade] quando inserido num aqueduto rompido. Portanto, [com fundamento na veracidade deste método], é impossível não alcançar a libertação mediante a auscultação deste ensinamento, mesmo para aqueles que têm as maiores negatividades. Isso se dá porque, durante os estados intermediários, tanto o

chamado compassivo de todos os Conquistadores (Pacíficos e Furiosos) quanto o chamado das forças malevolentes e causadoras de obstáculos surgem simultaneamente. Quando isso ocorre, pelo simples ato de escutar este ensinamento [sagrado], o modo de percepção [do falecido] é transformado e a libertação é assim alcançada (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p. 263).

Recomenda-se que todas as introduções sejam recitadas nos três estados intermediários e repetidas de três a sete vezes, de modo claro e em alta voz por um mestre espiritual, ou por um irmão espiritual, um praticante sincero ou um amigo benevolente. Geralmente são iniciadas tomando-se refúgio nas Três Joias Preciosas (o Buda, o Dharma e a Sangha); pedindo o auxílio dos budas e bodhisattvas e cultivando uma intenção altruísta. As introduções são dirigidas a todos os mortos, sem distinção, conforme descritas na Grande libertação pela auscultação, respeitando uma sequência lógica.

4. Ensinamentos e interdições do Bardo

O Livro tibetano dos mortos (Bardo Thödol) traz na sua essência, ensinamentos fundamentais em relação ao universo dos fenômenos da existência cíclica e também da existência póstuma. Nele, as orientações contidas norteiam o caminho para o “despertar” ou pelo menos o retorno à existência humana. Os principais ensinamentos do Thödol, dentre várias práticas especificadas em seu extenso conteúdo, destacamos a Grande libertação pela auscultação, que se baseia na natureza da existência entre a morte e o renascimento.

Como já foi dito anteriormente, a Grande libertação pela auscultação é um ensinamento sagrado, considerado a essência de todos os ensinamentos. Foi extraído do ensinamento-tesouro chamado, “As Divindades Pacíficas e Furiosas: libertação natural da intenção iluminada”, descoberto pelo mestre consumado Karma Lingpa, na montanha Gampodar. É um ensinamento indispensável que deve ser lido e compreendido no decorrer desta vida, pois favorecerá certa familiaridade ao meditante quando chegar a hora de sua morte. Mesmo aqueles que praticaram os

cinco crimes irremissíveis106, estes também poderão alcançar a libertação, para isso,

basta ouvir com atenção e devoção a recitação das introduções (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p.197,238-239).

Vários são os ensinamentos contidos no Thödol, todavia alguns possuem aspectos essenciais. Evans-Wentz (2013) os destaca numa sequência de vinte e um ensinamentos fundamentais.

1. Todas as condições ou estados possíveis, ou reinos da existência

sangsárica, céus, infernos e mundos, dependem inteiramente dos

fenômenos ou, em outras palavras, não passam de fenômenos;

2. Todos os fenômenos são transitórios, ilusórios, irreais e inexistentes, salvo para a mente sangsárica que os percebe;

3. Não existe, na realidade, em lugar algum, seres tais como deuses, demônios, espíritos, ou criaturas sensíveis – todos não passam de fenômenos que dependem de uma causa;

4. Essa causa é um apelo ou sede de sensação, de acordo com o estado da instável existência sangsárica;

5. Enquanto essa causa não for superada pela iluminação, a morte seguirá ao nascimento e o nascimento seguirá à morte, incessantemente, [...]; 6. A existência do pós-morte não é senão a continuação, sob condições

modificadas, de todos os fenômenos nascidos da existência do mundo humano – sendo ambos igualmente estados kármicos;

7. A natureza da existência que intervém entre a morte e o renascimento, neste ou em qualquer outro mundo, é determinada pelas ações antecedentes;

8. Encarada a partir de um ponto de vista psicológico, a existência do pós- morte é a continuação de um estado de sonho naquilo que poderia ser descrito como a quarta dimensão do espaço, que é pleno de visões alucinatórias resultantes diretas do conteúdo mental daquele que as percebe: feliz e celestial, se o seu karma for bom; miserável e infernal, se o karma for ruim;

9. A menos que a iluminação seja alcançada, o renascimento no mundo humano, seja diretamente a partir do Bardo ou de qualquer outro mundo, paraíso ou inferno ao qual o karma o tenha levado, será inevitável;

10. A iluminação é o resultado da percepçãoda irrealidade do sangsára, da existência;

11. Tal percepção espiritual é possível no mundo humano, ou no importante momento da morte terrena, ou ainda durante todo o pós-morte ou estado do bardo, ou em certos outros reinos não-humanos;

12. A prática do Yoga – isto é, o controle dos processos de pensamento propiciado pela concentração da mente como um esforço para o Conhecimento Real – é essencial;

13. Essa prática é realizada da melhor maneira sob a orientação de um

guru humano, ou mestre;

106Estes crimes são considerados de natureza grave, pois dificilmente são superados por meio de

reparações, são eles: matricídio, arhaticídio, patricídio, criar um cisma na comunidade monástica e ferir intencionalmente um buda (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p.376). O arhaticídio se configura pelo assassinato de um ser digno, aquele que se libertou da existência cíclica pela eliminação das tendências kármicas e dos estados dissonantes.

14. O maior dos gurus conhecido pela humanidade neste ciclo em que vivemos é Gautama Buda;

15. Sua doutrina não é única, mas é a mesma doutrina que tem sido propalada no mundo humano para se alcançar a salvação, para a libertação do ciclo de renascimento e morte, para a passagem pelo oceano do sangsára, para a realização do nirvana, [...];

16. Seres espiritualmente menos dotados, boddhisattvas ou gurus, neste mundo ou em outros, ainda que não libertos da rede das ilusões, podem, entretanto, conceder graça e poder divinos ao shishya ( isto é,

chela, ou discípulo) que está menos adiantado no caminho do que eles;

17. A meta é e só pode ser a emancipação do sangsára; 18. Essa emancipação advém da realização do nirvana;

19. O nirvana é não-sangsárico, estando além de todos os paraísos, céus, infernos e mundos;

20. Ele é o fim do sofrimento;

21. Ele é a realidade (cf. EVANS-WENTZ, 2013, p. 45-46).

Em um dos itens acima, mais especificamente o item doze, Evans-Wentz (2013, p.160-161) atribui a prática do yoga107 um caráter de essencialidade. Ele

afirma que para entender as instruções do thödol, é necessário ter um correto conhecimento dos ensinamentos, não apenas com relação à crença ou teoria, mas de realização. Assim sendo, o yoga leva o praticante a compreender todo o processo que se desenvolve no bardo, para com isso, passar consciente por cada etapa.

É sabido que as práticas meditativas direcionam para o equilíbrio do corpo e da mente. Diante disto, Rimpoche (1997, p. 53,56) diz que é fundamental a prática da meditação durante a vida através do conhecimento do dharma. A prática do dharma, por sua vez, possibilita o desapego com relação às coisas deste mundo. Dessa forma, o praticante experimenta a verdadeira natureza de sua mente.

[...] é preciso igualmente uma prática espiritual no transcurso desta vida a fim de abordar a morte e o bardo nas melhores condições. É preciso que nos esforcemos a partir de agora para acumular mérito, purificar-nos, reconhecer a verdadeira natureza de nossa mente. Essa prática espiritual depende agora de nós. Se não tivermos nenhuma, quando chegar o momento da morte, o karma nos arrebatará sem que tenhamos nenhuma possibilidade de reagir. Ao contrário, amparados pela prática desta vida, teremos a possibilidade de enfrentar a morte serenamente e, mesmo, de sermos libertados durante o bardo (cf. RIMPOCHE, 1997, p. 54).

107

Yoga significa literalmente “união”. Para o budismo, este termo “se refere aos métodos por meio dos quais o meditante se une aos atributos da divindade de meditação no estágio de geração da meditação e com a natureza fundamental da realidade no estágio de perfeição da meditação” (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p. 474).

Como diz o texto, o praticante deve munir-se de uma profunda prática espiritual para quando chegar o momento da morte, saber enfrentá-la, reconhecendo cada bardo como manifestação natural da mente pura, sem sentir medo ou terror, e consequentemente, se libertar. Rimpoche (1997, p. 54) acrescenta que “para aquele que morre sem preparação espiritual, a angústia e o sofrimento são inevitáveis”.

Coleman & Jinpa (2010, p. 442), destaca uma prática meditativa preliminar que antecede as principais práticas do estágio de geração e de perfeição da meditação. As práticas preliminares “exteriores ou comuns” é composta por quatro meditações analíticas, as quais visam o afastamento das distrações mundanas da mente do praticante, fazendo com que sua mente se volte para os ensinamentos sagrados. Essa prática meditativa tem como objetivo “a natureza das oportunidades preciosas oferecidas pelo nascimento humano; a morte e a impermanência (anitya); a dinâmica das ações passadas (karma) e de suas consequências; e os sofrimentos dos seres na existência cíclica (samsára)”.

Isto posto, percebe-se com clareza a importância da meditação na cotidianidade do devoto, pois que ela dá o suporte necessário para o enfrentamento das situações adversas que surgem no dia a dia. Esta prática em especial, tem o propósito de libertar a mente do praticante da ignorância, levando-o a refletir sobre os fenômenos da existência cíclica que o afetam diretamente lhe causando sofrimento, a exemplo da morte, do nascimento, da velhice e da doença. Se realizada com eficácia, consequentemente esta prática o beneficiará no momento de sua morte.

Quanto às interdições existentes no processo de morte, identificamos algumas no livro tibetano dos mortos. Nesta tradição, uma das principais proibições se dá com relação ao toque no corpo do falecido. Verificamos que é uma proibição bastante enfatizada nesse processo de morte, por isso, a leitura das instruções devem ser feitas com os lábios próximos ao ouvido do morto, porém sem haver qualquer contato. Os lamas dizem que o toque pode atrair a atenção do falecido para a parte tocada, gerando deste modo, uma interferência no processo de saída da consciência, que pode ser benéfico ou maléfico, dependendo do domínio mental a ser entrado (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p.199).

Essa proibição vale desde o momento em que a consciência entra no canal central até o momento em que a energia vital deixa o corpo, em outras palavras, do momento da morte até a completa separação dos corpos mental e físico. O tempo

que leva para se realizar esse processo psíquico varia desde alguns segundos até três dias (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p.199).

Outra interdição é verificada quando da leitura do thödol junto ao corpo do morto, recomenda-se que seja realizada especificamente por um mestre espiritual; um irmão espiritual; um praticante da doutrina ou um amigo benevolente (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p.198-199). A nosso ver, não se trata especificamente de uma interdição, talvez se configure mais como uma restrição, por estas pessoas estarem melhores capacitadas para cumprir todo o procedimento que a Grande libertação pela auscultação exige dentro do rito póstumo.

Nesse mesmo momento que se dá a leitura do thödol, constatamos outra interdição, esta agora se refere ao estado emocional dos parentes do falecido. Durante o tempo que é feita a leitura do texto, não se admite a lamúria e choro dos familiares e amigos íntimos, pois, segundo os lamas, nesse estágio, atitudes de tristeza não são benéficas para o falecido. Esta interdição se baseia na crença da continuidade da consciência108 após a morte, desta forma, os familiares são

orientados e motivados a apoiar a consciência do morto através de atitudes como a compaixão e aceitação dessa nova condição (cf. COLEMAN & JINPA, 2010, p.198).

Acreditamos que existam mais algumas interdições de menor intensidade ligadas ao processo de morte, no entanto, trouxemos à tona as mais importantes, se é que podemos classificá-las por esse grau, contidas no livro tibetano dos mortos.

5. Práticas rituais fúnebres e destinação do corpo

Toda religião é dotada de práticas funerárias próprias embasadas em suas crenças e costumes culturais e religiosos. Esses rituais se realizam visando dar sentido e pleno cumprimento as expectativas religiosas quanto ao pós-morte. Cada rito é classificado segundo sua função sociorreligiosa, e no caso do rito funerário,

108 No livro tibetano dos mortos (2010, p.XV), a sua santidade, o Dalai Lama, faz emergir no seu

comentário introdutório, a questão de uma continuidade ou não da consciência após a morte. Segundo ele, na visão budista, a natureza da continuidade da consciência está intimamente ligada à