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Nome: Pedro Idade: 54

Profissão: Caminhoneiro Estado civil: Casado Filhos: 1

Ao se apresentar, diz Pedro:

Sou da Bahia, da cidade de Feira de Santana, 54 anos, casado, motorista de caminhão, filho de comerciante e minha mãe cozinheira e dona de casa.

Pedro não usa seu nome próprio, mas sim se remete ao lugar de origem, “sou da Bahia”, apresenta-se como baiano, filho de pais trabalhadores. É Pedro-da-Bahia e Pedro-filho-de-pais-trabalhadores. Coloca-se numa perspectiva histórica e revela a função homogeneizadora do contexto que produz uma coletividade. (CIAMPA, 1987/2005). E continua a narrativa:

Passei minha infância num sitio ajudando meu pai. Tenho duas irmãs mais novas. Sempre fui um menino levado, aprontava de tudo, muito brincalhão. Gostava de jogar futebol com os amigos. Tive uma infância humilde e saudável, sempre adorei carros e meu sonho era ser caminhoneiro para viajar muito, conhecer pessoas, ter aventuras, e assim foi.

Refere-se a sua socialização primária que teve como cenário o sítio. Nesse cenário apresenta-se Pedro-menino-ajudante-do-pai coexistindo com Pedro-menino- brincalhão. Sonha ser caminhoneiro: sonho, esperança e projeto de vida são constituintes do processo de construção do vir-a-ser de uma identidade (CIAMPA,1987/2005).

Estudei mas não gostava, mas mesmo assim conclui o ensino médio; trabalhei para uma transportadora e viajei esse Brasil adentro. Conheci tudo de norte a sul. Trabalhava muito mas também me divertia. Em cada lugar que parava sempre acabava arrumando uma namorada. Tive muitas namoradas, aproveitei muito. Era divertido, não tinha compromisso com ninguém e arrumava encrenca porque sempre queriam casar e eu não queria. Meu caminhão às vezes se transformava num motel.

Pedro-menino-brincalhão que gostava de viver a vida, em seu processo identitário concretiza a identidade já desejada e sonhada, metamorfoseia-se em

Pedro-caminhoneiro-brincalhão. Como identidade é movimento incessante, transforma-se no aventureiro.

Eu era fogo. Acho que fiz muitas mulheres sofrerem, nunca parava muito tempo no mesmo lugar, voltava às vezes. Mas não dava para pensar em casar, me envolver seriamente. Com esse tipo de trabalho não dava para formar raízes, tinha responsabilidade com meu trabalho, mas também tinha o lado do prazer, cerveja, comilança, e aventura. Mal deu para estudar, terminei o segundo grau aos trancos e barrancos, só depois disso optei por essa vida.

Pedro-trabalhador não é apenas isso, mas encarna outras personagens como o “aventureiro”, o “namorador”, gosta de viver a vida, colecionar namoradas, aventurar-se transformando seu caminhão, que além de objeto de trabalho era também objeto de prazer. Transformava-o em motel. Era o Pedro-trabalhador- brincalhão-namorador-aventureiro-meio-irresponsável que sabia que fazia sofrer, mas não queria vínculos, não dava para formar raízes, apenas com a transportadora; antes, apenas com o pai no comércio, quando era Pedro-ajudante- de-pai-trabalhador-do-comércio.

Só parei pela doença aos vinte e seis anos e porque queria formar uma família. Acabei conhecendo minha atual esposa numa viajem, depois casei e tive um filho.

Aos vinte e seis anos passam a coexistir na identidade de Pedro outras duas personagens Pedro-doente e Pedro-que-quer-formar-família.

Às vezes acho que aprontei tanto com as mulheres e acabei adoecendo, acho que foi praga, estou pagando. Um dia, antes de conhecer minha atual esposa, estava viajando e desmaiei, quase morri não fosse meu parceiro de viajem. Isso se repetiu algumas vezes, me senti estranho, mas melhorei.

Quando adoece e encarna a personagem Pedro-doente-do-coração torna-se ao mesmo tempo Pedro-culpado, mostra culpa em relação a não ter correspondido ao amor de tantas namoradas com as quais se relacionou. Aparece o Pedro- sofredor, aquele que paga pelos erros, aquele que perdeu a liberdade e que está condenado.

Pedro já se sente julgado e condenado. Os valores sociais internalizados, permitem ao sujeito criar uma personagem interna que precisa manter a lei e a justiça; fora pego em flagrante e julgado. A condenação foram as pragas, portanto está pagando pelo crime de transgressão das normas morais vigentes.

Até que quando estava com trinta anos, já casado, precisei desistir da profissão porque minha saúde não estava boa, a partir daí, foi sofrimento, perdi meu jeito alegre de ser, fui internado devido a uma crise. Os médicos descobriram que eu tinha uma estenose sub aórtica, acho que é isso.

Pedro-cardiopata é o condenado que inicia a subida do calvário, pois são muitos obstáculos que surgem na sua vida. As medicações necessárias foram

causando efeitos iatrogênicos irreversíveis. Agora já era o Pedro-que-cheira-a- remédio-e-desgosto.

Essa doença evoluiu para uma dilatação do ventrículo esquerdo gerando uma insuficiência cardíaca congestiva (ICC). Durante uns 5 anos fiz tratamento, no início tomava apenas um medicamento e, na fase terminal, quando disseram que eu precisava de um transplante eu já estava com 11 medicamentos, além de ansiolíticos antidepressivos, cálcio e potássio, porque eu perdia na urina por causa dos diuréticos contra a doença e a hipertensão, meu estomago e fígado, minha pele e todo o meu corpo cheirava a remédio e desgosto. Além de tudo, cheguei a quase perder minha perna esquerda por causa de um tombo. Depois, como o coração não estava nada bom, foi feito um procedimento elétrico chamado cardio- versão tentando melhorar a arritmia. Cada hora era uma novidade, não agüentava mais. Já estava estressado, tive vários edemas pulmonares.

Apesar de tantas crises, acidentes e efeitos iatrogênicos, Pedro-doente-do- coração teve o apoio da família. Já era também Pedro-casado e Pedro-pai.

Lembro-me que um dia tive uma crise e eu procurava desesperadamente por oxigênio, foi horrível, até minha família estava sofrendo muito. Meu filho que eu amo muito e que é muito apegado a mim também ficava mal. Mas me deram muito apoio pois já não me locomovia bem, tive que aceitar a idéia de sentar em uma cadeira de rodas, não conseguia nem tomar banho sozinho, nem ficar em pé. Ficava jogado na cama e perdendo peso e estima.

Pedro-doente-do-coração, antes homem livre, aventureiro e independente, agora tem limites, torna-se Pedro-depentente que coexiste com Pedro-impotente e Pedro-sem-auto-estima. Assim, impossibilitado de trabalhar e vendo-se numa cadeira de rodas, Pedro percebe cada vez mais precária a identidade construída e desejada até então. Sua doença causou uma grande transformação em sua identidade. Perdeu o status de caminhoneiro tendo que assumir o lugar de cadeirante; de feliz e aventureiro para homem triste e sem perspectivas.

Sentia falta de estimulo na vida. Sexo zero. Imagine, garanhão como eu era, livre e solto, naquele momento daquele jeito. Minha família fazia de tudo para mim, muito apoio e carinho, pois era muito sofrimento, eu que adorava meu caminhão. Comecei a perceber que o trabalho estava cada vez mais longe de mim, fui internado de novo, fui pra uti, fiquei 2 dias.

Pedro-doente-do-coração recebe a notícia de que será um transplantado cardíaco. Mas antes de se ver como Pedro-transplantado, encarnou Pedro- sobrevivente-de-uma-cirurgia-difícil.

Quando voltei para o quarto veio a notícia que a operação ia acontecer, pois tinha uma doação de um coração de um cara que teve morte encefálica. Esperei pelo coração mais ou menos uns quatro meses. Na cirurgia acabou ocorrendo tudo bem apesar dos médicos terem dito que houve um momento crucial e que achavam que eu não voltaria mais, mas o problema acabou dando certo, sobrevivi. Disseram que foi uma cirurgia muito difícil.

Pedro-sobrevivente é aquele que tem uma experiência de quase morte, é Pedro-que-conversou-com-Deus. A experiência que mudou a sua vida.

Quando acordei da cirurgia tive uma memória como se fosse um sonho mas que era algo muito real, entrei num túnel, no qual, estava me dirigindo através de uma luz, de uma imensa luz, um ser grande e feito também de luz estava me esperando lembro que conversamos muito mas não sei o quê. Queria ir para lá, era uma sensação de muita paz, mas ele falou para eu voltar e quando eu olhei para traz e vi meu filho e minha mulher, voltei para eles de coração. Hoje conversando sobre isso com amigos que entendem desse assunto me falaram que foi uma experiência de quase morte, mas confesso que sinto como se tivesse sido Deus aparecendo pra mim. Isso mudou a minha vida, minha jornada na terra ainda não acabou, com esse coração novo sinto que tenho algo ainda para fazer, e já estou fazendo. Descobri um caminho para poder cuidar das pessoas.

A partir dessa experiência solitária, Pedro encontrou novo sentido para sua vida. A tecnologia foi o dispositivo que o levou a ter essa experiência. Não só o antigo coração de Pedro morreu, como renasceu um novo Pedro com outras perspectivas na vida. Sua identidade passou por grande transformação do Pedro- que-quase-morreu, para o Pedro-de-coração-novo com novas perspectivas para sua vida.

Apesar do transplante e de ser o Pedro-de-coração-novo, os efeitos da medicalização são constantes, teve conseqüências drásticas, passou a ser também, Pedro-doente-do-rim.

Fiquei no hospital 25 dias me recuperando. Foi difícil porque tive problemas devido a adaptação aos medicamentos por causa da rejeição. A toxidade da ciclosporina acabou fazendo mal. Acho que estou de hora extra pois esse remédio provocou lesão renal e passei a fazer hemodiálise por um ano, hoje sou candidato a transplante renal, tenho certeza de que sairei dessa pois tenho muita fé. Será mais fácil encontrar doador de rim do que doador de coração? Já pensou, eu com dois órgãos transplantados? Já tenho um coração, agora outro rim? Mas no fim tudo dá certo, sempre tem uma luz no fim do túnel.

Ser agora candidato a transplante de rim parece ser menos pesado, pois Pedro é esperançoso, agora tem mais fé e sofre menos. Tornou-se Pedro- esperançoso e Pedro-missionário.

Depois de todo esse sofrimento descobri um caminho para poder cuidar das pessoas. Quando sai do hospital, depois de fazer o transplante, conheci uma pessoa da igreja messiânica que me ministrava johrei9. Recebia luz, energia de cura através das mãos,

me senti e sinto melhor, fui orientado e cuidado por pessoas muito caridosas e benfeitoras, gostei tanto, senti tanta gratidão por estar vivo com outro coração que comecei a freqüentar a igreja, fiz cursos,

9

Técnica de cura que utiliza as mãos para a canalização da “luz divina”, que dissolve as toxinas do corpo. Esta técnica é utilizada pelo movimento Sekai Kyusei Kyo ou Igreja Messiânica Mundial, dentre outras. A ciência de ponta tem comprovado em diversas pesquisas a existência de energias invisíveis que alteram de modo surpreendente situações, até então, irreversíveis. Dr. Shiga do Brain Power Institute, nos EUA comprovou que durante o Johrei, surgem ondas Alfa e Theta, o que acalma a dor e revitaliza as células, pois aumenta a produção de betaendorfina. Essa produção revitaliza também as céllulas Natural Killer que destroem vírus e bactérias. Dr. Mandooh Ghoneum, da Drew-/UCLA University of Medicine and Science of Califórnia, conduziu pesquisa em que foram medidas ondas cerebrais, tiraram-se amostras de sangue e observaram-se a atividade das células NK. Verficou-se que as atividades destas aumentou de duas a três vezes quando se recebe Johrei pelo menos meia hora por 30 dias seguidos. As alterações de temperatura foram registradas por meio de termógrafos antes e depois do Johrei., indicando um aumento de circulação sangüínea. A Organização Mundial da Saúde, órgão oficial da ONU, a partir do ano de 2000, ampliou a definição do que é saúde, incluindo mais uma condição: a saúde espiritual. Na Inglaterra, o conceito de “spiritual healing” (terapia espiritual) não é novo sendo aceito por alguns seguros de saúde. (www.wikipedia.org/wiki/johrei).

e hoje também ministro johrei, cuido e oriento quem precisa, e quem passa por situações parecidas com a que passei, por mais que ocorram problemas decorrentes do tratamento tenho forças para suportar e fé também. Apesar de ser uma pessoa simples, aprendi muito através dessa doença e do transplante. Minha vida tem outro sentido, aprendi muito que a gente pode fazer por nós mesmos e transformar a realidade. Se eu precisar de outro transplante, farei e vou viver o suficiente para fazer o que tenho ainda para fazer porque existe sim uma missão a ser cumprida. Acredito nisso; se estou vivendo de hora extra não é por acaso.

Seu projeto de vida, decorrente da doença e do transplante se transforma completamente. Já não quer mais mulheres, cerveja e caminhão. Agora sente gratidão por estar vivo, gratidão pelas pessoas que o acompanharam em sua recuperação, gratidão por tudo o que passou. Pedro-solidário é aquele que leva a palavra e a luz através das mãos às pessoas que necessitam. Aquele que atualmente considera o outro e acredita que tem responsabilidade com esse outro.

(...) A identidade de indivíduos sociallizados forma-se simultaneamente no meio do entendimento lingüístico com outros e no meio do entendimento intra-subjetivo-histórico-vital consigo mesmo. A individualidade forma-se em condições de reconhecimento intersubjetivo e de auto entendimento mediado intersubjetivamente.

(HABERMAS, 2002, p. 186/187).

Pedro experimentou desafios para continuar a viver:

Não voltei a viajar com meu caminhão, mas aprendi a viajar para o fundo da minha alma. Aposentei-me, mas atualmente sou gerente de uma loja de peças de caminhão.

E compreendeu a experiência da transcendência, da transformação, da regeneração. A cura, no mais amplo sentido existencial, ultrapassou a barreira da angústia e do medo, pela fé. Metamorfoseou-se em outro Pedro. Pedro- sobrevivente-solidário.

Pedro enfrentou a doença por meio da tecnologia, da medicalização, mas precisou de um outro sentido para sua vida que foi dado através da experiência com a religiosidade e com uma técnica alternativa de cura para sentir-se amparado e cuidado. O processo de alterização potencializado pela história de suas doenças e pelo transplante promoveu um novo “vir a ser”. O projeto de vida de alguém que pensa no grupo, na sociedade, nas outras pessoas que precisam de cuidado. A tecnologia e a religiosidade juntamente com a técnica alternativa, o Johrei, passaram a coexistir para que Pedro pudesse dar novo sentido a sua vida, apenas o uso da tecnologia não foi o suficiente para que Pedro transcendesse o momento vida-morte- e-vida.

Solidário, atinge um estágio mais emancipatório.

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