• Nenhum resultado encontrado

IV. A imagem do Marrocos nas “Aguafuertes Africanas”

4.1 Roberto Arlt, um turista em Tânger

A crônica “El Tánger. Martirologio del turista. Plaga de guías. Persecución sistemática hasta el tercer día” (31/07/1935), a segunda da série “Aguafuertes Africanas”, é a primeira da região marroquina. No entanto, o elemento principal não é a cidade de Tânger, apesar de citada no título, e sim os percalços por que passa o turista que chega a essa localidade. Se examinarmos o título com atenção, podemos perceber que este, bastante longo, fornece uma

síntese dos temas que ali serão tratados. 94 Portanto, já no encabeçamento do texto, Arlt apresenta: o cenário: a cidade de Tânger; os personagens que vão atuar nesse cenário: os turistas e os guias, representantes das duas categorias de indivíduos e que formam, também, a oposição entre estrangeiros e nativos; a relação que se estabelece entre eles: perseguição e fuga; o tempo que dura essa perseguição: três dias; e como classifica esses dois grupos de indivíduos: os turistas como vítimas e os guias como seus algozes.

Com o substantivo “martirologio”, o cronista/narrador atribui ao turista o papel de mártir. Atribuição hiperbólica, pois não se compara o martírio dos santos católicos com as moléstias sofridas pelos turistas. Com o mesmo exagero, confere caráter nocivo aos guias quando os associa ao pejorativo termo “plaga”. Não há neutralidade por parte do narrador, pois os substantivos de qualidade (MAINGUENEAU, 1996, p. 48-49) expõem sua posição com relação ao narrado e condiciona a leitura, já que o leitor tenderá a compartilhar com ele o seu posicionamento. Arlt se mostra condescendente com os turistas/estrangeiros, e duro com os guias/nativos.

Contrariando a maneira como vinha registrando a viagem – em primeira pessoa, focalizando a paisagem e a cotidianidade do povo que observa, com predomínio da descrição sobre a narração – nessa crônica, em que prevalece a peripécia, Arlt adota o narrador em terceira pessoa para contar as desventuras do turista, que desembarca em Tânger.

A primeira cena da crônica focaliza a chegada do turista no porto de Tânger. Este, mal põe os pés na cidade, já é cercado pelos nativos,

El martirologio del turista en Tánger, comienza al llegar al puerto. Una cáfila de moros descalzos, negros rapados, ancianos, niños con un collar de roña en torno del cogote, se precipitan sobre las maletas con tal furor, que el viajero se ve obligado a solicitar la ayuda de la policía indígena, para que no le arranquen los bultos de las manos o le revienten las maletas, precipitando su contenido al malecón. (“El Tánger…” (31/07/1935).

94 Ao nominar suas crônicas com títulos que, praticamente, resumem o conteúdo das mesmas, Arlt se apropria do

estilo comum aos cronistas viajantes dos séculos XVI e XVII, que integravam as missões de conquista e colonização da América, e que consistia em antecipar no início do capítulo os temas que seriam tratados na sequência, como mostra o exemplo: “De la conversación y aprovechamiento de estos índios; y cómo se les comenzaron a administrar los sacramentos en las tierras de Anáhuac, o Nueva España; y de algunas cosas y misterios acontecidos”, título do Tratado Segundo do livro Historia de los indios de Nueva España (século XVI) de Fray Toribio Motolinia. Com essa “imitação”, Roberto Arlt cita os cronistas viajantes do renascimento e posiciona seu cronista/viageiro, parodicamente, ao lado desses.

O trecho acima guarda semelhanças com a descrição encontrada no guia TÁNGER. Estación de invierno, estación de verano, publicado, pelo Comité Oficial de Turismo de la Zona de Tánger em 1934, para ser distribuído nas principais capitais européias, a fim de incrementar o turismo na região. A data de publicação (reedição ampliada de uma publicação de 1930) sugere a possibilidade de consulta, por parte de Roberto Arlt, a esse guia. Assim como os guias sobre a Andaluzia, esse também reforça estereótipos e alimenta o imaginário dos turistas. Devemos ressaltar, também, que as semelhanças se mantêm apenas no tocante aos personagens que a compõem, pois o texto do guia de Tânger tem como objetivo tranqüilizar àqueles que pretendem visitar a cidade, contrário do enunciado por Roberto Arlt que se configura como um alerta aos futuros turistas.95

O clima de perseguição e vigilância se mantém durante toda a crônica, exibindo um confronto de forças desiguais: para um único turista há sempre numerosos nativos que o seguem de modo acintoso. Nessa tarefa, revezam-se ao longo da crônica, carregadores, guias, vendedores de souvenirs. A imagem da caçada ilustra, de maneira hiperbólica, a situação do turista que “ofrece un sólo símil posible: El de una liebre acosada por una traílla de podencos” (ibid).

O olhar do narrador que segue o turista a distância vai, aos poucos, se aproximando deste,

Ellos esperan. Levanta usted la mirada de su diario, el mejor procedimiento

para sacarse de encima a los vendedores de baratijas, y allí, ubicado uno

tras de una columna otro bajo un arco, el tercero en una bocacalle, aguardan. Se marcha usted a almorzar. Vuelve al café. Pues allí están los guías. Esperándole. Silenciosos. Echa a caminar, ellos atrás, ofreciéndoseles: -Fuera – grita usted rabioso… (ibid)

O pronome “usted” que aparece na citação, apesar de sugerir impessoalidade, se refere ao narrador que começa a fundir-se com o personagem turista. O trecho destacado, que se caracteriza como um conselho, confirma nossa hipótese. Quem pode dar conselhos, senão

95 Por sua extensão, optamos por reproduzir o trecho do Guia em nota:

“El turista que salta a tierra, entre la muchedumbre de camalos indígenas que asaltan el vapor, para desaparecer con sus equipajes, puede creerse transportado a los tiempos pintorescos de los piratas de Berbería. Bien es verdad que estos moros, auténticos descendientes de aquellos piratas berberiscos, cuyo modo de vestirse, con chilabas y zarahueles de colores chillones, cuyos gritos y gestos descompuestos conservan aún a través de los siglos dan la impresión apuntada. Pero todo es impresión fugitiva, pues apenas ponen el pié en el muelle nuestros turistas, se encuentran con sus baúles y maletas completas, intactas, alineadas, y aguardando su llegada. No bien han pasado el muelle y penetrado en la caseta de la aduana, cuando se encuentran con sus mismos equipajes alineados en orden para ser revisados mientras el camalo-pirata, vistoso, hercúleo y chillón, fuma tranquilamente un cigarrillo en espera de su merecida propina.” (in) http://www.guiadetanger.com/97D3906E-9B23-48B6-B0F6-C63F874E4500.html.

alguém que já tivesse passado por semelhante situação? Portanto o usted, nesse momento da narrativa, aparece como um substituto do “eu” que resiste em assumir o discurso em primeira pessoa. O cronista/narrador começa a dar mostras de que conta sua própria experiência de turista como se alheia se tratasse.

O clima de suspense criado na crônica se dá pelo movimento dos personagens que se vigiam mutuamente, mas que simulam não fazê-lo. É um constante esconder-se e revelar-se. Os guias se escondem, vigiam, mas fingem não tomar conhecimento do turista, este se esconde atrás do jornal e, por sua vez, finge não notar que está sendo vigiado. Um verdadeiro jogo de espiões. E há o suspense também quanto à identidade do turista, que ao final é assumida pelo cronista/narrador como mostram no trecho abaixo os verbos em primeira pessoa,

Al verse descubierto, el guía os saluda llevándose la mano a los labios, […] y muy cortésmente os pregunta:

-¿Cómo estar salud, señor? Muy bonito esto. ¿Gusta usted? […] Respondo entre dientes, y el árabe, atento:

-Yo llevar a ver palacio Muley Hafid, el Marchan; Mezquita, Muley Idris. -Quiero que me dejen tranquilo. (ibid)

No final, depois de comentar sobre as disputas entre os nativos e os turistas de um dia, que se vem explorados pelos altos preços cobrados pelos produtos, Arlt encerra a crônica com os dizeres, “Y uno que ha pasado por ello, contemplando el espectáculo, se ríe divertido”. Esse enunciado final esboça uma confissão, de que narra sua própria desventura como turista. Porém, a confissão não se efetiva, porque a presença do pronome indefinido “uno” dá continuidade ao jogo de esconde-esconde.

Ao mesmo tempo em que no texto, Arlt se mostra resistente em assumir a condição de turista, esta já havia sido desenhada na crônica “El agente n° 80 y su sustituto ...” (30/07/1935), anterior à analisada. Nessa aguafuerte há uma fotografia de Roberto Arlt acompanhada da seguinte legenda: “Roberto Arlt, autor de estas aguafuertes africanas, en Tânger.” Na imagem, Arlt aparece diante de um estabelecimento ao lado de dois homens vestidos com trajes marroquinos. Outras duas fotos mostram uma ruela de Tânger e um grupo de árabes em “amable conversación”. As três fotos em conjunto, com imagens do lugar e de seus habitantes, confirmam a presença do cronista no país africano. 96

Roberto Arlt viajou acompanhado de sua máquina de escrever e também de uma Kodak para registrar imagens que pudessem ilustrar suas crônicas. 97 Essas fotografias, – uma média de duas ou três por texto – reforçam o caráter de reportagem e conferem veracidade ao exposto pelo cronista. Desnecessário que, ele, o cronista, apareça nas imagens, a prova de sua estância no país é o texto. O ato de deixar-se fotografar é atitude própria do turista que necessita possuir sua imagem como lembrança da viagem, e não do correspondente jornalístico. Portanto, evidencia o desejo particular do turista Roberto Arlt que, em nada se liga, às suas tarefas profissionais. A fotografia é prova incontestável da realização da viagem (SONTAG, 2007a, p. 19) e, uma vez publicada no jornal é, de certa maneira, um “exibirse de haber estado” no Marrocos. Arlt como turista não resiste a certo exibicionismo, atitude criticada por ele na crônica “Argentinos en Europa”, se faz fotografar, inclusive, vestido com trajes marroquinos e sapatos de couro, destacando o caráter caricato da image.98

Na crônica seguinte “El Zoco Grande de Tanger...” (01/08/1935), Arlt reassume a narrativa em primeira pessoa, mas não abandona a condição de turista. Dedica-se a observar o movimento de marroquinos e turistas no Zoco, espécie de mercado aberto que às quintas- feiras e domingos é tomado por camponeses, os quais vêm oferecer seus produtos e, também, abastecerem-se de gêneros como tecidos e vestuário. O movimento do mercado, o colorido dos produtos, da vestimenta dos camponeses faz do Zoco, nesses dias, um ponto de interesse turístico divulgado no guia TÁNGER, mencionado anteriormente. Esse dado mostra o cronista, em sua exploração da cidade, apegado ao roteiro estabelecido pelo guia e que resultará no registro do pitoresco.

Arlt faz uma descrição panorâmica da praça e dedica especial atenção às mulheres que circulam pelo mercado: camponesas, citadinas, estrangeiras, jovens, velhas. Destaca o vestuário das camponesas por seu colorido e o véu com que se cobrem as mulheres marroquinas da cidade:

A pesar de su fealdad, se cubren el rostro sobre la frente y la nariz, de modo que apenas son visibles de ellas, los ojos, o un solo ojo. […] Las mujeres trazan conjuntos abigarrados, bultos blancos, las formas femeninas

97“Aquí está, pues, de cuerpo entero, [Roberto Arlt] hablándonos de lo visto y observado en España a través de

sus “Aguafuertes españolas”, cuyo paisaje, cuyos tipos, cuyas costumbres desfilarán por sus crónicas a medida que recorra ciudades y visite pueblos, con su Kodak de globbe-trotter cuyo lente fijará escenas y momentos con la misma simpatía que su retina humana.” Nota da redação do jornal El Mundo, que introduz a crônica Las Islas Canarias, puertas de España em 8 de abril de 1935.

desaparecen bajo los enormes ropones que deforman el pecho, los brazos, la cabeza, casi todas ellas están prodigiosamente envejecidas. (“El Zoco Grande...”)

Arlt parece haver esquecido a função do véu na cultura muçulmana, informação dada por ele mesmo quando de sua passagem pela Andaluzia: “la andaluza prefiere su tocado natal que enraiga el hábito musulmán de velar el rostro a la mirada de los extraños” (“Belleza morisca en las sevillanas”, 02/06/1935). Tal como se expressou na citação anterior, o cronista insinua que o véu tem como propósito ocultar as mulheres belas, estando as feias dispensadas desse adereço. Roberto Arlt percebe traços da cultura muçulmana na Espanha e ignora esses mesmos traços em Tânger que, apesar de não ser representativa da urbe tradicional marroquina (GASQUET, 2007, p. 273) conserva as tradições muçulmanas.99

Parece-nos que essa miopia momentânea, que atinge o cronista, mostra claramente o tipo de viagem que realiza. Na viagem particular prevalece o sujeito que busca a cidade sonhada. Por isso, o cronista procura na mulher marroquina a sensualidade cantada em verso e prosa e exibida no cinema, entretanto, encontra a mulher embrulhada, totalmente despida da graça e sensualidade imaginada.

Ainda que não encontre a beleza feminina desejada, Arlt inicia um jogo de sedução com as moças que circulam pelo Zoco:

Me entretengo en flirtear con las moritas por excepción bonitas. Cuando reparan que uno las mira, vuelven la cara fingiendo enojo, dejan pasar un minuto, luego lentamente giran la cabeza y espían, y se nuevamente encuentran la mirada del extranjero, simulan irritarse, tapándose el rostro con el embozo. Así otro minuto, luego se descubren lentamente y se echan a reír mostrando hileras de dientes brillantes. Son pequeños animalitos. (“El Zoco Grande de Tánger. Mercaderes y campesinos. Uñas pintadas y tatuajes. “Flirt” sin trascendencias”, grifo nosso)

O flerte é uma primeira tentativa de contato entre aqueles que se desejam sexualmente. A cena descrita acima, ainda que inocente como enunciado no título da crônica, exibe o desejo de Roberto Arlt pelo sexo oposto, e o insere numa tradição de viajantes que associa o Oriente à experiência sexual inusitada. Arlt, no Marrocos se move guiado pelo clichê literário. A cena descrita não foi a única ocasião de aproximação com figura feminina, em sua despedida da cidade de Tetuán, Arlt revela sua “amizade” com as “muchachas libres de la morería”, únicas mulheres a quem o cronista tem acesso:

99 Tanto Tânger como Tetuám são, nessa época, território internacional dominado pelos serviços de inteligência

europeus e norte-americanos que armavam um sistema de vigilância em razão da guerra que se aproximava. Axel Gasquet, Oriente al sur, p. 273. Arlt tratou desse tema nas crônicas da travessia já citadas anteriormente.

Conocía a todas las muchachas libres de la morería. Por el bordado de oro o plata de sus sandalias, por el número de ajorcas que llevaban en la mano y si eran anchas como refajos o estrechas como serpientes anudadas, las conocía por el tatuaje de la frente, sobre el ceño, una estrella, un sol, una luna. Las conocía por el corte de los ojos, por la tristeza de la expresión, por la altura del embozo bajo el jeique. (“Salida de Tetuán…”, 21/08/1935)

A imagem da cidade de Tânger, como um lugar próprio para aventuras sexuais, insinuada nas crônicas, aparecerá de maneira explícita no livro Aguafuertes Españolas, no texto “La danza voluptuosa” (ARLT, 1911, pp. 313-314) e em fragmentos inéditos, inseridos100 às crônicas originais.